Foi publicado recentemente o diploma que oficializa a subida do salário mínimo nacional (SMN) cujo valor passa dos actuais 635€ para os 665€, em 2021.
É um aumento insuficiente, mas ainda assim «arrancado a ferros», sabendo-se que o governo não queria ir além dos 23€, e os representantes do grande patronato pressionavam para um «aumento» zero. A acção e a luta das organizações que assumem a defesa e promoção dos direitos dos trabalhadores, quer no plano político-sindical, quer no plano político-partidário, foi determinante para que 742 mil assalariados tenham uma subida do seu rendimento em 30€ no ano que está prestes a começar.
Da voz daqueles que se opõem a esta subida do SMN, como a todas as anteriores e, em geral, a quaisquer subidas dos salários, vêm as críticas do costume (infundadas e refutadas pela realidade) e um pedido de demonstração do «racional económico» subjacente ao aumento agora decidido.
O SMN cumpre um papel social
Ora, o «racional» que dá corpo ao SMN está directamente relacionado com a satisfação das necessidades essenciais dos trabalhadores, ou seja, deve ter um valor que possibilite uma vida digna a quem trabalha[fn]A alínea a) do n.º 2 do art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa, estipula:
«Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente:
a) O estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento […].»[/fn].
«Quanto é necessário para uma pessoa viver com dignidade em Portugal»[fn]Disponível aqui.[/fn] foi o mote para um estudo desenvolvido em 2017.
«“Quanto é necessário para uma pessoa viver com dignidade em Portugal” foi o mote para um estudo desenvolvido em 2017. [Na altura] era necessário o agregado auferir 2271€ de rendimento líquido, o que a valores actualizados equivale a 2301€/mês. Por adulto, o salário líquido deveria ser de 1150€. Este é o valor mínimo para garantir o acesso a bens e serviços que garantem um nível de vida digno»
Ao valor a que chegaram, denominaram-no como Rendimento Adequado. Usaram diversas morfologias familiares, sendo que partimos da que pressupunha um agregado familiar composto por dois adultos e dois dependentes, ou seja, aquele que garante a reposição demográfica no nosso país.
Em 2017 era necessário o agregado auferir 2271€ de rendimento líquido, o que a valores actualizados equivale a 2301€/mês. Por adulto, o salário líquido deveria ser de 1150€. Este é o valor mínimo para garantir o acesso a bens e serviços que garantem um nível de vida digno. Por aqui se percebe que uma em cada cinco crianças vivam na pobreza, ou que um em cada 10 trabalhadores não tenha os meios adequados à satisfação de necessidades básicas[fn]O nível de pobreza é determinado de forma relativa, considerando-se pobres todos aqueles que não tenham um rendimento de, pelo menos 60% da mediana. No nosso país, em 2019 (último ano com dados disponíveis), este valor de 60% da mediana era de 501€. Um valor que, mesmo que garantido, está longe de permitir a satisfação das necessidades mais elementares, seja a habitação, a alimentação ou o vestuário.[/fn].
É neste quadro que se coloca a reivindicação da fixação do SMN nos 850€ no curto prazo. É um valor que, ainda assim, fica longe do necessário para garantir um nível de vida digno, mas que, uma vez atingido, dará um impulso a novos aumentos, ou seja, funciona também como ponto de partida rumo a uma nova política, de ruptura com a que há décadas amarra o país aos baixos salários, à precariedade e a um perfil produtivo assente na incorporação de um fraco valor acrescentado, que cerceia o desenvolvimento das forças produtivas.
A riqueza criada no nosso país possibilita o aumento geral dos salários e do SMN
Sendo o nível do SMN, e da generalidade dos salários, baixo, a questão de saber se o perfil produtivo e a riqueza criada no nosso país comporta um aumento robusto que valorize o trabalho e os trabalhadores é determinante.
Em 2019 (último ano com dados disponíveis), a riqueza produzida foi superior a 213 mil milhões de euros. Se descontarmos o desgaste dos meios de produção (máquinas, instalações…), a produção foi de 175 mil milhões de euros. Garantido ainda o investimento realizado para o processo seguinte, obtemos um valor de 135 mil milhões de euros.
«O peso dos salários na estrutura de custos das empresas é reduzido. Em média, não ultrapassa os 15 cêntimos por cada euro. A pressão para baixar os custos tem de incidir na parte em que estes não só são mais expressivos, como estão muito acima da média, e não o contrário. É nas rendas do capital monopolista, e não nos salários, que deve haver reduções»
Este valor corresponde a 32 129 euros anuais por trabalhador, qualquer coisa como 2366€/mês. O valor médio das remunerações foi de 1676€/mês e inclui todos os rendimentos brutos do trabalho, impostos sobre o rendimento e as respectivas contribuições para a Segurança Social – quer sejam da responsabilidade dos trabalhadores, quer seja a parte das entidades patronais, ou seja, estamos a falar de salários, subsídios de férias ou de refeições, mas também de pensões de reforma que são pagas com os descontos de quem trabalha.
Assim, garantindo a cobertura do desgaste próprio da actividade económica, garantindo também o investimento para o ciclo seguinte, há um potencial de aumento de 690€/mês que é criado por cada trabalhador, mas que é totalmente convertido em maior acumulação de capital. Ainda que se possam realizar mais desenvolvimentos nesta linha de abordagem, fica claro que qualquer aumento do SMN e dos salários apenas reduz uma ínfima parte do que hoje é apropriado pelo capital.
A existência de contrapartidas mais não é que o esforço de evitar uma mais justa repartição da riqueza criada pelos trabalhadores, tentando por via da atribuição de subsídios à conta dos impostos, ou da redução da parte suportada pela entidade empregadora para a Segurança Social (TSU), manter a parte da riqueza que vai para os detentores do capital. Uma tentativa de baralhar para que tudo fique na mesma.
O peso dos salários na estrutura de custos das empresas é reduzido. Em média, não ultrapassa os 15 cêntimos por cada euro. Os serviços prestados por empresas privatizadas que operam de forma monopolista têm um impacto bem mais significativo. Temos dos salários mais baixos da Europa (qualquer que seja a base de comparação), mas somos dos que mais pagamos pela electricidade, pelos combustíveis, pelas comunicações ou serviços bancários, até mesmo nas portagens rodoviárias (em termos absolutos e muito mais em termos relativos). A pressão para baixar os custos tem de incidir na parte em que estes não só são mais expressivos, como estão muito acima da média, e não o contrário. É nas rendas do capital monopolista, e não nos salários, que deve haver reduções.
Neste campo, a grande contrapartida que o Estado poderia dar às empresas (e ao país) era a recuperação dos sectores estratégicos para a esfera pública, como motor de dinamização das actividades económicas, particularmente das PME’s, colocando-os ao serviço do desenvolvimento e do progresso.
Trata-se, acima de tudo, de uma opção política, do modelo de sociedade que se preconiza. De definir ao serviço de quem está a economia e o desenvolvimento, e sobre quem deve beneficiar dos resultados obtidos.
O «Salário Mínimo Europeu» como peça da acentuação do neoliberalismo
A par da discussão sobre o SMN, numa altura em que Portugal se prepara para assumir durante seis meses a presidência da União Europeia (UE), surge a proposta para a criação de um salário mínimo europeu. Esta proposta não pode ser desligada de outros instrumentos e do rumo de aprofundamento do processo de integração na UE.
«À subida, insuficiente, do SMN, tem de corresponder um aumento geral dos salários para evitar que o salário mínimo passe a ser o salário médio nacional, com todas as consequências negativas que daqui resultam para a valorização quer das profissões, quer dos diferentes níveis de conhecimento de cada trabalhador»
O efeito combinado das regras do Tratado Orçamental, do Semestre Europeu, do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou da governação económica, redunda na acentuação das assimetrias e na intensificação do carácter neoliberal da UE, que não só não é contrariado pelo denominado «pilar dos direitos sociais», como este deve ser analisado como parte integrante do processo de promoção do capital, em confronto com o ataque aos direitos de quem trabalha.
A apresentação do «pilar dos direitos sociais», ou da criação de um «salário mínimo europeu», como sendo o resultado de preocupações sociais, é um exercício de cinismo que esbarra com os resultados das políticas impostas pelos centros de comando da UE, geradoras de uma pobreza endémica e de desigualdades crescentes (com mais de 100 milhões de pessoas nos países da UE em situação de pobreza ou exclusão social).
A aplicação à realidade nacional dos critérios apresentados para o estabelecimento e evolução de um salário mínimo europeu, determinaria que o nosso SMN seria demasiado elevado e que, em 2021, seriam atendidas as pretensões do grande patronato: aumento zero.
Em 2021, lutar por novos avanços
A mobilização, organização e unidade na luta dos trabalhadores é uma condição essencial para avançar nos direitos e nos rendimentos do trabalho. À subida, insuficiente, do SMN, tem de corresponder um aumento geral dos salários para evitar que o salário mínimo passe a ser o salário médio nacional, com todas as consequências negativas que daqui resultam para a valorização quer das profissões, quer dos diferentes níveis de conhecimento de cada trabalhador.
A fixação do SMN nos 850€ a curto prazo é possível e necessário e constitui-se, também, como uma componente que, alicerçada no aumento geral dos salários, garante mais crescimento, mais emprego e uma maior justiça social.