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Sempre me questionei onde encontraria o repositório teórico de princípios, conceitos e regras, mais ou menos ocultas, mais ou menos confessadas e crescentemente legisladas, que está por detrás de todo um jargão muito corporate, apresentado como muito moderno, sofisticado e academicamente incorporado, que substitui o trabalhador por «colaborador», o patrão por «empregador, empresário, empreendedor ou investidor», o trabalho por «serviço» ou o sindicalismo por «associativismo de trabalhadores».

Parti para a descoberta convencido de que um discurso tão ritmado e compassado tinha de se fundar num referencial originário. Esse referencial, no caso português, é, nada mais nada menos, do que o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN), publicado no Decreto-Lei n.º 23048 a 23 de Setembro de 1933. Mas bem que poderia ser a Carta Del Lavoro de Mussolini.

Verdade é que, um sem número de personalidades, com presença certa nos meios académicos, financeiros, da área da gestão e da política pública, uns mais ingénua e confusamente, outros muito bem sabedores, fundam a sua doutrina organizativa empresarial precisamente na ideologia fascista, a qual serve, por sua vez, de base à ideologia económica neoliberal que funda a cultura corporate dos nossos dias, afinal tão sedimentada num passado que não queremos que volte.

O ataque ao direito do trabalho é comum a toda a Europa, nas ultimas décadas, tendência que teve a sua eclosão nos EUA neoliberais resultantes do designado «consenso de Washington», objecto de teorização pela célebre escola de Chicago de Milton Friedman (que chegou a receber um Nobel em 1976), impulsionador do monetarismo económico, com resultados trágicos em toda a América Latina, especialmente no Chile de Pinochet, impondo um sistema económico que se provou só ser possível com repressão e ditadura. Este vendaval desregulador e de empobrecimento em massa, que na Europa, por razões históricas, ainda não atingiu o dano social que é bastante visível nos EUA e na América Latina, em Portugal acoplou ou fundiu-se com uma escola de gestão contra-revolucionária, responsável pelo ataque «civilista» à legislação laboral, bem traduzido no Código do Trabalho de 2003, reafirmado e agravado pelos sucessivos governos.

«Para o neoliberalismo não importa que o poder Estatal seja repressivo, desde que essa repressão seja canalizada para o desmantelamento dos movimentos de emancipação social e para a concentração de riqueza no sector privado»

É de estarrecer a similaridade de princípios, conceitos e observações consagrados pelo estado fascista, e agora apropriados por partidos de cariz neoliberal, mais ou menos extremados, como o PSD, o CDS-PP, o Chega, a Iniciativa Liberal e mesmo alguma gente do PS, o que não deixa de ser trágico.

É tão coincidente o jargão, que poderíamos falar de um movimento revivalista das concepções económico-empresariais fascistas. O que pode ser. Mas tal também revela a mesma natureza fundadora dos dois movimentos – o fascista e o neoliberal. As pérolas que podemos encontrar no ETN, bem que poderiam ser retiradas de um qualquer livro actual de recursos humanos, de um manual de gestão das organizações ou até, pasme-se, de um decreto presidencial[fn]Ver Artigo 4.º al. c) do Decreto Presidencial n.º 14-A/2020 de 18/03,«(…) quaisquer colaboradores de entidades públicas ou privadas, independentemente do tipo de vínculo, se apresentem ao serviço (…)».[/fn], já para não falar da ampla panóplia de relatórios e planos públicos e privados que tão bem fidelizam o ideário social fascista.

No âmbito do ETN, toda a existência económica é reconduzida a uma lógica privatística: ao estado interessa tudo o que é privado e tudo o que é privado serve-se do estado, organizado em corporações. O estado é apenas o braço coercivo que conforma a sociedade a esse interesse. Embora não se possam confundir as corporações fascistas com as corporações na sua forma empresarial, no fundo, umas e outras funcionam para o interesse da mesma classe: a classe proprietária. Não obstante, claro, todas as enunciações públicas em sentido inverso. No final devemos sempre perguntar cui bono?[fn]Quem beneficia?[/fn]

Eis algumas pérolas ideológicas que podemos encontrar, com expressão ipsis verbis no vernáculo «gestionário» dominante [fn]NR: sublinhados do autor.[/fn]:

«Artigo 4.º

O Estado reconhece na iniciativa privada o mais fecundo instrumento do progresso e da economia da nação».

Parece que estou a ouvir o jornalista José Gomes Ferreira a dizer qualquer coisa como «é preciso encontrar novos heróis com coragem para investir»[fn]José Gomes Ferreira, em Sic Notícias.[/fn]. Bem que poderia dizer – com dinheiro – seria uma expressão mais adequada. O mesmo autor também referiu, por diversas vezes, os empresários como seus «heróis», concretamente no tempo da Troika. O povo, que sofreu os cortes, o desemprego, a pobreza e a fome, que trabalha e produz a riqueza, não lhe mereceu o mesmo elogio. Nem tão pouco os dirigentes, muito voluntários, que gerem com o seu suor formas mais democráticas de organização social, como as associações ou as cooperativas, totalmente abandonadas à sua sorte.

«Artigo 5.º

Os indivíduos e os organismos corporativos por eles constituídos são obrigados a exercer a sua actividade com espírito de paz social, subordinando-se ao princípio de que a função a justiça pertence exclusivamente ao Estado».

Uma pérola rara. A paz social como objectivo em si mesmo. Já todos ouvimos gente bem conhecida da nossa praça a dizer – já não é tempo de luta de classes – , ou o nosso PR a dizer que é fundamental garantir a «paz social»[fn]Marcelo Rebelo de Sousa sobre a Autoeuropa e a paz social, no Observador.[/fn]. Podia ainda referir-se a tentativa que, ao longo dos últimos 20 anos, os sucessivos governos têm feito para introduzir no Código do Trabalho, uma cláusula de «paz social». Ou, quando em tempo de greve, a multiplicação de alegres arautos exprimindo a sua preocupação pela perturbação da greve.

«Artigo 6.º

O estado deve renunciar a explorações de carácter comercial ou industrial, só podendo estabelecer ou gerir essas explorações em casos excepcionais, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua acção. Também o Estado só pode intervir directamente na gerência das actividades privadas, quando haja de financiá-las e para a realização dos mesmos fins».

Quem não se lembra de Pedro Passos Coelho dizer que queria reduzir o «o peso do estado na economia»[fn]Passos Coelho à RTP.[/fn], ou do exército de economistas neoliberais, muito bem formados nas universidades da Ivy League, ou os que com esses se querem confundir? Lembram-se dos incentivos às privatizações, ao abrigo dos quais e em entrevista televisionada, Morais Sarmento, gestor do dossier de privatização da GALP, dizia que «só com a privatização a GALP pode ir mais longe nos mercados internacionais»? E que tal «benefício» – certamente que não era para o povo e os trabalhadores – justificaria por si só a privatização. Mas também poderíamos ir buscar umas tiradas do Camilo Lourenço quando diz, nas suas inúmeras rubricas semanais radiofónicas, que «é para estas coisas que o estado deve servir, para acudir às empresas em crise».

«Artigo 11.º

A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade».

Trata-se do princípio da solidariedade entre o capital e o trabalho, percursor do termo «colaborador» e negador da natureza conflitual que está na génese da relação de trabalho. Logro bem implícito em tiradas como «o tempo do PREC já passou» ou «a luta de classes não é caminho para o futuro».

A revogação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador o favor laboratoris previsto no artigo 2.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, operada pelo Código do Trabalho, situação mantida pelos sucessivos governos, constitui uma das formas de afirmação desse princípio, segundo o qual trabalhador não tem de ser especialmente protegido, porque a relação supostamente não é conflitual. Num período em que se vive o que as escolas neoliberais apelidam de «futuro do trabalho» estão cá as Glovos, as UBER’s e as Amazons a provar isso mesmo. Mesmo a Google, antes tão creditada, os seus trabalhadores já sentiram a necessidade de criar um sindicato. Sintomático.

«Artigo 21.º

O trabalho, em qualquer das suas formas legítimas, é para todos um dever de solidariedade social. O direito ao trabalho e ao salário humanamente suficiente são garantidos sem prejuízo da ordem económica, jurídica e moral da sociedade».

O trabalho é visto como um dever e, ao mesmo tempo como uma liberdade, mas nunca como um direito dos trabalhadores. Daí que Pedro Passos Coelho gostasse de se referir ao subsídio de desemprego como um desmobilizador de procura de trabalho, visão amplamente reconhecida na neoliberal União Europeia. Por outro lado, o valor do salário e as condições de trabalho não visam a subsistência e a suficiência em função as necessidades humanas dos trabalhadores. Estas condições estão dependentes de uma ordem superior. Hoje menos moral do que ontem, mas tal como ontem, a ordem económica – a economia – continua a constituir a primeira referência.

Quem não se lembra de Pedro Passos Coelho, perante o gáudio do seu coro de Montenegros e Rangéis, dizer: «É preciso sair da zona de conforto», numa espécie de tirada moral para os preguiçosos que não queriam trabalhar, mesmo que se acenasse com um salário mínimo de 500 euros. Ou das suas referências à necessidade de corte nos salários e na segurança social, em função de uma lógica de equilíbrio das contas públicas e de crescimento económico das empresas?

«Artigo 22.º

O trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo».

Afirmador da cultura corporate do capitalismo multinacional do pós segunda guerra mundial, este artigo contém não apenas a menção, mas todo o conteúdo do termo «colaborador».

É o vínculo corporativo que corporiza a obrigação de solidariedade entre capital e trabalho. Algo traduzido para os termos actualmente em voga como «é preciso os colaboradores vestirem a camisola da organização», como se os resultados da colaboração fossem, não apenas mútuos, mas intrinsecamente justos. Justiça essa ditada por uma qualquer ordem global e universal, intrínseca ao próprio sistema e que não pode ser questionada. O termo «colaborador», sem expressão na lei actual, mas com expressão prática enquanto elemento fundamental na estratégia de desmobilização do interesse de classe, tenta transportar para o trabalho actual uma carga voluntária, quase amigável. Quantos e quantos directores gerais se dirigem às suas novas contratações, muitas delas com vínculo precário e salário mínimo, como: «esta colaboradora está cá para nos ajudar…». Apenas no acto do despedimento é esquecida toda a dedicação. Nesse momento a contraditória realidade volta a ser nua e cruel.

Muitos outros poderiam ser os decalques utilizados e explorados neste artigo, concretamente no domínio da propriedade, do capital, da liberdade sindical, etc.

Mas o objectivo fundamental foi o de evidenciar com toda a clareza a similaridade e a ligação íntima, umbilical, entre a doutrina económico-empresarial vigente, propagada pelo neoliberalismo e a que era propagada pelo fascismo. Ambos, neoliberalismo e fascismo, são filhos do mesmo pai: o capitalismo. Ambos dão voz ao mesmo veículo: o imperialismo.

É por isso que não podem subsistir dúvidas, não é apenas o direito do trabalho que está em causa com a ordem mundial neoliberal; o que está em causa é a própria democracia e a sua transformação num mero sistema sufrágico que visa afastar a decisão política do que é o poder económico, sempre vigente, inquestionável, inevitável e inexorável. As relações de trabalho são o melhor espelho de um sistema político; não existem democracias com trabalhadores oprimidos. O desconhecimento da sequência histórica, da dialéctica social e da política enquanto disciplina que trata da gestão das sociedades, bem como a incultura funcional cultivada nas universidades também tem uma palavra a dizer: em terra de cego, quem tem olho é rei.

Não obstante, mais cedo do que tarde, essa contradição se fará transparecer com toda a veemência que caracteriza a mais crua das realidades.