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Precariedade na Arquitectura exige organização do sector

O AbrilAbril conversou com o Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura sobre os problemas laborais do sector e o papel social do arquitecto.

Créditos / Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura

Andreia Bastos Silva (ABS), arquitecta paisagista, passou por estágios profissionais e falsos recibos verdes até chegar ao contrato sem termo que tem hoje, 14 anos depois de começar a trabalhar.

João Gonçalves (JG), arquitecto, a trabalhar há dois anos, de estágio do IEFP para contrato sem termo no mesmo escritório de arquitectura.

AbrilAbril (AA): A vossa organização não é um movimento de arquitectos, é um Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura (MTA). O que é que isto significa? Qual é a diferença? Que diferentes profissões, diferentes vínculos, diferentes faixas etárias?... Como é que isto funciona?

JG: Pelo próprio nome nós esclarecemos isso de alguma forma. Nós somos trabalhadores em arquitectura, tanto arquitectos que estejam inscritos na Ordem [dos Arquitectos] ou não, porque nem todos têm esse interesse; incluímos estagiários, produtores de imagens 3D, arquitectos paisagistas, medidores orçamentistas, maquetistas, desenhadores... No fundo, aquilo que enquadramos é os trabalhadores que andam a desenvolver ou acompanham projectos de arquitectura. É uma área muito abrangente.

AA: E decidiram organizar este movimento porque sentiam que havia um espaço a preencher relativamente à vossa representação no sector?

ABS: Exacto. Quer a Ordem quer as associações profissionais não são instituições que se debrucem sobre questões laborais e sobre as condições em que o trabalho é exercido. Portanto, o MTA vem trabalhar no sentido da necessidade de colocar as questões do trabalho em arquitectura na ordem do dia e as condições em que os trabalhadores desenvolvem a sua actividade.

AA: Existe uma ideia ainda generalizada da arquitectura como um meio privilegiado de trabalho, de algum destaque e «genialidade», que não se compagina com a precariedade e exploração que hoje impera...

ABS: Sim, isso é uma realidade. O método de trabalho no MTA também tem uma componente de investigação, de tentarmos fazer a caracterização da profissão. Por exemplo, segundo o Conselho de Arquitectos da Europa, que faz um estudo normalmente de dois em dois anos (o último é com dados de 2018), 59% dos arquitectos em Portugal são assalariados, ou seja, são trabalhadores por conta de outrem.

De tudo o que temos vindo a pesquisar, acreditamos até que este número é subestimado, ou seja, o número é consideravelmente mais acima. E portanto essa ilusão da prática liberal, onde se recebe bem e que se traduz em óptimas condições de vida, é negada pela realidade, que nos mostra exactamente o contrário, que o trabalho em arquitectura é altamente precarizado, com uma falta de vínculos brutal, com salários abaixo da média nacional.

AA: O inquérito que desenvolveram durante o surto epidémico espelhou uma realidade diferente do que imaginavam? Ou os problemas já eram conhecidos e foram apenas agravados pela situação sanitária?

ABS: Primeiro, gostávamos de referir que, desde o início de Março, constatámos que era importante tentar acompanhar quais as alterações que eventualmente poderiam surgir do surto. E tanto quanto possível tentámos também estar disponíveis para prestar esclarecimentos concretos no âmbito das questões laborais. Nesse sentido, desenvolvemos logo no site aquilo a que chamámos as «FAQ Covid»: perguntas que nos começaram a ser dirigidas pelos trabalhadores através das redes sociais sobre o teletrabalho e os subsídios, por exemplo. Achámos logo importante o lançamento de um caderno reivindicativo de emergência que fizemos chegar aos vários grupos parlamentares, à Assembleia da República através do Presidente da Assembleia da República e também ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social, ao primeiro-ministro e ao Presidente da República. E depois, no seguimento destas primeiras duas grandes necessidades, resolvemos, de facto, desenvolver um inquérito que esteve aberto entre 14 de Abril e 17 de Maio. O inquérito estava dividido em duas partes. Uma primeira que tinha como objectivo fazer uma caracterização laboral das condições do trabalhador antes da crise sanitária, o que seria a «normalidade» daquele trabalhador. A segunda parte incidia sobre questões directamente relaccionadas com as alterações a essa situação.

«E ainda assim podemos fazer uma avaliação mais abrangente: até que ponto é que um trabalhador que tem 100% da sua actividade para um só beneficiário é de facto independente?»

Andreia Bastos Silva

Recebemos 536 respostas válidas entre arquitectos, arquitectos paisagistas, medidores orçamentistas. Destes respondentes, 89% dos trabalhadores exercem actividade no sector privado. De todas as respostas, 63% são de trabalhadores por conta de outrem, 21% são de trabalhadores independentes, 9% trabalham como independente e por conta de outrem, é misto, e 6% não têm qualquer vínculo de trabalho. Nem recibo, nem contrato, o que por si só também já é um número considerável. Dentro dos trabalhadores por conta de outrem, vemos que 45% possuem um contrato sem termo, 28% um contrato a termo certo, 5% um contrato a termo incerto e cerca de 4% são estágios do IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional].

Gostávamos de dizer que, se à primeira vista, estes números poderão não parecer assim tão maus, quando olhamos para os números relativos aos trabalhadores independentes, percebemos que existe claramente uma distorção que advém dos falsos recibos verdes e até daqueles que são trabalhadores independentes mas que têm 50% ou mais da sua actividade para o mesmo beneficiário. 42,98% destes independentes declaram ser falsos recibos verdes. Esta percentagem aproxima-se praticamente do que é a percentagem dos trabalhadores com contrato sem termo. E, portanto, a distorção vem logo daqui. 25% declaram ter 100% da actividade apenas para um beneficiário. 9,5% mais de 50% para um só beneficiário e apenas 22,81% poderão ser considerados verdadeiros trabalhadores independentes porque têm vários beneficiários. E, portanto, isto demonstra o peso que os falsos recibos verdes têm no mercado de trabalho de arquitectura. E ainda assim podemos fazer uma avaliação mais abrangente: até que ponto é que um trabalhador que tem 100% da sua actividade para um só beneficiário é de facto independente? 

AA: O trabalho que ele produz é uma necessidade permanente naquela entidade.

ABS: Exactamente, continua a ser uma necessidade permanente daquela entidade, independentemente de não cumprir um horário. Relativamente a outros dados que saltam imediatamente à vista da caracterização desta normalidade pré-Covid é sem dúvida o valor dos salários. 73,51% dos respondentes recebem um salário bruto entre os 659 e os 1066 euros. Estamos a falar de salários brutos. E, se considerarmos deste bolo apenas os trabalhadores por conta de outrem, a percentagem sobe até aos 75%. E temos também 14% que recebem menos de 659 euros, sendo que destes cerca de 2% não auferem qualquer salário. Ou seja, existem pessoas para quem a sua normalidade é estar a trabalhar sem receber. Estes 14%, se quisermos fazer uma comparação, é uma percentagem superior à relativa aos escalões de remuneração mais elevados, que se fica pelos 9,78%. Ou seja, a percentagem de quem recebe menos que o ordenado mínimo é superior àqueles que recebem ordenados entre os 1400 a 2300 euros brutos.

AA: Imagino que as pessoas que se têm organizado e as denúncias que têm chegado sejam mais de jovens trabalhadores, com vínculos mais precários?

ABS: Cerca de 13,27% dos trabalhadores que responderam ao inquérito viram os seus rendimentos baixar pelo menos 1/3. Alguns casos não estão directamente ligados ao lay-off. Em 8,22% dos casos, deixou de ser garantida qualquer remuneração. Constatámos também no que diz

«Aquilo de que nos apercebemos é que estas situações, estes atropelos aos direitos dos trabalhadores vêm expor as condições ultra-precarizadas que já tínhamos no nosso sector.»

João gonçalves

respeito ao teletrabalho, que obviamente teve um peso enorme no sector, que não foram disponibilizados os meios mínimos a cerca de 3/4 dos trabalhadores. Quando nós falamos de meio, falamos do software, do hardware e também das despesas pagas para estar em casa, despesas com Internet, luz… E 38% só tiveram acesso a um dos meios. E a cerca de 13% houve uma supressão, que nós consideramos ilegal, do subsídio de alimentação.

JG: Achámos que era realmente importante abrir um canal de denúncias com possibilidade de anonimato onde pudéssemos recolher informação sobre as situações ilegais que estivessem a ocorrer, bem como podermos ajudar a esclarecer os trabalhadores relativamente aos seus direitos. Recebemos cerca de meia centena de denúncias e metade delas dizem respeito a questões de direitos em teletrabalho. Havia muito desconhecimento desta modalidade de trabalho. Mas depois temos também 18% de despedimentos ilegais, 30% de cortes ilegais de subsídios e salários, 18% de processos de chantagem, coacção ou assédio de trabalhadores e ainda 8% de abuso de horas de trabalho, horas extra não remuneradas e ainda 8% de imposição de férias. Aquilo de que nos apercebemos é que estas situações, estes atropelos aos direitos dos trabalhadores vêm expor as condições ultra-precarizadas que já tínhamos no nosso sector. Foram particularmente mais graves as situações com maior precariedade e instabilidade, os falsos recibos verdes, as falsas prestações de serviços, aquelas situações associadas aos estágios de acesso à ordem profissional ou até dos próprios estágios IEFP.

AAAs condições de habitação, agora com as medidas de combate ao surto epidémico e com os casos em Lisboa nas zonas de grande precariedade habitacional, reforçam a ideia da relação entre arquitectura e a sociedade, um trabalho urbanístico urgente para responder a estas questões sanitárias?

JG: Essa questão tem a ver com o possível papel social do arquitecto. Mas se há coisa na qual nós centramos esta ideia, e que acho que é importante referir, é que esperar que o arquitecto de forma individual possa encontrar resposta a estes problemas sociais, ligados às questões do território, do espaço público e da própria habitação, contribui já em si

«Acreditar que nas actuais relações de produção será possível criar uma outra arquitectura que se esquive desta mercantilização do objecto arquitectónico, (...) parece-nos manifestamente ingénuo»

João Gonçalves

para esta questão do brilhantismo e desta paixão em prol da vocação e disciplina, como lhe queiram chamar. Ou seja, o vínculo social não reside na produção de um objecto arquitectónico em si, mas na forma como esse objecto dá resposta às necessidades, a casa onde as pessoas vivem, o espaço público, as questões sanitárias, etc.

Portugal é um dos países da União Europeia em que, apesar da sua condição geográfica, mais se morre de frio. Em que as condições habitacionais ao nível da qualidade térmica das habitações são mais deficitárias. O que leva necessariamente a que as famílias portuguesas gastem todos os anos centenas de euros em aquecimento e arrefecimento. Estamos a falar de um país onde o direito constitucional à habitação condigna continua a não ser garantido. E entendemos que acreditar que nas actuais relações de produção será possível criar uma outra arquitectura que se esquive desta mercantilização do objecto arquitectónico, da financeirização da habitação, da precariedade das relações sociais e laborais que nos impedem até, enquanto trabalhadores, de ambicionar viver sozinhos ou construir uma família... Isto parece-nos manifestamente ingénuo. A afirmação do papel da arquitectura para a melhoria das condições de vida, a defesa do interesse público, o progresso social, cultural, cívico, na requalificação da cidade e do território passa pela melhoria das condições laborais.

A capacidade da larga maioria dos arquitectos para transformar a sua própria situação laboral e ainda mais para influenciar o exercício da sua profissão e o processo produtivo depende da reivindicação de condições

«A afirmação do papel da arquitectura para a melhoria das condições de vida, a defesa do interesse público, o progresso social, cultural, cívico, na requalificação da cidade e do território passa pela melhoria das condições laborais»

João gonçalves

de trabalho dignas, com garantia de estabilidade e progressão na carreira, e de mais e melhor formação. E, aliás, é nesta perspectiva que nós entendemos que a plataforma de natureza sindical que propomos, não representando de forma imediata a solução para esta transformação social ampla, é claramente o passo necessário para a organização colectiva de todos estes trabalhadores, para a sua integração no próprio debate e na reivindicação de uma sociedade mais justa.

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