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Uber escondido com ministro de fora: a conspiração para baixar salários

Mais de 124 mil papeis secretos revelam que os governos foram cúmplices nas ilegalidades da Uber. Enquanto fingiam aprovar as novas tecnologias queriam destruir direitos laborais e baixar os salários de todos os trabalhadores.

Taxistas impedem um veículo conduzido por um motorista da Uber de seguir o seu caminho durante o protesto promovido pela Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) e pela Federação Portuguesa do Táxi. Estes protestos foram aproveitados pela Uber para mudar o sentimento da opinião pública.
Taxistas impedem um veículo conduzido por um motorista da Uber de seguir o seu caminho durante o protesto promovido pela Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) e pela Federação Portuguesa do Táxi. Estes protestos foram aproveitados pela Uber para mudar o sentimento da opinião pública.CréditosMiguel A. Lopes / Lusa

Uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla em inglês), publicada esta semana, revela que entre 2013 e 2017 a empresa recorreu a manipulação na comunicação social, lobbies financeiros e criação de influência sobre decisores políticos para expandir o seu negócio.

A investigação Uber Files do ICIJ envolveu 40 meios de comunicação em 29 países (Portugal não está na lista de media partners, embora o caso português tenha sido abordado) que analisaram mais de 124 mil documentos da empresa. Os dados mostram que entre 2013 e 2017, o então presidente executivo da Uber, Travis Kalanick, deu aval a uma estratégia que acicatava histórias de violência contra motoristas da Uber para promover a imagem da empresa na sua luta contra os taxistas e sabotando leis que não permitiam a expansão do seu negócio, e o consequente aumento da desregulamentação do mercado de trabalho.

A estratégia foi repetida em vários países, incluindo Portugal, revela uma investigação jornalística publicada domingo passado pelo ICIJ.

O plano começou a ser traçado em 2015, quando os estrategos da empresa norte-americana perceberam que poderiam beneficiar com os actos de violência contra os motoristas da Uber, ganhando a simpatia da opinião pública, revela a investigação Uber Files. O plano terá começado depois de um conselheiro da Comissão Europeia ter escrito na rede social Facebook que um Uber em que viajou tinha sido atacado por taxistas.

Nessa semana, quatro motoristas da Uber foram atacados numa mesma noite por taxistas nos Países Baixos que protestavam contra os benefícios de que a empresa norte-americana estava a beneficiar, levando Niek van Leeuwen, gestor da organização para aquela região europeia, a relatar a situação ao então presidente executivo, Travis Kalanick.

Com o aval da direcção geral da empresa, Leeuwen fez um relatório interno em que aconselhava uma estratégia para a empresa conseguir entrar em países com leis do trabalho e regulamentos estritos do ponto de vista da formação mínima dos motoristas: «Temos de manter esta narrativa da violência».

A partir daí, a Uber começou a aconselhar os motoristas a fazerem frente à violência dos taxistas, lembrando-os que essa era a melhor forma de proteger os interesses da empresa para a qual trabalhavam sem contrato. Várias mensagens mostram Kalanick a aconselhar os taxistas a manter esta «narrativa da violência».

Um dos exemplos apresentados pela investigação do ICIJ — citado pelo jornal The Washington Post, um dos jornais envolvidos nesta investigação — ocorreu em Portugal, em 2015, quando taxistas cometeram «actos de violência» contra motoristas da Uber em diversas ocasiões, provocando ferimentos em vários e levando um deles a ser hospitalizado.

A contestação ao serviço Uber em Portugal, e à falta de regulação da sua actividade, cresceu de tom ao longo do primeiro semestre de 2015, culminando, no final do mês de Junho, na confirmação de uma providência cautelar, apresentada pela Associação Nacional de Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL), que junta proprietários de táxis, junto do Tribunal Central de Lisboa, para a suspensão da actividade da plataforma tecnológica.

Situação que foi sendo revertida ao longo do tempo, em Portugal e em outros países, com apoio de políticos locais, que viram a entrada do Uber como uma ocasião de ouro, para fragilizar ainda mais os direitos laborais, ajudando a destruir direitos laborais conquistados por gerações de trabalhadores.

Em França, a 3 de Julho de 2015, a suspensão do UberPop parecia uma vitória do governo socialista de Hollande e dos trabalhadores e empresários dos táxis. Quando a realidade foi bastante diferente. Pois ninguém sabia, na altura, que esta decisão fazia parte de um «acordo» feito às escondidas com o ministro da Economia da altura, Emmanuel Macron, para «contornar» a legislação do próprio governo que fazia parte.

Os Uber Files levantaram o véu sobre a relação entre a empresa californiana e o actual Presidente da República francês. Durante pelo menos dois anos, os directores da Uber trocaram mensagens com Emmanuel Macron e o seu gabinete e até se encontraram com o então ministro em várias ocasiões. Na maior parte das vezes, estas reuniões foram confidenciais, sem serem registadas na agenda do ministro, realizadas atrás das paredes do Bercy, sede do Ministério das Finanças, ou em restaurantes chiques. Graças a esses encontros, a Uber acabou por obter um «relaxamento» da lei e conseguiu instalar-se em França.

A empresa que em França defendia os interesses da Uber e dos Veículos Turísticos com Chofer (VTC) implementou uma verdadeira «estratégia de caos» desde a sua chegada a França em 2012.

«A violência garante o sucesso», defendeu várias vezes Travis Kalanick, o carismático e controverso fundador da plataforma Uber. A fim de impor o seu serviço, os gestores de topo da Uber sabem como tirar partido da oposição violenta dos taxistas, para mudar a opinião pública, e tentam, por muitos meios, influenciar a mudança da lei.

Documentos internos da empresa, analisados pelo diário francês Le Monde, mostram como, entre 2014 e 2016, o ministro da Economia trabalhou nos bastidores com a empresa para impor uma desregulamentação do mercado de trabalho que enfrentava a hostilidade da maioria da população e até do governo que fazia parte.

Desde a meia-noite, 1 de Outubro de 2014, a novíssima lei Thévenoud entrou em vigor: fornece um quadro muito mais rigoroso para as condições de se tornar um motorista Uber, três anos após a chegada da empresa americana a França, e proíbe de facto o UberPop, o serviço que tinha provocado um gigantesco movimento de raiva entre os taxistas em França ao permitir que qualquer pessoa se tornasse um motorista ocasional. Mas às 8:30 daquela manhã, um veículo Uber bastante invulgar estacionou em frente à rue de Bercy 145 - a entrada do Ministério da Economia através da qual passam os convidados de Emmanuel Macron, que tinha sido nomeado para o cargo um mês antes.

Dentro da carrinha Mercedes Viano estão quatro figuras da Uber: Pierre-Dimitri Gore-Coty, o director da Europa Ocidental, agora responsável da Uber Eats; Mark MacGann, o chefe do lobby para a Europa, África, zona do Médio Oriente; David Plouffe, antigo conselheiro de Barack Obama, recentemente nomeado vice-presidente da Uber; e o próprio fundador e CEO da empresa, Travis Kalanick. Uma hora mais tarde, a equipa de lobby de choque saiu do escritório de Emmanuel Macron atordoada. «Numa palavra: espectacular. Inédito», escreveu Mark MacGann num breve relatório enviado aos seus colegas. «Muito trabalho para fazer, mas dançaremos em breve ;)» «Mega encontro top com Emmanuel Macron esta manhã. Afinal, a França ama-nos», escreveu ele também.

Esta reunião confidencial não estava na agenda de Emmanuel Macron. Le Monde e os seus parceiros do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) revelaram agora a sua existência graças à análise de uma vasta quantidade de documentos internos da Uber, transmitidos ao diário britânico The Guardian. Estes Uber Files, dezenas de milhares de emails, apresentações, folhas de cálculo e documentos PDF, escritos entre 2013 e 2017, lançam uma luz particularmente dura sobre estes anos loucos, pontuados pela violência durante os protestos de táxi, durante os quais a empresa americana utilizou todas as receitas de lobbying para tentar obter uma desregulamentação do mercado de trabalho e das leis sobre transportes de passageiros em França.

Acima de tudo, estes documentos mostram até que ponto a Uber encontrou um ouvido atento em Emmanuel Macron, que selou um «acordo» secreto com a empresa californiana alguns meses mais tarde para «garantir que a França trabalha para a Uber, para que a Uber possa trabalhar para a França».

Os executivos da Uber ficam tanto mais encantados com o acolhimento extremamente cordial do ministro da Economia até porque o resto do governo parece-lhes ser muito hostil. O, na altura, Presidente da República, François Hollande, encontrou-se com Travis Kalanick muito discretamente em Fevereiro de 2014, mas ninguém no executivo parece estar pronto a defender a Uber. Arnaud Montebourg, predecessor de Emmanuel Macron em Bercy, acusou directamente a Uber de «destruir empresas»; no Ministério do Interior, Bernard Cazeneuve - responsável pelos táxis - não esconde a sua hostilidade ao serviço, que opera à margem da lei e é alvo de pelo menos quatro investigações diferentes. O primeiro-ministro, Manuel Valls, tem pouco mais simpatia pela Uber, e o ministro dos Transportes, Alain Vidalies, desconfia do serviço, que não oferece qualquer segurança de emprego. Quando recebe o Kalanick, Macron não pode ignorar que está a contornar as decisões dos seus colegas de governo e dos deputados socialistas.

O actual Presidente da República nunca escondeu a sua simpatia pela Uber e pelo seu modelo, que ele acredita poder criar muitos empregos, especialmente para os pouco qualificados. «Não vou proibir a Uber, isso seria enviar [jovens dos subúrbios sem qualificações] de volta para vender drogas», disse ele ao site Mediapart em Novembro de 2016. No final de 2014, Emmanuel Macron defendeu muito publicamente o modelo Uber na conferência «Le Web», durante a qual se pronunciou contra a proibição da Uber em Paris e explicou que «[o seu] trabalho não é ajudar as empresas estabelecidas, mas trabalhar para os forasteiros, os inovadores».

Mas os Uber Files mostram até que ponto Emmanuel Macron tem sido mais do que um apoiante, quase um parceiro, na Bercy. Um ministro que sugere à Uber que transmita alterações «chave na mão» a deputados amigos. Macron é um ministro a quem Uber France não hesita em recorrer em caso de busca nas suas instalações; um ministro que, a 1 de Outubro de 2014, «quase pede desculpa» pela entrada em vigor da lei Thévenoud, segundo um relato da reunião escrito pelo lobista Mark MacGann para os seus colegas de língua inglesa. De acordo com a mensagem, Macron disse que queria ajudar a Uber a «trabalhar em torno» da lei.

Pelo menos dezassete trocas de informação significativas (reuniões, chamadas, mensagens de texto) tiveram lugar entre Emmanuel Macron ou os seus conselheiros próximos e as equipas de Uber France, nos dezoito meses seguintes à sua chegada ao ministério, incluindo pelo menos quatro reuniões entre o ministro e Travis Kalanick.

Coça-me as costas que eu coço-te as tuas

Os executivos da Uber France rapidamente viram como poderiam, numa forma de simbiose, estabelecer uma relação vantajosa com Emmanuel Macron, dando ao ministro oportunidades de se apresentar como o campeão da inovação, assegurando ao mesmo tempo notícias nos meios de comunicação social positivas para o governante e atenuando a oposição política e legal à empresa.

Para a Uber, os contactos com Macron permitiram-lhe fazer cair leis que exigiam uma formação importante e demorada para se poder ser condutor de carros que transportassem passageiros. Para o ministro a empresa era uma ponta de lança para conseguir desregulamentar o mercado de trabalho e fazer com que os trabalhadores de todos os outros sectores da economia fossem forçados a aceitar trabalhos com piores salários e menos direitos.

Em Outubro de 2015: o prefeito de polícia de Marselha, Laurent Nuñez, emitiu uma ordem de proibição de facto da Uber numa grande parte dos Bouches-du-Rhône. «Sr. ministro, estamos chocados com a ordem da prefeitura de Marselha», escreve Mark MacGann, chefe do lobby da Uber, imediatamente a Emmanuel Macron. «Pode pedir ao seu gabinete que nos ajude a compreender o que se passa?» Emmanuel Macron responde por mensagem de texto que «investigará pessoalmente». Três dias mais tarde, a prefeitura da polícia «clarificou» os contornos da sua ordem: a proibição desapareceu.

Para o conseguir legalizar completamente a empresa, Emmanuel Macron e Uber acordam numa estratégia comum. A Uber elabora directamente alterações parlamentares simplificando as condições de acesso à licença VTC, para que possam ser propostas pelos deputados e discutidas durante o exame do chamado projecto de lei «Macron 1»; se a sua adopção for improvável na Assembleia, darão mais peso ao ministro para assinar um decreto que não precisará de passar novamente pela Assembleia.

Em Janeiro de 2015, a Uber France enviou, portanto, emendas «chave na mão» ao deputado socialista Luc Belot, que era muito favorável à empresa.

O plano correu sem problemas: as emendas apresentadas por Luc Belot foram rejeitadas ou retiradas, mas Emmanuel Macron aproveitou a oportunidade, na Assembleia, para anunciar que um decreto iria responder às preocupações principais da empresa. No início de 2016, o governo reduziu a duração da formação necessária para obter uma licença VTC de duzentas e cinquenta horas para apenas sete horas. Estavam abertas as portas à implantação da Uber em França.

Um campo semeado para a uberização e precarização em Portugal

A crise, os ataques à contratação colectiva e à liberdade sindical, conjugadas com uma comunicação social cada vez mais ideologizada e de direita, tornaram Portugal um terreno fértil para as «novas» formas de trabalho, que recordavam, pelas suas condições precárias e miseráveis, muitas das formas de trabalho dos tempos passados da ditadura.

A esta movimentação não ficaram alheias as as universidades que funcionam, cada vez mais, como caixas de ressonância do neoliberalismo e da desregulamentação total das condições de trabalho.

«A 'uberização' é já uma realidade irreversível para a economia. Da mesma forma que o correio eletrónico reduziu a atividade postal, as máquinas multibanco e o homebanking satisfazem a maior parte das necessidades bancárias do cidadão comum, a Uber proporciona um serviço mais personalizado e mais adaptado às necessidades dos consumidores, e na maioria das vezes também vantajoso em termos de preço. O emprego corporativo de longo prazo está a ser substituído pelo paradigma do work on demand.», defendia Alexandra Leitão, docente da Católica Porto Business School, no Jornal Económico em 2017.

«O investigador da Universidade de Cambridge no Reino Unido, Andy Neely, disse recentemente à BBC que "a economia e o consumo estão cada vez mais voltados para os clientes modelo 'Uber' (…). E não é só a oferta de um serviço que está em causa. O elemento-chave é a satisfação do cliente".», concluía a docente.

Por seu lado, o sociólogo Elísio Estanque do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, fazia notar, em 26 de Julho 2019, em declarações recolhidas pelo site alemão Deutsche Welle, que os baixos salários portugueses e a crise económica faziam do Uber uma saída para muita gente, mesmo que isso significasse receber muito menos que os motoristas assalariados portugueses.

«Grande parte dos portugueses ganha apenas o salário mínimo garantido pelo Estado de 600 euros mensais. Como motoristas de Uber, eles conseguem guardar mais nos bolsos no final do mês».

Segundo o sociólogo, o preço do boom da economia compartilhada é alto: com uma receita um pouco maior, os próprios motoristas passam a ter que pagar contribuições para a Segurança Social e custos operacionais. Além disso, eles também são totalmente responsáveis por acidentes e outros problemas potenciais.

«Muitos também conduzem no seu tempo livre. Têm na verdade um outro emprego. Até eu recebi uma oferta. Só é preciso inscrever-se. Tudo é incrivelmente fácil», afirmou o sociólogo.

Além disso, o governo português está constantemente promovendo «empresas inovadoras de empreendedorismo e plataforma digitais». Resultado: nas cidades há agora mais motoristas de Uber do que de táxi, notava o jornalista do DW.

Tecnologias modernas ajudam a explorações antigas, das empresas às universidades

A uberização do trabalho foi precedida e acompanhada pelo aumento exponencial do trabalho de call center em Portugal. Segundo a Associação Portuguesa de Contacts Centers (APCC), o sector dos contact centers cresceu 53,1% entre 2019 e 2021, empregando actualmente 2% da população activa de Portugal. É esta a principal conclusão do Estudo de Dimensionamento do Sector apresentado na 18ª Conferência Internacional da APCC.

Em comunicado, a APCC informa ainda que existem no sector 103,674 mil «colaboradores» e que a actividade dos Outsourcers cresceu de 898 milhões para 1,375 mil milhões de euros entre 2019 e 2021. A quota de exportação nesta actividade é de 51,6% do total faturado.

Os baixos salários, a alta intensidade desse trabalho e a precariedade são aspectos que caracterizam também o sector.

A ideia de precariedade como admirável mundo novo que temos de aceitar assentou praça na sociedade e esse processo de legitimação de uma situação injusta faz-se também nas universidade e na sua forma de tratar os seus trabalhadores e investigadores.

Em Fevereiro de 2021, vários investigadores universitários, entre os quais Ana Ferreira, dirigente sindical do SPGL/Fenprof enviaram para o diário Público, um texto intitulado «A insustentável leveza da precariedade na Ciência», que fazia um diagnóstico que pouco se alterou com o tempo.

«A este respeito, desde 2015 o governo faz do "estímulo ao emprego científico" a sua grande bandeira. Contudo, se esta opção política melhorou as condições laborais de doutorados, possibilitando que alguns acedessem a um contrato de trabalho a prazo por oposição às malfadadas bolsas de pós-doutoramento (que, ainda assim, continuam a existir), não configura um efetivo e consequente combate à precariedade, nem aos seus impactos no trabalho e nas vidas daqueles que permanecem, ano após ano, ameaçados com a possibilidade de desemprego. Esta Ciência de curta duração encontra expressão clara, por exemplo, nos três concursos individuais de estímulo ao emprego científico (CEEC-IND) com cerca de 90% dos doutorados excluídos; num concurso institucional (CEEC-INST) que atribuiu 40,8% de contratos a prazo, 46,6% para o ingresso na carreira docente e apenas 12,6% para entrada na carreira de investigação científica ou, de uma forma ainda mais clara, num programa de combate à precariedade (Prevpap) que excluiu 87% dos investigadores e que se tem arrastado de forma inaceitável para os poucos propostos para integração na carreira de investigação científica.»

«Um modelo de Ciência, como o actual, unicamente baseado em projectos competitivos e vínculos laborais precários, está esgotado e não permitirá que a investigação científica em Portugal avance no sentido de criar alicerces robustos para uma sociedade justa e igualitária. Isto é particularmente patente no actual momento pandémico, que impossibilita o regular decurso de projectos e agrava diversos problemas das vidas dos trabalhadores e, em maior escala, das trabalhadoras científicas. Não nos esqueçamos que os vínculos precários destes investigadores implicam uma menor protecção ou mesmo exclusão dos apoios governamentais actualmente em curso. Se o momento actual exige medidas integradas e sistémicas de resposta às perturbações decorrentes da pandemia, também se impõem medidas de real combate à precariedade na Ciência, promovendo o fim das bolsas de investigação científica e a integração dos investigadores, técnicos de laboratório e gestores e comunicadores de ciência em lugares permanentes de carreira. Este caminho implica não só um reforço e articulação do investimento público em pessoas, projectos e instituições, mas, acima de tudo, uma alteração do paradigma da "investigação à la carte", pronta num estalar de dedos e desenvolvida pelo investigador precarizado do momento, por uma Ciência com o tempo e a profundidade que a produção de conhecimento sustentado implica.», afirmavam os investigadores.

Trabalho em luta

O que têm em comum os investigadores universitários, os operadores de call center e os imigrantes que nos fazem entregas de comida de bicicleta? A todos pretendem convencer que não são trabalhadores e que isso de haver direitos sociais colectivos e laborais minam a sua venturosa vida de liberdade de trabalhar quando querem, onde querem e quanto tempo querem, pelo mínimo dinheiro possível.

E como a liberdade não tem preço, não nos admiremos que a recompensa da aventura seja raramente ser aumentado e não vir a receber reforma. Vivemos um tempo em que os patrões querem enfiar no caixote da história conquistas como: tempo de descanso, segurança no trabalho e salários dignos.

Para abordar as novas formas de exploração e a necessidade de encontrar novas formas de luta, o colectivo Iniciativa dos Comuns promoveu, no final de Junho, a sua primeira assembleia em Lisboa, sob o tema: «O Trabalho em Luta». As Intervenções iniciais estavam a cargo de Ana Ferreira (investigadora universitária e sindicalista), Nuno Rodrigues (ex-estafeta na Glovo) e Daniel Negrão (membro do Sindicato Nacional de Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações).

Ana Ferreira sublinhou, na sua primeira intervenção, que «aquilo que tem mobilizado as pessoas nas lutas no sector do Ensino Superior e Ciência têm sido a questão da precariedade». Apesar disso, a maioria daqueles que nelas participam «não se identificam enquanto trabalhadores, nem assalariados». As pessoas vêem-se como cientistas que tentam fazer investigações para construir uma carreira académica e científica.

«Construir uma luta por melhores condições de trabalho com pessoas que não se identificam como trabalhadores não é propriamente muito fácil», nota Ana Ferreira, que analisa o processo que levou a investigação e o Ensino Superior a esta situação de precarização e individualização das pessoas.

«A precarização no ensino superior e na ciência é fruto dos desenvolvimentos nas últimas décadas. Todo esse tempo foi acompanhado com a narrativa da chamada criação da economia do conhecimento que teria de ser construída à volta dos valores da competitividade e da meritocracia. As normas dos valores na academia baseiam-se nesta competitividade, de produzir mais e mais.»

«Isto foi acompanhado por um processo de precarização da força de trabalho que atingiu todas as actividades envolvidas no ensino superior. A maior incidência é a nível de investigação, em que cerca de 95% de todos os investigadores são precarizados - com contratos de trabalho a prazo, bolsas de investigação, mas também estamos a falar de recibos verdes e actos únicos. Nos docentes convidados o número de precarizados tem aumentado nas últimas décadas e já atingem cerca de 40%; e ao nível da gestão e das funções para a ciência e tecnologia e similares, cerca de 65% estão também ocupadas por trabalhadores precarizados.»

Perante esta situação, a sindicalista e investigadora defende que têm-se degladiado duas posições opostas: por um lado, os decisores políticos e os reitores das instituições que afirmam que o facto de as pessoas estarem há décadas nas instituições não significa que ocupem funções permanentes. Defendendo, governo e reitores, que as bolsas precárias são a melhor forma de os investigadores explorarem o seu caminho em liberdade; e, por outro lado, as associações de investigadores e os sindicatos fazem notar que uma academia e ciência onde reina a precariedade, «só garante a liberdade de exploração. E que nós, investigadores e académicos, não queremos ser mais escravos da precariedade.», garantiu Ana Ferreira.

«Se não estás satisfeito podes ir para outro lado.»

A intervenção de Nuno Rodrigues, investigador, que foi trabalhador das plataformas de entregas e que tentou criar uma cooperativa nesse meio, versou muito a partir da sua experiência pessoal.

«Na sequência do fim de uma bolsa de investigação, trabalhei quatro meses a entregar comida a partir das plataformas e aplicações. A partir daí, tenho acompanhado o que acontece por intermédio de amigos que lá continuam a trabalhar e participando em alguns grupos de Whatsapp de pessoas que lá trabalham», historia.

Para Nuno Rodrigues há aspectos novos, em relação à avaliação de trabalho ser feita por intermédio dos algoritmos com a introdução de classificações por parte dos clientes e outros parceiros que «fazem parte do ecossistema do negócio», como os restaurantes. No entanto, esse tipo de avaliação tem diferentes ponderações e resultados dependendo da plataforma com que se trabalha. Quando um pedido é feito, o estafeta recebe prioritariamente esse pedido, tendo em conta a proximidade a que está e a classificação que o algoritmo lhe dá. «Há plataformas que permitem reservar horas de trabalho, nesse processo as pessoas que têm um ranking mais elevado têm vantagem, normalmente são as pessoas que estão disponíveis para trabalhar mais horas. Aqueles que iniciam o trabalho, restam-lhes ou horas que ninguém quer ou alturas em que há muita procura.»

As empresas ficam com parte do dinheiro que retiram a quem trabalha e aos restaurantes, e cabe aos trabalhadores toda a responsabilidade na compra e manutenção dos meios de produção, isto é o veículo em que se fazem transportar.

Um dos problemas é a arbitrariedade das plataformas e a inexistência de interlocutores para poder resolver questões. «Se há um problema e recebemos um email a dizer que a nossa conta foi cancelada, não existe a possibilidade de recorrer em relação aquela decisão. É, cada vez mais difícil, conseguir chegar a falar com alguém. São impostas regras kafkianas.»

Nuno Rodrigues realça a enorme exploração que todos estão sujeitos:

«Algumas pessoas , com grande sacrifício pessoal, fazem alguns rendimentos consideráveis. Mas chega o Verão e o número de pedidos desce. Estamos muitas vezes uma ou duas horas na rua, sem nenhum pedido. Acontece isso a centenas de trabalhadores.».

Dada a desregulamentação das suas relações laborais e a dificuldade dos processo de legalização dos trabalhadores imigrantes, o sector presta-se a ser a última hipótese de sobrevivência a muitas imigrantes indocumentados que são explorados por outros. «A plataforma, dada a sua “informalidade”, aproveita pessoas cujo a situação é de grande precariedade e necessidade, não conseguem ter um Número de Identificação Fiscal (NIF) e acabam a sujeitar-se a remunerações ainda mais baixas. Tendo eu NIF em Portugal posso abrir uma conta, posso ir para as redes sociais, dizendo que tenho uma conta e quem quiser trabalhar com ela, posso alugá-la com uma divisão de proveitos de 70% para a pessoa que trabalha e 30% para mim, sem fazer nada. Isto está bastante generalizado, não só em termos de imigrantes brasileiros, mas também do sudoeste da Ásia.»

O antigo trabalhador faz notar que as aplicações são tudo menos igualitárias, mesmo dentro das pessoas que lá estão. «A plataforma vendia a ideia que a a aplicação unia o produtor ao consumidor, isso não é verdade. Há gente que tem contrato com a plataforma, que não só gere várias contas, como acaba por estender esse negócio a todo uma série de instrumentos de trabalho necessários, como, no caso da TVDE, das viaturas, seguros, etc.. Há assim claramente uma lógica de intermediação, em que surgem vários agentes a ganhar dinheiro com este dinâmica.», explica.

Do ponto de vista laboral há, para Nuno Rodrigues uma enorme contradição, as pessoas são solidárias, organizam-se em grupos nas redes sociais, mas essas solidariedade não as leva ainda a contestar as dinâmicas de exploração e falta de direitos laborais.

«Neste sector há uma dinâmica de solidariedade muito forte: se alguém tem um furo, ou algum problema mecânico, rapidamente surge alguém para ajudar. Mas quando se discute que a plataforma nos está a roubar porque baixa unilateralmente o preço e o nosso rendimento, há logo gente considera que isso está ligado à própria dinâmica da tecnologia e de quem é o “empreendedor” e que reage dizendo: “Se não estás satisfeito podes ir para outro lado.” » .

Só dando mais força aos sindicatos é possível mudar a situação

Daniel Negrão é dirigente sindical e trabalhador num call center. Entrou para pagar as suas propinas e ficou agarrado a um cubículo até hoje.

«Eu sou trabalhador de call center desde 2001, entrei para pagar propinas. Acabei o curso há dez anos. Como eu, há vários colegas meus que têm cursos superiores, mestrado, têm doutoramento. Tenho um colega meu que escreveu um artigo científico para a revista Science [uma das mais importantes publicações científicas do mundo] sobre marcadores do cancro, ele trabalha ao meu lado há muitos anos. Não valorizamos a formação dos nossos trabalhadores. O mantra das empresas é sempre o mesmo: explorar, explorar, ganhar, ganhar.»

O dirigente sindical do SNTCT afirma que as condições de trabalho não têm melhorado.

«Cada vez mais são atacados os direitos dos trabalhadores, seja com a desculpa da crise, desculpa da pandemia ou desculpa da guerra. É sempre uma desculpa para cortar mais um direito e para não nos devolver um direito que foi cortado por uma desculpa anterior. É inacreditável que em pleno século XXI temos as condições laborais que temos.», afirma.

«Em Portugal existem mais de 100 mil trabalhadores de call centers, que recebem a maioria deles o salário mínimo nacional. Como é que é possível existir no século XXI este tipo de exploração? Existem várias empresas. Vou dar o meu exemplo: eu faço trabalho para a Altice empresas, e trabalho para uma empresa que se chama Intelcia, que por sua vez esta empresa é contratada por uma empresa chamada PT Contacto, empresa essa que revende os meus serviços à Altice. São três empresas , com os seus patrões, cada um deles ganha com o meu trabalho. E quem me paga o ordenado não tem trabalho para mim, nem para os meus colegas. A empresa acima também não tem trabalho para ninguém. Só a última, a Altice tem. Porquê que não somos trabalhadores da Altice, que é para quem trabalhamos de facto? Esta é a reivindicação da maior parte dos trabalhadores.»

Daniel Negrão relata as dificuldades do trabalho dos sindicatos nestas empresas, e que apesar disso, apenas a sindicalização e a luta pode melhorar a vida destes trabalhadores. « Apesar de haver 100 mil trabalhadores é muito difícil organizá-los. Muitos não se assumem como tal: "só estou aqui para pagar propinas", dizem-nos alguns. Mas não é verdade. É mais fácil falar com pessoas da Uber que com um colega meu. Na Fectrans (Federação dos sindicatos dos transportes e comunicações) conseguimos contactar trabalhadores da Uber,e nós não conseguimos contactar trabalhadores dos call centers porque têm medo. Imaginem o que é trabalhar num cubículo mínimo, sem luz natural, ter que realizar centenas de chamadas, sentado numa cadeira sem nenhumas condições ergonómicas, com pessoas a controlar em permanência, a exigir que se façam mais chamadas e contactos? Apesar disso, os trabalhadores já tiveram algumas vitórias, como não ser descontado o tempo de ida à casa de banho, no tempo de trabalho.», exemplifica o dirigente sindical.

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