|Sebastião Santana

Greve será «muito grande» e «não deixará dúvidas» do descontentamento com o Governo

Em entrevista ao AbrilAbril, o coordenador da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública (CGTP-IN), Sebastião Santana, detalhou as reivindicações que estão na base da greve geral desta sexta-feira e teceu severas críticas às opções do Governo, tanto no Orçamento do Estado como na proposta de revisão laboral. 

CréditosAntónio Cotrim / Agência Lusa

Quais são realmente as reivindicações que suscitam esta greve?
Bem, nós temos a proposta reivindicativa que foi entregue, que tem 73 propostas. Destas, nós definimos cinco prioritárias e são a causa primeira desta greve. Primeiro, um aumento salarial mínimo de 15%, com um mínimo de 150 euros para cada trabalhador. Logo a seguir, a reposição do vínculo público de nomeação, que é o único vínculo que permite erradicar a precariedade da Administração Pública, garantir os postos de trabalho e, "mais" importante até do que erradicar a precariedade, garante que os serviços públicos têm sempre um quadro pessoal adequado. Não é possível reduzir o número de trabalhadores só porque uma determinada direcção o decide fazer. Terceira reivindicação, a revogação do Sistema de Avaliação de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) e, até que isso se concretize, garantir que os trabalhadores podem mudar de posição remuneratória com quatro pontos – hoje são precisos oito — e que toda a gente consegue chegar ao topo das suas carreiras. O que acontece hoje é que há carreiras na Administração Pública, em que um trabalhador que entre agora demora 120 anos a chegar ao topo da carreira. A malta gosta de trabalhar, mas até aos 150 não. Portanto, é outra das reivindicações centrais. A quarta reivindicação é a questão da valorização dos serviços públicos.

Como é que essa valorização se concretiza, nomeadamente na questão orçamental?
Nós não podemos continuar nesta lógica de ter um Orçamento do Estado que dá 1700 milhões de euros de benefícios fiscais aos grandes grupos económicos, com o Governo a dizer que não tem dinheiro para pagar a devida valorização dos trabalhadores da Administração Pública. Não podemos continuar a aceitar que um Orçamento do Estado aumente a verba para a saúde – e atenção que é a verba para a saúde, não é para o Serviço Nacional de Saúde, porque metade daquele valor vai para o [sector] privado da saúde – em 1,4% quando prevê uma inflação acima dos 2%. Quer isto dizer que é um orçamento de desinvestimento público na saúde. Se somarmos isto ao crescimento das parcerias público-privadas em 25%, que no caso da saúde chega aos 35% de aumento de verba adjudicada, fica clara a intenção do Governo. E se compararmos com o crescimento do orçamento da defesa, pior ainda. Parece que Portugal tem neste momento um problema de defesa maior do que o do acesso à saúde. 

Com uma actualização prevista de 56,58 euros para 2026, este é um orçamento que perpetua a perda do poder de compra...

É um orçamento que não resolve de maneira nenhuma aquilo que tem sido o acumulado de perda de poder de compra, que nós estimamos em cerca de 20% nas últimas duas décadas. Portanto, continua a ser um orçamento que não dá resposta a uma inversão deste rumo. Aliás, a nossa proposta de aumento salarial não corrige imediatamente este problema. Nós estamos a dizer que perdemos 20% de salário nas últimas duas décadas e estamos a exigir 15% de aumento este ano. Mas o que precisamos é de uma alteração de políticas que vá nesse sentido. E é tudo o que esta proposta do Governo não faz.

A falta de atractividade na função pública vai continuar a ser uma realidade?

Sim, outra reivindicação central é a valorização de todas as carreiras e profissões, porque continuamos a ter muitos concursos na Administração Pública cujas vagas não são preenchidas porque as pessoas não se candidatam. Trabalhar na Administração Pública deixou de ser uma coisa que os trabalhadores ambicionem pelos baixos salários e pela estagnação. Se estivermos a falar da base das carreiras da Administração Pública, a entrada é pouco mais que o salário mínimo nacional. Mais sete euros, se a memória não me falha. Portanto, mesmo na entrada não há grandes vantagens em relação ao sector privado. E depois, a perspectiva de evolução é uma coisa desastrosa na maior parte das carreiras.

«Nós não podemos continuar nesta lógica de ter um Orçamento do Estado que dá 1700 milhões de euros de benefícios fiscais aos grandes grupos económicos, com o Governo a dizer que não tem dinheiro para pagar a devida valorização dos trabalhadores da Administração Pública.»

E, mais do que isso, fala-se hoje muito em inovação, que as pessoas têm que ser todas muito criativas, mas sempre que algum trabalhador tenta fazer isso na Administração Pública cortam-lhe imediatamente as hipóteses de o fazer, porque não há recursos para isso. A saúde é um excelente exemplo disso. Nós já tivemos dos melhores serviços nacionais de saúde do mundo, atenção que continua a resistir, mas ainda assim perdeu-se muita da capacidade instalada de inovar, de investigação. Por exemplo, na área da cirurgia vascular, já fomos líderes mundiais no desenvolvimento tecnológico e cirúrgico nessa área, já fizemos o mesmo em áreas de transplantes. Hoje em dia temos muito poucos exemplos e isso resulta da degradação das condições de trabalho e da destruição de equipas. É uma questão bastante complexa, mas que resulta de políticas, que não têm sido postas em prática por ignorância, mas para degradar.  

Como é que vês protagonistas da campanha das «gorduras do Estado» falar por vezes das suas insuficiências?

O problema deles não é exactamente aquilo a que chamam gorduras, é o facto de essas supostas gorduras não serem aproveitadas pelo grande capital. Isto tem acontecido em todas as áreas. Aconteceu assim na saúde, está a acontecer agora com a educação, com esta reforma do Ministério da Educação que criou uma central de compras gigante, uma autoridade para a ciência e investigação, que tem um estatuto de sociedade anónima, que não deixa antever nada de bom. Aconteceu assim com laboratórios do Estado, como o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que foi completamente depauperado de meios, recursos e de capacidade de responder a problemas do País, para logo a seguir se contratar grandes empresas, fazer avenças para estudos, para uma série de coisas que podiam ser feitas perfeitamente no âmbito da Administração Pública, por interesse público, com dinheiros públicos e, portanto, se bem geridos, mais barato. A questão é que não tem havido esse interesse por parte dos sucessivos governos, tanto dos do PS como do PSD. Nisso, não discordam muito uns dos outros.

Sempre que se aborda a questão dos aumentos salariais, vem o tópico da responsabilidade. É para escamotear opções políticas?

Naturalmente, nós dizemos que o orçamento realmente não comporta tudo ao mesmo tempo. E é por isso que tem que se tomar decisões. A questão é que nós entendemos que a decisão correcta não é esta, de beneficiar grandes grupos económicos, mas antes de usar os recursos que o País tem para valorizar aquilo que é público e que é de todos, que são os serviços públicos de uma maneira geral. A questão é que tem que se justificar, através da degradação dos serviços públicos, a transferência dos serviços para privados. É uma estratégia tão antiga como a existência de serviços públicos. O problema é que, quando é posta em prática, depois quem sofre mais com isto são as populações.

A política fiscal é um excelente exemplo. O Governo diz que vai fazer uma grande poupança na cobrança de impostos à população. Falamos de 198 milhões de euros no Orçamento do Estado que compara com a descida do IRC para os grandes grupos económicos, que são quem paga IRC, de 300 milhões e com um conjunto de benefícios fiscais [1700 milhões]. Portanto, são ordens de grandeza que deixam clara qual é a posição do Governo na relação entre o trabalho e o capital, as pessoas não gostam muito de falar disso mas o que é certo é que existe. Temos um Governo que intensifica as condições para haver cada vez mais exploração. 

Muitas vezes, as greves não são percebidas por largos sectores da população. Como é que olhas para esta realidade?

Estas batalhas de que estamos a falar são também batalhas ideológicas, que tendem a colocar na praça pública um conjunto de argumentos que não são verdade. Um trabalhador quando está em greve não está alegremente em greve, está em luta, a perder um dia de salário e, eventualmente, quando voltar ao trabalho no dia útil a seguir vai ter mais trabalho para fazer, terá que fazer aquilo que não ficou feito. Portanto, não é uma coisa espetacularmente harmoniosa não ir trabalhar num dia de greve. Tem custos objectivos, até de salário, que custam muito a muitos trabalhadores, principalmente aos que têm o salário mais baixo. Claro que se montou aqui, ao longo dos anos, uma grande estratégia de manipulação da opinião pública, com a ideia de que um trabalhador que faz greve não quer trabalhar.

CréditosRodrigo Antunes / Agência Lusa

A esmagadora maioria dos trabalhadores que fazem greve, para além de estarem a lutar pelos seus direitos, que é uma coisa absolutamente legítima – ninguém gosta de ser roubado –, fazem-no também pelo reforço dos serviços em que trabalham. Portanto, é uma coisa muitas vezes abnegada e solidária. E não há conquista social que não tenha resultado de processos de luta dos trabalhadores, mas isso não interessa ao capital dizer. A Administração Pública é um excelente exemplo disso. A questão dos dias de férias com majoração, a reposição das 35 horas e os aumentos salariais, ainda que insuficientes, que temos tido ao longo dos anos resultaram sempre de processos de luta que foram levados a cabo. E a melhoria dos serviços públicos também. Nós não teríamos o Serviço Nacional de Saúde que temos hoje se não houvesse resistência dos trabalhadores à sua privatização e ao seu reforço. Não teríamos a Escola Pública que temos se não tivesse havido resistência e luta ao longo destas décadas. Portanto, enfim, é mesmo uma questão de propaganda ideológica com muito mau fundo.

Entretanto, e relativamente à questão da greve, existe agora a ameaça que o Governo está a conduzir, através do seu anteprojecto de revisão da legislação laboral, em que se pretende cercear este direito.

Sim, parece que o exercício do direito à greve é a causa dos problemas do país, e não as políticas do Governo. É de uma ironia fantástica. Promovem-se políticas de degradação dos serviços públicos e de baixos salários que obrigam as pessoas a emigrar, a sair da Aministração Pública. Mas se as pessoas se queixam e fazem greve, o problema do mau funcionamento dos serviços públicos é delas. Isto é uma ideia tão espectacular como ridícula. Eu não me recordo de haver greve nenhuma, muito menos greves promovidas pelos sindicatos da Frente Comum e da CGTP-IN, que prejudicasse ou degradasse algum serviço público, que impedisse a melhoria de algum serviço público. Isso nunca aconteceu.

«Não há conquista social que não tenha resultado de processos de luta dos trabalhadores»

Portanto, limitar o exercício do direito à greve como justificação para resolver problemas é por si só (peço desculpa pela dureza das palavras) uma idiotice. Acresce a isto a questão dos serviços mínimos, que é uma das frentes de ataque à greve. Os serviços mínimos existem para se garantirem necessidades sociais impreteríveis. O problema é que este Governo entende que necessidades sociais impreteríveis podem ser tudo o que lhes passe pela cabeça. Mas só nos dias de greve, porque nos outros dias todos são tarefas que não interessam nada. É um absurdo completo e nós não vamos aceitar e vamos lutar, também na Administração Pública, para que este pacote laboral nunca veja a luz do dia.

Pensando concretamente nos trabalhadores da função pública, destacarias alguma medida?

É um dos maiores ataques das últimas décadas ao direito do trabalho, não há ali nada bom. Mas a questão é que uma boa parte dos trabalhadores da Administração Pública, em alguns sectores já mais de metade, têm contratos individuais de trabalho, ou seja, vão levar com o pacote laboral directamente. Sobre o conjunto de todas essas propostas, eu não destacaria nenhuma porque a linha ideológica delas é toda igual: é de degradação. 

«Vamos lutar, também na Administração Pública, para que este pacote laboral nunca veja a luz do dia»

Há coisas tão ridículas como meter o patrão, no nosso caso, o Estado, a escolher que acordo colectivo é que aplica em determinado local de trabalho. Isto é um absurdo e um ataque completo ao direito, quer de filiação e negociação sindical, quer ao espírito da boa-fé da celebração de acordos. Mas o Governo vai metendo engodos para as pessoas se distraírem, como é o caso dos 25 dias de férias, que, no caso da Administração Pública, trata-se de recuperar um direito que ainda por cima já está resolvido numa grande parte das autarquias, por via dos acordos colectivos de empregador público (ACEP).   

Já disseste que esperam um recuo por parte do Governo. O que é que se pode seguir da parte dos sindicatos depois desta acção de luta?

Nós fazemos esta greve no dia 24 e o orçamento é votado na generalidade, no dia 28. Ou seja, o Governo tem tempo para perceber a dimensão da indignação dos trabalhadores da Administração Pública e nós estamos em crer que vai ser muito grande esta greve. Não vai deixar dúvidas a ninguém, não há trabalhadores contentes com estas propostas que estão hoje em cima da mesa. Depois disto, o que se segue é mais luta. Desde logo, uma grande parte dos nossos sindicatos são filiados na CGTP-IN e temos o dia 8 de Novembro para a luta contra o pacote laboral e pela defesa dos serviços públicos. Hoje agendámos uma coordenadora da Frente Comum para dia 30 (se a memória não me falha), e aí vamos decidir o desenvolvimento da luta, que não vai seguramente ficar por aqui.

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