|Tânia Mateus

Se a violência sobre as mulheres não conhece limites, nós abrimos um novo caminho

A persistência de várias formas de violência está, também, naquilo que o Governo escolhe não fazer: falta de habitação, salários de miséria, precariedade permanente – nada disso é fatalidade. É uma escolha política que transforma a dependência económica das mulheres numa forma de violência.

Milhares participaram na Manifestação Nacional de Mulheres promovida pelo Movimento Democrático de Mulheres (MDM), no âmbito das comemorações do Dia Internacional da Mulher, numa jornada de denúncia dos problemas que afectam as mulheres e de afirmação de força e unidade na defesa e conquista dos seus direitos. Lisboa, 11 de Março de 2023
CréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

Há coincidências que parecem saídas de um sketch de humor negro. 

Assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres e, neste momento, discutimos o Pacote Laboral «Trabalho XXI» – um brutal ataque às mulheres trabalhadoras – e o Orçamento do Estado para 2026, onde os direitos das aparecem apenas como nota de rodapé.

Se alguém quisesse demonstrar como a violência também se constrói por decisões políticas, não encontraria alinhamento mais expressivo. De um lado, temos o Governo com discursos de condenação, planos de igualdade, campanhas institucionais; do outro, propostas que aprofundam baixos salários, vínculos precários, desregulação de horários, desproteção no emprego, falta de habitação acessível e desinvestimento nos serviços públicos. Condições que empurram as mulheres para vidas sem autodeterminação e onde a violência é muitas vezes inescapável.

Ironias à parte, o contraste é demasiado evidente para ser ignorado, até porque a violência não se resume ao que acontece entre quatro paredes; também se escreve nos orçamentos, nas opções políticas e nas leis que determinam o quotidiano de todas nós.

A violência contra as mulheres é tudo o que prende, torce, condiciona. Mas, a conversa oficial limita-se ao óbvio: agressões e denúncias (não se pretende desvalorizar, mas realçar as contradições), desconsiderando que a violência está em todo o lado: na prostituição, na pornografia, pressão e chantagem no trabalho, no: «senão queres, há quem queira», «teres filhos não é um problema da empresa», está nos despedimentos por gravidez, nas carreiras vedadas por maternidade, nos horários de trabalho desregulados.

E está – com uma nitidez irritante – na discriminação salarial que, todos os anos, o Dia Nacional da Igualdade Salarial recorda.

Como o MDM [Movimento Democrático de Mulheres] denunciou na sua tomada de posição, a discriminação salarial resulta da exploração, da precariedade, do desrespeito pelos direitos de maternidade, da feminização dos vínculos precários. Disfarça-se com estereótipos, mas a raiz é política: os governos preferem a retórica da igualdade às medidas estruturais que a garantiriam, porque há quem lucre com a discriminação.

A persistência de várias formas de violência está, também, naquilo que o Governo escolhe não fazer: falta de habitação, salários de miséria, precariedade permanente – nada disso é fatalidade. É uma escolha política que transforma a dependência económica das mulheres numa forma de violência.

Entre orçamentos e pacotes laborais, o Governo eterniza desigualdades e violência.

Ah, o famoso pacote. O da flexibilidade, mas que na prática significa exploração brutal, traduz-se, diretamente, em mais vulnerabilidade e mais violência sobre as mulheres.

Num país onde as mulheres são maioria nos trabalhos precários, onde os salários médios são baixos e o das mulheres ainda mais, onde as mulheres trabalhadoras estão sobretudo em setores mal pagos, precários e com horários desregulados, precarizar, desproteger, isolar mais é, literalmente, aprofundar a violência. Não é figura de estilo. É consequência direta.

Enquanto isso, no Orçamento do Estado cabem todas as prioridades menos aquelas que poderiam garantir que as mulheres deixassem de viver encurraladas entre salários curtos e rendas impossíveis e serviços públicos sem capacidade de resposta. 

A intervenção do Governo – ao nível do OE e da legislação laboral – deveria ter como objetivo a prevenção da violência, além de assegurar os meios e recursos públicos necessários para que as mulheres se libertem dela. São, pelo contrário, mecanismos que reproduzem vulnerabilidade, desigualdade e violência

O rolo compressor destas políticas esmaga-nos todos os dias e, para rematar, ainda ouvimos que a culpa é nossa: não corremos depressa, não nos empoderámos, não nos reinventámos. Esquecem-se que ninguém se liberta da exploração com slogans, nem se escapa da violência sem direitos, sem prevenção e sem políticas que coloquem a vida com direitos no centro.

«Enquanto isso, no Orçamento do Estado cabem todas as prioridades menos aquelas que poderiam garantir que as mulheres deixassem de viver encurraladas entre salários curtos e rendas impossíveis e serviços públicos sem capacidade de resposta.»

O que queremos é simples: direitos que existam na prática, não apenas no papel.

Queremos salários que permitam viver e romper ciclos e relações violentas.

Queremos habitação que não sugue metade da vida de quem trabalha.

Queremos creches, lares, respostas sociais públicas que libertem tempo, energia e autonomia.

Queremos cuidados de saúde dignos e acesso aos direitos sexuais e reprodutivos.

Queremos educação sexual, igualdade desde a infância, combate às representações violentas.

Queremos o reconhecimento da prostituição como violência e programas de saída que garantam emprego, saúde, habitação e proteção social às mulheres em situação de prostituição.

Queremos justiça que chegue a horas e proteção efetiva às vítimas.

Queremos paz – porque nenhuma guerra é justa para quem a vive.

Queremos um país onde as políticas públicas não sejam cúmplices por omissão.

25 de novembro: não vamos só lembrar. Vamos exigir.

Por isso, o MDM apela a todas as mulheres a afirmar: se a violência contra as mulheres não conhece limites, então somos nós que os traçamos. Vamos estar na rua, na luta por uma vida vivida sem violência.

Aderir à Greve Geral a 11 de dezembro é, também, transformar o 25 de novembro em mais do que uma data, mas uma consequência da nossa luta.

Prevenir a violência exige: estabilidade, direitos, salários dignos, serviços públicos capazes de assegurar respostas estruturadas, habitação acessível. Exigimos políticas que permitam às mulheres sair de contextos de violência, não aprisionar ainda mais. Rejeitamos o Pacote Laboral! Queremos viver os direitos e respeito à Constituição. Traçamos a linha vermelha e não recuamos!


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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