A primeira dessas é o Projecto de Resolução n.º 391/XVII/1.ª «Pela liberalização do transporte ferroviário de passageiros e privatização da CP».
Esta é mais uma iniciativa recheada de frases que farão as delícias das bruncherias. Mas queremos começar por um parágrafo algo longo da proposta, onde a IL apresenta e de imediato refuta um dos grandes mitos das liberalizações: «Adicionalmente, os constantes empréstimos e injeções de capital permitem à CP operar abaixo do valor que seria viável para o serviço de transporte ferroviário de passageiros e impedem a competição em igualdade de circunstâncias com operadores privados que possam procurar entrar no mercado português. É o que, aliás, tem sucedido noutros países europeus através da expansão transfronteiriça, que permitiu a operadores italianos, franceses e espanhóis competir entre si, proporcionando mais e melhores horários, para além de preços mais competitivos a favor dos passageiros.» Reparem, a IL apresenta aqui a promessa que com uma liberalização os preços dos comboios irão baixar «preços mais competitivos a favor dos passageiros» mas depois queixa-se que os «operadores privados» não entram porque a CP pratica preços demasiado baixos («permitem à CP operar abaixo do valor que seria viável»)!
É assim a conversa de brunch: tão depressa se diz uma coisa como o seu contrário. Mas vamos concentrar-nos em tudo o que é dito neste parágrafo, pois aqui está o cerne da mitologia neoliberal e da falsificação da realidade que procura induzir nas pessoas.
– Quais são os «operadores privados» que operam em Espanha, exemplo que a IL chama em defesa da liberalização? O operador francês é a Ouigo e o operador italiano é a Iryo. Ambas as empresas são detidas pelas empresas públicas de França (SNCF) e Itália (Transitália). Não são empresas privadas!
– A operação dessas empresas em concorrência só acontece em troços de alta procura, onde de facto é possível baixar os preços. Mas é aqui que o modelo neoliberal cria outra ilusão: se uma empresa, pública ou privada, só opera nas linhas altamente rentáveis, quem opera nas outras? E a resposta é ninguém (através do encerramento de linhas, que foi o que a liberalização trouxe a Portugal) ou uma empresa, pública ou privada, altamente subsidiada pelo Estado. O modelo que temos em Portugal (e quase em todo o mundo onde há comboios) é um sistema onde as linhas com maior rentabilidade contribuem para o financiamento das linhas com menores rentabilidades. Sejamos claros: a CP, pública ou privada, sem as receitas da CP Lisboa e do Longo Curso, teria de receber mais uns 100 milhões de euros para operar as restantes linhas.
– Um exemplo do modelo que a IL defende foi a liberalização e privatização da ferrovia no Reino Unido, onde os liberais são mais liberais a dormir que a Mariana Leitão nos seus piores dias. Liberalizaram e privatizaram tudo, desde a infra-estrutura ao serviço, pulverizando a oferta em dezenas de empresas. E provocaram um desastre absoluto. Os custos para o Estado dispararam: o Estado passou a alimentar com milhares de milhões de euros um sistema em completa ruptura. A coisa foi tão grave que os próprios liberais ingleses foram obrigados a ganhar juízo e a renacionalizar o essencial da ferrovia, primeiro a infra-estrutura e depois as várias operações comerciais.
– Com a liberalização proposta pela IL, os preços iriam subir e um conjunto de linhas iriam desaparecer outra vez, pois não geram uma oferta solvente. E no dia seguinte à privatização, a IL estaria a apresentar propostas para tudo ser altamente subsidiado pelo Estado, pois não haveria outra forma de os seus amigos ganharem dinheiro com a ferrovia.
«Um exemplo do modelo que a IL defende foi a liberalização e privatização da ferrovia no Reino Unido, onde os liberais são mais liberais a dormir que a Mariana Leitão nos seus piores dias. Liberalizaram e privatizaram tudo, desde a infra-estrutura ao serviço, pulverizando a oferta em dezenas de empresas.»
O resto da proposta da IL é mais conversa de bruncherie. Dão porrada na CP, como se os problemas desta não tivessem causas concretas, como se a IL e a liberalização em curso há mais de 25 anos não fizessem parte do problema. Sim, porque o facto de haver sempre um liberal a espumar «mais», «mais», «mais», não nos pode fazer esquecer que há um processo de liberalização em curso desde os anos 90:
– Foi através da liberalização das aquisições de comboios que se destruiu a fábrica em Portugal que construía comboios. Privatizou-se a fábrica, e as empresas portuguesas passaram a comprar «no mercado» os comboios. Resultado: tudo acabou nas mãos das multinacionais que escrevem o guião que as famílias políticas entreguistas representam em Portugal.
– Por ordem do directório europeu (que nos seus países se recusou a executar essa ordem) e da preparação da liberalização, Portugal separou a infra-estrutura da exploração comercial, separou da CP a REFER (que, como se a asneira não fosse suficiente, ainda fundiu com as Estradas de Portugal), separou a roda do carril, e depois, com mais liberalização, transformou uma empresa pública que gerava respostas extraordinárias (a construção da Linha sobre a Ponte 25 de Abril e a quadruplicação da Linha de Sintra feita com esta a operar, por exemplo) num mar de subcontratações completamente ineficaz, desorganizado e caro.
A ferrovia nacional precisa hoje, com urgência, do mesmo que precisa há muitos anos e os sucessivos governo e as sucessivas liberalizações lhe têm negado: precisa de comboios e de com esses comboios aumentar e melhorar a oferta; precisa de pagar melhor e de contratar mais trabalhadores; precisa de requalificar as estações e os sistemas de apoio aos utentes, precisa de reconstruir a capacidade pública de projectar, fazer e fiscalizar. Nada disto será resolvido pela liberalização, e tudo isto tem sido adiado em nome, primeiro do défice e depois do excedente orçamental.
«Com a liberalização proposta pela IL, os preços iriam subir e um conjunto de linhas iriam desaparecer outra vez, pois não geram uma oferta solvente. E, no dia seguinte à privatização, a IL estaria a apresentar propostas para tudo ser altamente subsidiado pelo Estado, pois não haveria outra forma de os seus amigos ganharem dinheiro com a ferrovia.»
Um outro dado que queremos destacar é que a IL, além de ignorar a história da CP, que remonta a desastrosas experiências privadas, propositadamente omitiu qualquer referência à empresa privada que hoje já opera em Portugal no transporte ferroviário de passageiros: a Fertagus. O que se compreende: a experiência tem sido um sorvedouro de recursos públicos que fez crescer a ineficiência do sistema. Recordamos que:
– A Fertagus recebeu ao longo de toda a sua existência um conjunto de apoios públicos que a CP não recebe. Só em indemnizações compensatórias são mais de 200 milhões, apoios que as linhas urbanas da CP não recebem. Que a Fertagus usa comboios públicos, linhas públicas e estações públicas, em condições mais favoráveis que a CP. Que a Fertagus pratica preços (e recebe compensações públicas pelos passes) que são o dobro dos da CP. E mesmo assim, não dá lucro, ao contrário da CP Lisboa.
– Que o facto de haver uma empresa dentro da Rede Metropolitana com o exclusivo de uma linha impediu que a CP pudesse socorrer as populações realizando serviços nessa Linha. A oferta é hoje menor do que pode ser porque a Fertagus não compra comboios e não permite que os comboios da CP façam serviço na Linha que lhe está entregue em exclusivo.
A IL sabe que não pode haver nenhuma privatização agora. Porquê? Porque primeiro é preciso que a CP compre os comboios de deveria ter comprado em 2009 e os sucessivos governos (apesar das múltiplas promessas) não lhe permitiram comprar. É nessa altura que a IL quer entregar a CP à exploração privada: quando esta puder explorar os comboios novos. E por isso fala em 2030.
Quanto à entrada de «operadores privados», como reivindica a IL, o principal operador que se posiciona para entrar na operação ferroviária em Portugal é a RENFE. Mas a Renfe não é uma empresa privada! É uma empresa pública. Mas uma empresa pública com comboios, que é coisa que a CP não tem. Porquê? Porque os governos espanhóis têm investido na RENFE, na renovação do material circulante da RENFE, coisa que em Portugal tem faltado.
A devolução de bilhetes em dia de greve
Outra das medidas destinada a fazer sucesso na bruncherie é a devolução do valor dos passes em dias de greve, que a IL quer fazer votar no dia 11 de Dezembro. A ideia é simples e fácil de popularizar: se uma pessoa tem um passe, e num dia não há transporte, o utente tem direito a ser indemnizado. Mas depois, é tudo conversa de bruncherie, destinada a alimentar a conversa de grunhos doutores e outros reaccionários. Damos três exemplos que mostram a estupidez da proposta da IL:
– O utente tem o passe verde ferroviário, nesse dia há greve e não há comboios. O utente tem direito a receber 1/30 avos do valor do passe: 67 cêntimos. Mas como o valor não alcança o valor mínimo de um euro para ter direito a receber, não recebe nada.
«Um outro dado que queremos destacar é que a IL, além de ignorar a história da CP, que remonta a desastrosas experiências privadas, propositadamente omitiu qualquer referência à empresa privada que hoje já opera em Portugal no transporte ferroviário de passageiros: a Fertagus.»
– O utente tem o passe intermodal da Área Metropolitana de Lisboa, nesse dia há greve e não há transportes. Tem direito a receber 1,35 euros de indemnização. Mas cada empresa ferroviária integrada no passe tem que pagar a sua parte (CP e Fertagus). Também nenhum pagamento será feito por inferior ao tal euro.
– A IL tem o cuidado de afastar o transporte rodoviário desta proposta. Porquê? Porque está essencialmente privatizado, e a IL nem a brincar faz propostas que prejudiquem os seus financiadores.
O que vai a votos no dia 11 é assim mais uma fraude. Não dará um cêntimo aos utentes. É só conversa e provocação. E sabem porque é que é tudo treta? É porque a IL sabe que se as empresas de transportes (todas!) tivessem de pagar uma indemnização significativa aos utentes em dia de greve – assim como cinco ou dez euros no caso de um passe mensal – os patrões ficavam nas mãos dos trabalhadores e teriam de ceder às suas reivindicações (porque não suportariam o impacto económico de uma greve). E a IL sabe bem a quem serve!
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