1. – A presente pandemia veio destruir uma das mais antigas construções ideológicas do capitalismo, apostado, desde o início, em «esconder» o estado (o estado capitalista), consciente de que o estado é um aparelho de domínio (uma ditadura) de uma classe social por outra.
Nós sabemos que foi o estado burguês (a ditadura da burguesia) que criou o mercado, que é, como o estado, uma instituição política. Foi o estado capitalista que organizou e impôs a estrutura de poderes que suporta a classe dominante, ao mesmo tempo que procura «legitimar» a exploração inerente às relações de produção capitalistas. Mas a ideologia dominante sempre se esforçou por nos convencer de que o estado é uma instância separada da economia, porque esta funciona segundo leis próprias, leis naturais, de validade absoluta e universal, leis que os homens não podem contrariar (os fisiocratas defendiam que contrariar estas leis, outorgadas pelo Criador de Todas as Coisas, era pecar contra a própria divindade). E o que é natural é justo, não existindo justiça fora da natureza. Por isso Hayek sustentou que a justiça social é um embuste e que essa expressão devia desaparecer do vocabulário dos economistas. O objectivo é negar o poder, as relações de poder, as estruturas do poder. Por isso a ciência económica dominante afasta tudo isto da análise científica.
«Ao longo do período pandémico, o estado nacional fez o que muitos julgariam impossível: a economia parou, à escala mundial, não por acção das chamadas leis do mercado, mas por imposição do estado. […] Fez tudo e mais alguma coisa: salvou companhias aéreas, cafés e restaurantes, empresas de transporte rodoviário, hotéis, livrarias, companhias de teatro, empresas de circo e todo o tipo de empresas atingidas pelas medidas de combate à pandemia que obrigaram a parar a economia»
É patente que o estado capitalista tem estado sempre no seu posto, capaz de utilizar a violência indispensável para permitir a concretização do programa político neoliberal inscrito no Consenso de Washington. Foi ele que criou as condições para que a rapina neoliberal fosse levada a cabo livremente, sob o comando do grande capital financeiro: privatizou tudo e entregou depois a regulação de sectores estratégicos da economia (grandes empresas monopolistas, muitas delas produtoras de serviços públicos essenciais) a agências reguladoras independentes, para colocar estes grandes negócios fora do controlo do poder político democrático. O estado capitalista não pode abandonar a luta, porque sem estado capitalista não há capitalismo. E o estado capitalista é hoje a ditadura do grande capital financeiro.
Os neoliberais «viciaram-se» na exigência de menos estado, lutando pelo estado mínimo. Como os cegos que não querem ver, alguns «ayatollahs» mais radicais do culto neoliberal vinham insistindo, porém, em que o estado tinha desaparecido, porque o neoliberalismo dispensava o estado. E os estados nacionais eram coisa do passado. Ora a pandemia veio obrigar toda esta gente a acreditar na ressurreição do estado. Porque, se estava morto, ele ressuscitou, cheio de força. O estado nacional aí está, a confirmar a sua força e a sua indispensabilidade.
2. – Ao longo do período pandémico, o estado nacional fez o que muitos julgariam impossível: a economia parou, à escala mundial, não por acção das chamadas leis do mercado, mas por imposição do estado. E foi o estado que quase «suspendeu» a vida: proibiu viagens, encerrou teatros, museus, estádios da «indústria do desporto», impôs o teletrabalho, fechou milhões de pessoas em casa, impediu a vida familiar, regulamentou estritamente os funerais. Fez tudo e mais alguma coisa: salvou companhias aéreas, cafés e restaurantes, empresas de transporte rodoviário, hotéis, livrarias, companhias de teatro, empresas de circo e todo o tipo de empresas atingidas pelas medidas de combate à pandemia que obrigaram a parar a economia. O estado nacional tem sido chamado até – verdadeira heresia à luz dos dogmas neoliberais – a garantir algum rendimento às famílias impedidas de trabalhar por força da pandemia ou das medidas tomadas para a enfrentar. Repetia-se que não havia dinheiro. Agora, como que por milagre, verificou-se que, afinal, há dinheiro. Porque se decidiu, politicamente, que tinha de haver dinheiro.
Em toda a parte, foram os estados nacionais (e não a chamada sociedade civil) e foram os serviços públicos de saúde (e não os «industriais da doença») que organizaram e dirigiram o combate à pandemia. E são os estados nacionais que se perfilam como as únicas entidades que podem organizar o processo de recuperação da economia, porque ninguém acredita na acção espontânea dos mecanismos de mercado. Os que diziam que o estado só complica aparecem agora a dizer que o estado é que tem de resolver. Até os que proclamavam que o estado estava «morto» (como «morto» estava Keynes), vêm agora pedir mais estado em vez de menos estado, um estado máximo em vez de um estado mínimo.
3. – Tudo bem. Já era mais do que tempo de os «responsáveis» desenterrarem Keynes, o «santo milagreiro» que salvou o capitalismo, abalado pela Grande Depressão e pelo fracasso do nazi-fascismo, que provocou a Segunda Guerra Mundial.
Na década de 1970, os neoliberais, comandados por Hayek e Milton Friedman, declaram ter morto Keynes (assim morto de morte matada, culpado de todos os males do mundo, a inflação e o desemprego). E a social-democracia europeia, que tinha feito do liberal John Maynard Keynes o seu «deus», por ter «inventado» o estado social (que converteu, por artes mágicas, o capitalismo em socialismo democrático), acabou por participar alegremente no funeral do seu herói da véspera e converteu-se à religião neoliberal e aos seus dogmas estúpidos e medievais (usando a qualificação de Romano Prodi para as regras alemãs de Maastricht que hoje dominam os povos da «Europa»).
Perante as consequências económicas e sociais da pandemia, até o FMI, um dos laboratórios centrais onde se produziu o neoliberalismo quimicamente puro, vem reconhecendo a necessidade do regresso a Keynes. Num Relatório de Abril/2020, o FMI considerou fundamental a intervenção em larga escala dos estados nacionais, admitindo mesmo que os mais frágeis pudessem recorrer a um certo controlo dos movimentos de capitais e à declaração unilateral de moratórias relativamente ao pagamento dos encargos da dívida.
«Este efeito multiplicador da despesa pública aparece igualmente referido – pasme-se! – em documentos da UE, nos quais se admite (uma heresia para os guardiões do culto europeísta) que o aumento do défice das contas públicas e da dívida pública resultante das despesas acrescidas feitas pelos estados (financiadas mediante o recurso ao crédito) pode não se traduzir no aumento da percentagem do défice e da dívida em relação ao PIB, graças ao aumento de rendimento gerado pelas despesas públicas, sobretudo se estas forem despesas de investimento»
Em Nov/2020, foi a vez de a Economista-Chefe do FMI, Gita Gopinath, reconhecer publicamente que a política monetária esgotou as suas capacidades para resolver os problemas pendentes, o que obriga a recorrer à política financeira como instrumento principal na luta contra a crise. Segundo ela, vivemos uma situação clara de alçapão da liquidez, o que significa que os instrumentos da economia monetária que vêm sendo utilizados pelos bancos centrais (incluindo o BCE) perdem a eficácia. Numa situação de excesso de liquidez, o aumento da liquidez não terá qualquer efeito em termos de aumento do consumo ou do investimento: oferecer dinheiro fácil aos «empreendedores» não é suficiente para que eles invistam. Nenhum capitalista investe quando há tanta capacidade produtiva por utilizar, quando as incertezas abundam e quando não há expectativa de lucros. O que se passa na «Europa» confirma isto mesmo. Desde a famosa declaração de Mario Draghi (Agosto/2012) anunciando que faria tudo o que fosse necessário para salvar o euro, e, mais intensamente a partir de 2015, o BCE tem distribuído dinheiro a rodos pela banca privada, permitindo que o euro continue a respirar, mas sem conseguir quaisquer resultados no terreno da economia.
Coerentemente, a dirigente do FMI defende o recurso à política financeira para combater o défice da procura global: os estados devem apoiar as empresas viáveis que careçam de recursos financeiros, devem efectuar transferências de rendimentos para as famílias, para estimular o consumo privado, e devem levar a cabo amplos programas de investimento público em áreas estratégicas (infraestruturas, saúde, ambiente, economia digital), que estimulem o investimento privado, criem emprego, distribuam rendimento e promovam o futuro crescimento da economia.
Lembrou mesmo o efeito multiplicador das despesas públicas: as despesas públicas, se financiadas mediante o recurso ao crédito – defendeu o professor de Cambridge – multiplicam-se em rendimento (cada euro gasto pelo estado origina três, quatro, cinco euros de rendimento nacional), o que é especialmente válido em situações caracterizadas pela existência de muita capacidade produtiva ociosa, como acontece nestes dias.
Este efeito multiplicador da despesa pública aparece igualmente referido – pasme-se! – em documentos da UE, nos quais se admite (uma heresia para os guardiões do culto europeísta) que o aumento do défice das contas públicas e da dívida pública resultante das despesas acrescidas feitas pelos estados (financiadas mediante o recurso ao crédito) pode não se traduzir no aumento da percentagem do défice e da dívida em relação ao PIB, graças ao aumento de rendimento gerado pelas despesas públicas, sobretudo se estas forem despesas de investimento.
4. – A questão que se coloca é a de saber se vai ser fácil este regresso a Keynes, que não agrada nada aos «bispos» da «cúria» de Bruxelas. A pandemia obrigou-os a meter na gaveta as regras alemãs sobre os limites do défice das contas públicas e da dívida pública, embora em algumas «igrejas» do culto europeísta, como em Portugal, o dogma das contas certas nunca tenha deixado de ser religiosamente cumprido (o que explica essa realidade desgraçada de Portugal ser, de longe, o país da UE em que o investimento público representa a mais baixa percentagem do PIB).
A verdade, porém, é que a «Europa» é o santuário mais fiel aos dogmas do neoliberalismo. As políticas keynesianas não são compatíveis com o Tratado de Maastricht e as regras alemãs que dele saíram e muito menos com o Tratado Orçamental, que veio «constitucionalizar» o neoliberalismo e as políticas de austeridade e veio «tornar ilegal o keynesianismo». Fiéis aos seus deuses, os responsáveis de Bruxelas nunca deixaram de avisar que as regras (as tais regras estúpidas e medievais) estavam apenas suspensas, não tinham sido revogadas. E agora, com a pandemia mais controlada, já se diz que, em 2023, tudo volta a ser como dantes. Isto é: preparam-se para «matar» Keynes outra vez, impondo de novo a ditadura das regras.
Não creio que a «Europa» saia da «Idade Média». Admitamos, porém, que algum «concílio» decida manter as regras suspensas por mais algum tempo ou sine die. Neste caso, poderemos esperar que as receitas da farmácia keynesiana venham ajudar o corpo doente da «Europa», também seriamente afectada por profunda doença mental que não a deixa libertar do domínio cada vez mais asfixiante dos EUA?
5. – As políticas keynesianas pressupõem a existência de um estado nacional soberano, que não se limite a ser um estado-nadador-salvador (chamado de emergência apenas para salvar o capitalismo de morrer afogado) ou um estado-bombeiro, requisitado para apagar o incêndio e enterrar os mortos, regressando depois ao quartel.
Ora a UE está longe de ser um estado federal e não tem estruturas nem competências, nem orçamento que lhe permitam levar a cabo as políticas keynesianas. O Parlamento Europeu não é um verdadeiro parlamento representativo da soberania popular: apesar de todas as «promessas» que acompanharam a aprovação do chamado Tratado de Lisboa, o PE continua a ser um nada político. A Comissão Europeia não é um governo comunitário e não dispõe das competências para (e não tem a responsabilidade de) definir políticas anti-cíclicas, nem tem capacidade para as levar à prática, porque a UE não tem um orçamento comunitário digno desse nome.
«A recuperação da economia europeia (juntamente com a reindustrialização) exige o aumento das despesas públicas, o que torna indispensável o recurso à emissão de moeda (empréstimos junto do banco central) para as financiar. Só por esta via os estados podem promover o emprego e combater o desemprego, fazendo os investimentos que os privados não fazem por não terem expectativas de lucros e fazendo despesas de consumo que substituam as que as famílias não fazem, porque não têm dinheiro e porque temem o futuro»
Por outro lado, os estados nacionais perderam todos os atributos da soberania monetária (emissão de moeda, controlo das taxas de juro, das taxas de câmbio, dos movimentos de capitais e das taxas de inflação) e o BCE (uma instância federal, para a qual foi transferida a soberania monetária que os estados perderam), nos termos dos seus Estatutos, só tem de garantir a estabilidade do valor da moeda (com o controlo da inflação), sem poder assumir qualquer compromisso com a prossecução de outros objectivos das políticas públicas (combate ao desemprego, crescimento económico, redistribuição do rendimento, equilíbrios regionais, sustentabilidade). O BCE não pode emprestar dinheiro aos estados-membros: não pode comprar títulos da dívida nacional directamente aos estados-membros, no mercado primário, nem pode garantir, por qualquer forma, os empréstimos públicos. Mas compra títulos da dívida pública à banca privada, à qual oferece lucros certos neste negócio, e empresta dinheiro (a juros próximos de zero) à banca privada, que depois o empresta aos estados, a taxas de juro que dependem muito dos humores das agências de rating privadas, as «pitonisas» que proclamam urbi et orbi quais os estados que são lixo e quais os que são merecedores de crédito (barato).
Em obediência ao dogma da independência dos bancos centrais (invenção dos Chicago Boys e dos monetaristas-neoliberais), «privatizaram-se» os estados nacionais, colocando-os em situação idêntica à de qualquer empresa ou família, obrigando-os a recorrer ao «mercado do crédito» (à banca privada) quando precisam de dinheiro para financiar as suas despesas, através das quais executam as políticas públicas.
Ora este estado «castrado», «privatizado» é incapaz de levar por diante quaisquer políticas keynesianas. A acção de um estado verdadeiramente keynesiano não pode limitar-se à de um estado-nadador-salvador, chamado de emergência apenas para salvar o capitalismo de morrer afogado; ou à de um estado-bombeiro, requisitado para apagar o incêndio resultante do terramoto pandémico que abalou os alicerces do capitalismo, apenas para enterrar os mortos e cuidar dos vivos, regressando depois ao quartel.
A meu ver, a «Europa» não pode continuar a dispensar o recurso à política monetária (nomeadamente ao financiamento directo pelo BCE das políticas públicas da UE e dos seus estados-membros) como instrumento de política económica, além do mais porque a continuação do actual estado de coisas constitui uma desvantagem relativamente a outras economias, como os EUA, a China, a Rússia e o Japão. A recuperação da economia europeia (juntamente com a reindustrialização) exige o aumento das despesas públicas, o que torna indispensável o recurso à emissão de moeda (empréstimos junto do banco central) para as financiar. Só por esta via os estados podem promover o emprego e combater o desemprego, fazendo os investimentos que os privados não fazem por não terem expectativas de lucros e fazendo despesas de consumo que substituam as que as famílias não fazem, porque não têm dinheiro e porque temem o futuro. As despesas públicas criam riqueza e emprego e distribuem rendimento pelas famílias, alimentando deste modo o consumo interno, elemento essencial, em países como Portugal, para dar vida às pequenas e médias empresas que são a base da estrutura produtiva, as que mais criam riqueza e emprego.
6. – É por demais conhecido o famoso dito de Keynes a longo prazo estamos todos mortos. Ou seja, em entender: a «doença» do capitalismo é suficientemente grave para não se poder esperar pelos proclamados efeitos automáticos dos mecanismos do mercado, que, a longo prazo, assegurariam o equilíbrio de todos os mercados. Se a crise estava na rua, é preciso que o estado saia imediatamente à rua para a combater. Ora na UE isto não pode ser feito sem mandar para o caixote do lixo (onde as foram buscar) as regras de ouro do equilíbrio orçamental, das finanças sãs e outras regras deste tipo, que integram o arsenal das regras alemãs que governam a Europa do euro (a Europa das regras, a Europa sem política, porque as regras substituem a política).
Keynes entendia também que a «doença» do capitalismo não se curava com aspirina. Era necessário que o «doente» fosse acompanhado em permanência, com um tratamento mais profundo, de longo prazo, porque as situações de pleno emprego são raras e efémeras. Por isso defendeu que as suas propostas exigiam um forte sector empresarial do estado e o planeamento central da economia, de modo a permitir «uma acção inteligentemente coordenada» por parte do estado. E pressupunham um controlo efectivo da banca, dos seguros e dos mercados financeiros, porque o destino da poupança e do investimento nacionais «não deve ser deixado inteiramente à mercê de juízos privados e dos lucros privados». Tudo verdadeiras heresias para os os ideólogos do neoliberalismo.
«Keynes entendia que o capitalismo tinha dois vícios (a palavra é dele) fundamentais que era fundamental e urgente corrigir: gerava desigualdades desnecessárias (prejudiciais ao crescimento económico) e insustentáveis e provocava situações de desemprego involuntário. A verdade é que o capitalismo surgiu como civilização das desigualdades e, até hoje, tem honrado o seu ADN. Ao longo dos dois séculos e meio de vida do capitalismo, as desigualdades não têm cessado de aumentar (entre as pessoas, as classes sociais e os países), sendo que as políticas keynesianas (que, em certos períodos as atenuaram, e continuam a atenuar) não eliminaram de vez este «defeito de fabrico» da civilização capitalista»
E a verdade é que, historicamente, as políticas keynesianas (às quais alguns atribuem os «êxitos» dos chamados trinta anos gloriosos) foram aplicadas em economias de base nacional, assentes num forte sector empresarial do estado (incluindo a propriedade e a gestão de grande parte da banca e dos seguros), na planificação pública da economia, num sistema fiscal relativamente progressivo, numa aposta séria no estado social (sindicatos fortes, sistemas públicos de educação, de saúde e de segurança social, nomeadamente).
As políticas keynesianas exigem também a adopção de medidas que combatam a sério a fraude e a evasão fiscal; que tributem as grandes fortunas, os rendimentos do capital e as transacções financeiras e que aliviem a pesada carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho; e exigem medidas que se traduzam em transferências significativas do estado para as famílias mais pobres (prestações sociais). Nas condições actuais, creio que uma postura keynesiana séria não pode deixar de exigir que os descontos patronais para a Segurança Social dependam do volume de negócios ou dos lucros globais das empresas e não do número de trabalhadores.
O próprio FMI já veio dizer que seria bom lançar um imposto sobre as grandes fortunas (que têm aumentado muito com a pandemia!) e sobre os lucros das empresas que arrecadam milhões e milhões e que têm ganho muito dinheiro com a pandemia. Porque as despesas do estado «keynesiano» têm de ser financiadas.
Em suma: as mezinhas saídas da farmácia keynesiana só produzem algum efeito se o doente reunir condições mínimas para tirar partido dos remédios que ela oferece. Se o doente não satisfizer estes requisitos, a medicina keynesiana está condenada ao fracasso. E, a meu ver, é isto mesmo que se verifica, porque os pressupostos referidos atrás desapareceram, arrasados pelo tsunami neoliberal que varreu o mundo capitalista a partir da década de 1980.
Para regressar a Keynes é, pois, necessário mudar muita coisa, sem o que tudo não passará de uma ilusão, que rapidamente conduzirá a um beco sem saída. É necessário levar a sério o aviso dele próprio sobre os perigos resultantes do predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo (que tinha estado na base da Grande Depressão de 1929); é necessário pôr cobro ao processo de financeirização da economia; é necessário acabar com a liberdade absoluta de circulação de capitais à escala mundial; é necessário deitar fora o dogma da independência dos bancos centrais e o princípio da banca universal; é necessário, como Keynes defendeu, equiparar as bolsas a casinos e tributar severamente os ganhos das transacções bolsistas; é necessário encerrar a «indústria» produtora de produtos financeiros derivados (as tais armas de destruição maciça); é necessário promover o que Keynes chamou eutanásia do rentista, desenvolvendo políticas que combatam a especulação e encerrem de vez os paraísos fiscais.
7. – Se não me engano muito, a «medicina» keynesiana, mesmo que fossem assegurados os requisitos mínimos para tornar possível a sua aplicação, será hoje menos eficaz do que no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário do que Keynes pretendia, a revolução keynesiana não acabou com o rentista. Os rentistas estão hoje no comando da nau capitalista, neste tempo de financeirização da economia e de supremacia do grande capital financeiro sobre o capital produtivo (situação para cujos perigos Keynes tinha alertado).
A «Europa» é o bastião da independência dos bancos centrais: o BCE (dotado de um estatuto de soberania, como pretende o próprio BCE) é o banco dos bancos, mas não é o banco central nem da UE nem dos estados-membros que adoptaram o euro como moeda única. Por isso, só uma alteração profunda do actual estado de coisas poderia abrir espaço às políticas keynesianas, sem as quais não será viável a tal reindustrialização de que agora muitos falam, até porque ela só poderia ser prosseguida seriamente sem os freios decorrentes das leis de defesa da concorrência e do regime das ajudas do estado, que estão entre os dogmas intocáveis do culto europeísta.
8. – Keynes entendia que o capitalismo tinha dois vícios (a palavra é dele) fundamentais que era fundamental e urgente corrigir: gerava desigualdades desnecessárias (prejudiciais ao crescimento económico) e insustentáveis e provocava situações de desemprego involuntário.
A verdade é que o capitalismo surgiu como civilização das desigualdades e, até hoje, tem honrado o seu ADN. Ao longo dos dois séculos e meio de vida do capitalismo, as desigualdades não têm cessado de aumentar (entre as pessoas, as classes sociais e os países), sendo que as políticas keynesianas (que, em certos períodos as atenuaram, e continuam a atenuar) não eliminaram de vez este «defeito de fabrico» da civilização capitalista. A desigualdade atingiu níveis obscenos neste nosso tempo em que os ganhos do desenvolvimento científico e tecnológico permitem uma vida digna para todos os habitantes do planeta, mas as políticas neoliberais têm aumentado o número dos pobres que trabalham (o salário não chega para saírem da situação de pobreza), têm acentuado a exclusão social (a nadificação do outro), têm provocado a globalização da pobreza, uma situação de verdadeiro apartheid social.
«a “histórica” Estratégia de Lisboa (Março/2000), entre outras benesses, prometeu aos europeus a transformação da «Europa» na economia do conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de um crescimento económico sustentável, acompanhado de melhoria quantitativa e qualitativa do emprego e de maior coesão social. O que aconteceu nos anos seguintes, graças às políticas da UE e dos seus estados-membros, foi exactamente o contrário do prometido»
Pois bem. Na Europa civilizada, em 2010 (o Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza) o Parlamento Europeu reconheceu a existência de cerca de 85 milhões de cidadãos em situação de pobreza e de exclusão social (incluindo 19 milhões de crianças). Passadas mais de duas décadas, a Cimeira Social Europeia (Porto, 7 e 8 de Maio/2021) apurou que nesta «Europa» em declínio existem 95 milhões de pessoas em risco de pobreza e de exclusão (das quais 18 milhões são crianças). Diz o ditado popular que o mal de muitos conforto é. Pois bem. Os portugueses devem ter-se sentido muito confortados, porque, perante a desgraça dos nossos dois milhões de pobres (cerca de 20% dos portugueses), ficamos a saber que a rica «Europa» não está melhor do que nós: pelo menos 20% dos cidadãos da UE são pobres.
Neste tempo que tanto se vem falando do regresso a Keynes, poderia pensar-se que os dirigentes europeus anunciassem um programa sério de combate a este terrível vício do capitalismo, que a revolução conservadora acentuou criminosamente, impondo sacrifícios humanos em honra de deuses invisíveis, como escreveu Paul Krugman. Mas não. A Cimeira «revolucionária» preferiu que Keynes continue morto e enterrado: prometeu (só prometeu…) que, até 2030, irá tirar da situação de pobreza 15 milhões de pessoas (das quais 5 milhões de crianças). Ainda continuarão na pobreza 80 milhões de europeus (13 milhões de crianças). Sabendo-se que muitos dos pobres são pobres que trabalham, nem uma palavra da Cimeira sobre a necessidade urgente de aumentar os salários, o único caminho sério para combater a pobreza e para pôr termo à extremamente desigual distribuição da riqueza (e do poder) que caracteriza o capitalismo actual. O princípio da harmonização no sentido do progresso foi afastado em 1997 (Tratado de Amesterdão). O que vale agora é o nivelamento por baixo.
Em outra Cimeira realizada em Portugal (dessa vez em Lisboa, também a finalizar a Presidência portuguesa da UE) foi aprovada e glorificada a «histórica» Estratégia de Lisboa (Março/2000), entre outras benesses, prometeu aos europeus a transformação da «Europa» na economia do conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de um crescimento económico sustentável, acompanhado de melhoria quantitativa e qualitativa do emprego e de maior coesão social. O que aconteceu nos anos seguintes, graças às políticas da UE e dos seus estados-membros, foi exactamente o contrário do prometido.
Perante os graves problemas que afligem os trabalhadores europeus em matéria de emprego (desemprego, trabalho precário e sem direitos), esta Cimeira do Porto foi incapaz de anunciar políticas activas promotoras do pleno emprego. Só prometeu arranjar trabalho para 78% dos trabalhadores europeus (12% continuarão no desemprego, para não esvaziar o exército industrial de reserva).
A UE continua incapaz de definir uma estratégia coordenada em matéria de emprego, continua a rejeitar qualquer política de pleno emprego, continua a defender que as «imperfeições» do mercado de trabalho (a existência de sindicatos, o direito de greve, a contratação colectiva, os subsídios de desemprego) proporcionam salários elevados e que os salários elevados são os responsáveis pelo desemprego.
O que importa é manter a «capacidade concorrencial da economia da União», o que exige a «flexibilidade» da legislação laboral, capaz de garantir «mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas». A UE continua fiel às políticas de desvalorização interna, que, apesar dos seus efeitos recessivos (contrários ao emprego e aos trabalhadores), vêm reforçando os privilégios do grande capital financeiro. A Europa do capital não quer ver Keynes ressuscitado.
9. – Nesta Cimeira repetiu-se vezes sem conta que a «Europa» vivia um momento histórico e dispunha de uma oportunidade única para construir o seu futuro. E pôs-se em relevo a aposta na chamada transição digital, anunciando talvez que se quer iniciar agora o caminho no sentido da tal economia do conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo.
«Na presente conjuntura, apesar do enorme aumento das despesas exigido pelo combate à pandemia e aos problemas económicos e sociais dela decorrentes, as despesas militares não cessaram de crescer e os que vivem da guerra não se cansam de provocar tensões que podem conduzir à guerra. Os interesses do complexo militar-industrial podem empurrar os seus servidores para a perigosa aventura de substituir a «abertura de buracos» ou a «construção de pirâmides» (os dois exemplos dados por Keynes de despesas não produtivas mas com efeitos multiplicadores do rendimento) pela produção e venda de armamento e de material sofisticado de segurança»
Mas foi completamente ignorada a problemática relacionada com a redução do horário de trabalho. Nem uma palavra sobre políticas que apontem neste sentido, apesar de elas serem hoje indispensáveis para resolver os problemas que se colocam no domínio do emprego. Ora esta é – se não erro muito – uma das questões nucleares que estão em aberto neste tempo de contradições: o desenvolvimento excepcional dos meios de produção, em consequência da revolução científica e tecnológica, permite-nos hoje dispor de mais tempo livre para a formação ao longo da vida, para a satisfação das necessidades do espírito, para as actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada vez mais bens para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens.
Neste tempo de contradições, esta Cimeira esforçou-se por tapar a sol com a peneira e fugiu às questões essenciais, incapaz de entender as lições da História, «ignorando» que as leis de movimento das sociedades humanas estão a actuar e que o capitalismo não é o fim da História. O desenvolvimento científico e tecnológico tem provocado uma evolução tão pronunciada dos meios de produção que está a tornar-se insustentável a manutenção das estruturas e das relações de produção capitalistas.
A «histórica» Cimeira do Porto não trouxe nada de novo, não se preocupou em construir o futuro. A «Europa» continua na vanguarda dos «exércitos» da revolução conservadora plasmada no chamado Consenso de Washington.
10. – Nas condições actuais, não pode descartar-se a hipótese de cairmos numa espécie de keynesianismo militarizado, porque as despesas com armamento têm crescido aceleradamente desde o fim da Guerra Fria, ao contrário do que seria de esperar. Parece que a economia armamentista continua a prosperar, impulsionada pelos interesses associados ao que Eisenhower chamou complexo militar-industrial, tanto nos EUA como em outros países imperialistas. Os perigos que Eisenhower anteviu estão mais que confirmados. Os EUA e a NATO (uma extensão dos EUA) constituem hoje uma ameaça permanente à paz em todo o mundo.
Na presente conjuntura, apesar do enorme aumento das despesas exigido pelo combate à pandemia e aos problemas económicos e sociais dela decorrentes, as despesas militares não cessaram de crescer e os que vivem da guerra não se cansam de provocar tensões que podem conduzir à guerra. Os interesses do complexo militar-industrial podem empurrar os seus servidores para a perigosa aventura de substituir a «abertura de buracos» ou a «construção de pirâmides» (os dois exemplos dados por Keynes de despesas não produtivas mas com efeitos multiplicadores do rendimento) pela produção e venda de armamento e de material sofisticado de segurança.
Para quem – como eu – entende que o keynesianismo não pode resolver os problemas estruturais do capitalismo e não pode libertá-lo das consequências das suas próprias contradições, isto mesmo vale, por maioria de razão, para este keynesianismo militar. Acresce que os especialistas vêm alertando para que, nas condições actuais, dada a dimensão do orçamento militar (nomeadamente nos EUA), não é viável um grande aumento em termos percentuais, o que poderá significar que não é através das despesas militares que o aumento da despesa pública pode contribuir para a recuperação económica e para a criação de emprego.
Por outro lado, o material militar mobiliza hoje tecnologias altamente sofisticadas (muito mais evoluídas dos que as utilizadas no último conflito mundial e durante a guerra fria), pelo que a sua produção utiliza pouca mão-de-obra e a sua utilização nos palcos de guerra não exige grandes efectivos militares. Os mísseis, os aviões não tripulados, os navios robots, os satélites telecomandados e os radares fazem o trabalho por si, contabilizando-se nos cinicamente chamados efeitos colaterais as centenas de milhares de mortos civis e a destruição de riqueza provocados por estes instrumentos de guerra.
Mas as ameaças de uma catástrofe iminente permanecem. Não podemos esquecer que o período da segunda onda de globalização (1870-1914), que Lenine caracterizou como a fase do imperialismo, terminou com duas guerras mundiais provocadas por conflitos inter-imperialistas. E a situação actual, no quadro desta terceira onda de globalização que se iniciou nos meados dos anos setenta do século XX, apresenta semelhanças estruturais com o período analisado por Lenine:
a) no que toca ao desenvolvimento científico e tecnológico (revolução dos conhecimentos e das tecnologias relativas à informática, às telecomunicações, aos transportes, que tornam o mundo mais pequeno e provocam a ampliação e a unificação do mercado); b) no que se refere aos movimentos de capitais, à predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo, à concentração empresarial, à «ocupação» do mundo pelas grandes potências capitalistas (com as multinacionais na primeira linha, mas com a força militar sempre presente, como realidade ou como ameaça) e à coordenação bastante centralizada dos negócios do capital (FMI, Banco Mundial, OMC, G7, G20, Comissão Trilateral, Fórum de Davos…); c) no que respeita à exportação de capitais: em 1904 o total de activos financeiros em circulação correspondia a 20% do PIB mundial e a quase 60% do PIB dos países capitalistas dominantes e exportadores de capitais; de 1970 até aos nossos dias, a exportação de capitais, através do investimento directo estrangeiro, aumentou exponencialmente: de cerca de 30 mil milhões de dólares na década de 1970 para cerca de 850 mil milhões de dólares no início do terceiro milénio.
Os deuses da guerra não desapareceram. Estão apenas «adormecidos», embalados pelos sons (e pelos ganhos) de guerras localizadas.
Coimbra, Fevereiro/2022