|Sandra Benfica

«Obrigado, Mãe»: uma campanha de manipulação contra os direitos das mulheres

Que ninguém se deixe iludir: esta campanha não é um caso isolado, nem um mero exagero mediático. É um ataque calculado, parte de uma ofensiva mais vasta contra os direitos das mulheres e contra o percurso de emancipação.

Créditos / Youtube/Miguel Milhão

No passado domingo, em pleno horário nobre e durante a transmissão da final da Taça de Portugal, milhões de pessoas foram confrontadas com a publicidade de um videoclipe intitulado «Obrigado, Mãe». 

À primeira vista, poderia passar por mais um anúncio entre muitos. Mas não era. Tratava-se de um instrumento deliberado de manipulação emocional e violência simbólica contra as mulheres – um ataque cuidadosamente encenado ao direito à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), um direito legalmente protegido e duramente conquistado pelas mulheres em Portugal. 

Tanto assim é que rapidamente se tornou evidente que o vídeo estava – e continua – a ser reproduzido com uma frequência chocante e perturbadora. Não se tratou, portanto, de uma emissão isolada, o que por si já constituiria gravidade.  A repetição sistemática revela uma estratégia de largo alcance, cuidadosamente planeada, que instrumentaliza os meios de comunicação de massas para normalizar um discurso retrógrado e reacionário contra as mulheres e os seus direitos.

Esta campanha não é neutra, nem inofensiva. Pelo contrário, inscreve-se numa lógica bem definida de guerra cultural, promovida por setores ultraconservadores que, sistematicamente, reabrem a discussão em torno do direito à IVG – uma conquista que nunca perdoaram às mulheres.

E este direito não é apenas jurídico: é um avanço civilizacional, um marco de dignidade, autonomia e saúde pública, de que nos devemos orgulhar como conquista coletiva num Estado democrático de direito.

A lógica moralista e falaciosa inscrita no referido videoclipe procura destruir tudo o que foi construído, apelando a emoções primárias e a uma moralidade imposta, distorcida e absolutista. Impõe-nos uma narrativa insidiosa e manipuladora, que vilifica o direito de opção à IVG e apresenta a maternidade como uma obrigação moral universal – apagando deliberadamente a pluralidade das vivências, decisões e contextos das mulheres.

«Esta campanha não é neutra, nem inofensiva. Pelo contrário, inscreve-se numa lógica bem definida de guerra cultural, promovida por setores ultraconservadores que, sistematicamente, reabrem a discussão em torno do direito à IVG – uma conquista que nunca perdoaram às mulheres.»

Sob uma aparência melodramática e esteticamente cuidada, esconde-se uma violência simbólica real e perigosa, que tenta reescrever o debate público sobre saúde sexual e reprodutiva com base na culpa, na vergonha e no sacrifício – reeditando uma velha visão obscurantista onde o corpo e a sexualidade das mulheres voltam a ser tratados como território de disputa moral, religiosa ou política.

Que esta mensagem tenha e esteja a ser veiculada por canais de televisão com responsabilidade pública e social é em si mesmo um sinal alarmante.  Não estamos apenas perante uma peça publicitária ofensiva. Estamos perante a normalização institucional de um discurso de ódio, travestido de liberdade de expressão. A TVI e outros canais escolheram dar palco a uma narrativa regressiva, sem qualquer enquadramento crítico ou contraditório, contribuindo ativamente para a difusão de mentalidades que colocam em causa direitos fundamentais das mulheres.

O silêncio cúmplice das direções editoriais e das entidades reguladoras expõe, por si só, a gravidade da situação. Os canais de televisão não podem escudar-se na neutralidade editorial quando estão legalmente obrigados a respeitar os direitos fundamentais. A legislação é clara:

    • O Código da Publicidade (Decreto-Lei n.º 330/90) proíbe publicidade com conteúdos discriminatórios ou ofensivos, nomeadamente contra a dignidade das mulheres (art.º 7.º);

    • A Lei da Televisão (Lei n.º 32/2003) determina que os conteúdos televisivos devem respeitar os direitos fundamentais e não promover discursos de ódio ou discriminação (art.º 27.º);

    • A Lei da Igualdade de Género (Lei n.º 4/2018) estabelece que qualquer comunicação publicitária que perpetue estereótipos de género ou viole os direitos das mulheres pode ser sancionada.

Perante estas obrigações legais, o silêncio das direções e das entidades reguladoras não é apenas omissão – é conivência.

É neste contexto que o papel do financiador se torna ainda mais evidente. Miguel Milhão, dono da Prozis e autodenominado «Guru Mike Billions», é uma figura recorrente na promoção de discursos misóginos, autoritários e antidemocráticos. Usa o seu poder económico e a visibilidade mediática como armas de arremesso contra os direitos das mulheres, procurando impor uma visão moralista, obscurantista e elitista da sociedade, onde o verdadeiro alvo é o percurso emancipador das mulheres – um processo coletivo e histórico que certos setores nunca aceitaram. O videoclipe «Obrigado, Mãe» é apenas mais um episódio da sua estratégia de influência e manipulação.

Que ninguém se deixe iludir: esta campanha não é um caso isolado, nem um mero exagero mediático. É um ataque calculado, parte de uma ofensiva mais vasta contra os direitos das mulheres e contra o percurso de emancipação, dignidade e justiça que temos vindo a construir ao longo de décadas de luta.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990

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