Centenas de milhares de hectares de terras arderam ou estão a arder ou ainda irão arder por essa Europa fora durante o que resta do Verão. Pessoas continuam a morrer, casas, propriedades rurais e urbanas, culturas agrícolas, rebanhos, florestas, pomares, árvores centenárias desapareceram sob a fúria de incêndios descontrolados e alimentados por ventos soprados de todas as direcções, como é próprio desta época do ano. E também por incendiários a soldo, que não são os tais loucos ou «lobos solitários», como insiste em dizer-se. Aos sistemas de poder continua a ser difícil assumir que esses criminosos não passam, com frequência, de simples peões de estratégias terroristas com vasto e desestabilizador alcance.
Aconteceu mais ou menos o mesmo no ano passado, e no anterior, e no anterior… Em Portugal usa-se como padrão de comparação o funesto ano de 2017 para concluir que talvez agora, passados oito anos de desleixo, incompetência e promessas esquecidas, os danos sejam ainda mais extensos, de acordo com a experiência popular. A tal experiência que vai sendo solidificada através da acumulação de camadas de sofrimento e esquecimento e que de nada vale para os sábios das estatísticas e das explicações infalíveis. Os quais, no entanto, mais não fazem do que espraiar irresponsabilidade belicista e desumanidade, movendo-se entre as cadeiras ergonómicas de gabinetes climatizados e as areias fofas e águas tépidas de paraísos meridionais privados, mesmo quando ainda são denominados como «públicos».
Angústia, desespero, solidão, heroísmo
A imagem angustiante multiplicou-se em cenários quase sempre semelhantes em Portugal, Espanha, França, Grécia, Chipre, Bulgária e outras regiões europeias. A imagem de populações inteiras, homens, mulheres, crianças de aldeias e vilas cuja existência os governantes das grandes capitais desconheciam, ou com nomes que ouviram pronunciar pela primeira vez, batendo-se contra chamas monstruosas e impiedosas, armadas com ramos de vegetação arrancada do mato ou punhados de terra para tentarem salvar as suas casas, as suas propriedades e também as dos vizinhos. Entre essas populações nunca faltam, de facto, sobretudo em momentos duros como estes, a solidariedade e o espírito comunitário. Dois conceitos que, tal como o de paz, foram erradicados e reduzidos a nada na linguagem única e inquestionável da «democracia liberal», o regime no qual os seres humanos não passam de meros utensílios.
Ao lado das populações, desdobrando-se ao ritmo de urgências permanentes e, por vezes, distantes centenas de quilómetros entre si, estiveram e estão os bombeiros, seres humanos que põem as suas vidas em risco e ao serviço das vidas dos outros para tentar garantir a segurança das pessoas – este é o verdadeiro sentido da palavra segurança – com os meios disponíveis e que nunca são os suficientes. Para travar as ingratas batalhas precisam de água em abundância, mas a água nem sempre está perto, ou acessível, ou existe na quantidade necessária. A energia eléctrica também é fundamental, mas essa quase sempre é sequestrada pelas chamas, logo que irrompem.
São mangueiras, não mísseis…
Se os instrumentos de «segurança» dos bombeiros fossem carros de combate, submarinos, caças ao preço de milhões por cada asa, mísseis, metralhadoras e munições, então nunca lhes faltariam, para isso haveria sempre orçamento. Eles precisam, porém, de coisas mais prosaicas, auto-tanques, mangueiras, ambulâncias, viaturas bem equipadas para o desempenho das suas funções humanitárias, comunicações de jeito. Perante essas carências sobram-lhes coragem e a dedicação aos seres humanos, coisas que os governos «liberais» não precisam de lhes fornecer e não saberiam como. Não esqueçamos que a esmagadora maioria dos bombeiros portugueses são «voluntários», isto é, põem o resto da sua vida de lado, incluindo a profissão que dá de comer às suas famílias, para socorrer outros seres humanos em perigo. É difícil encontrar um tão significativo exemplo de generosidade, de tanta dedicação a uma causa humanista, a da defesa da vida.
Há também os jornalistas no terreno, cujo trabalho nos permite redescobrir uma profissão humanista, assente na verdade, tão aviltada por patrões gananciosos, chefias mercenárias e vedetas que se alimentam da aldrabice. Mulheres e homens jovens e menos jovens que nos dão a conhecer as dimensões de horrores que as palavras apenas constatam e esclarecem factualmente, porque não necessitam de grandes teorizações em registo de «comentariado», e nos conduzem ao coração das tragédias humanas e naturais. Repórteres que, dedicados ao seu trabalho, quantas vezes ignoram, ou tentam ignorar, os apelos à salvaguarda da própria segurança pessoal. Profissionais de mão cheia, que ainda conseguem existir para lá da inutilidade da sapiência absoluta adquirida nos MBA, doutoramentos e sebentas universitárias que ensinam a vida como não existe – uma realidade paralela.
«Não esqueçamos que a esmagadora maioria dos bombeiros portugueses são "voluntários", isto é, põem o resto da sua vida de lado, incluindo a profissão que dá de comer às suas famílias, para socorrer outros seres humanos em perigo.»
Enquanto Portugal arde de Castelo Novo, na Beira Baixa, a Chaves, Mirandela e Bragança, em Trás-os-Montes, prossegue a eterna narrativa sobre os meios aéreos, ou a falta deles, sem menosprezar o corajoso e arriscado trabalho dos pilotos dos helicópteros e dos escassos aviões que estão no teatro de operações.
O primeiro-ministro Montenegro diz-se surpreendido com o facto de lhe parecer existir uma percepção de que «o Governo esteve distante» dos acontecimentos dramáticos. Não nos diga! Arganil e Pampilhosa da Serra ardiam enquanto ele estava a bronzear-se e «a saltar ondas» na costa algarvia, como relatou a comunicação social. De onde seguiu para a festa do seu partido no Pontal, que não cancelou, apesar do sofrimento do povo e da morte de pessoas, na qual bebeu alegremente uns copos e discursou contra o Tribunal Constitucional por interferir nas suas decisões como chefe do Governo. Em boa verdade, esta diatribe revelou que o convívio em coligação com as hostes fascizantes de Ventura já lhe pegou tiques comportamentais salazarentos.
Injustiça para com Montenegro
Por outro lado, acusa-se o chefe do Governo de ter agido com lentidão no recurso ao tão endeusado Mecanismo Europeu de Protecção Civil.
Por uma vez, porém, o país está a ser injusto para com Montenegro. No fundo ele sabe que tanto fazia recorrer ou não a esse serviço porque os resultados (nulos) seriam os mesmos. Os tão badalados aviões Canadair que actuaram em Portugal foram cedidos temporariamente por Marrocos e outros dois chegarem, já na ausência destes, de um país como a Grécia, quase tão flagelado pelos fogos como Portugal.
«Arganil e Pampilhosa da Serra ardiam enquanto ele estava a bronzear-se e "a saltar ondas" na costa algarvia, como relatou a comunicação social. De onde seguiu para a festa do seu partido no Pontal, que não cancelou, apesar do sofrimento do povo e da morte de pessoas, na qual bebeu alegremente uns copos e discursou contra o Tribunal Constitucional por interferir nas suas decisões como chefe do Governo.»
A Suécia cedeu dois Fire Boss, que já tinham estado na Bulgária, e a França mandou um helicóptero. Consta que equipas de combate a incêndios vindas da Letónia estiveram por cá de 1 a 15 de Agosto e que, a seguir, vieram outras de Malta, que se manterão até 15 de Setembro.
E foi tudo. Uma migalha perante a falta de meios de combate à calamidade dos fogos que continua a ser sentida. Por exemplo, um único foco de incêndio iniciado na região de Piódão alastrou com rapidez a Arganil e Pampilhosa da Serra, estendeu-se depois à Beira Baixa e entrou, a seguir, pela Beira Alta, depois de carbonizar grande parte das serras da Gardunha e da Estrela, manteve-se activo durante um período de tempo inacreditável – mais de duas semanas. «A solidariedade europeia não conhece fronteiras», ufanou-se a senhora Von der Leyen ao anunciar um suposto «apoio a Portugal». E Montenegro agradeceu por quase nada, trocando a arrogância em Lisboa pela sabujice a Bruxelas.
Poucos milhares para a vida, um bilião para a morte
A chefe da Comissão, no entanto, tinha muito mais, e mais importante, em que pensar. Estava de partida para Washington na companhia de alguns dos principais chefes de governos da União Europeia, uma romaria cumprida enquanto a Europa ardia, de braço dado com o homúnculo Zelensky. Todos foram beijar os pés ao imperador Trump, como se sabe um eterno apaixonado pela Europa. A excursão teve como objectivo principal reunir ainda mais meios financeiros e materiais para que a mortandade de ucranianos e russos possa prosseguir na tal guerra «necessária» para garantir a «segurança» da Europa.
Comparemos a despesa de umas centenas de milhares de euros, suficiente para o envio de quatro aviões, um helicóptero e meia dúzia de equipas de bombeiros de dois pequeníssimos países, com a verba de 100 mil milhões de euros que Trump obriga a União Europeia a investir na compra de armamento que será oferecido ao regime de Kiev. O negócio é simples e muito favorável aos povos europeus, como sempre acontece quando os seus dirigentes «negoceiam» com Trump para poderem continuar a guerra: os Estados Unidos estão dispostos a oferecer 100 mil milhões de euros em armas ao governo filonazi de Kiev desde que seja a União Europeia a pagá-las à indústria de morte norte-americana.
Aos 100 mil milhões de euros, uma verba já de si astronómica, somemos os 800 mil milhões que a União Europeia pretende investir na «modernização» do seu «sistema de segurança», isto é, do aparelho de guerra. Para justificar essa verba a roçar o bilião de euros (um milhar de mil milhões), um comboio de zeros à direita, que a União Europeia não tem, sobretudo na crise existencial em que está mergulhada, modernizou-se a tese da «ameaça russa» e pretende-se fazer crer que os russos não pensam noutra coisa que não seja arrasarem a Europa para virem tomar banho no Atlântico.
«Comparemos a despesa de umas centenas de milhares de euros, suficiente para o envio de quatro aviões, um helicóptero e meia dúzia de equipas de bombeiros de dois pequeníssimos países, com a verba de 100 mil milhões de euros que Trump obriga a União Europeia a investir na compra de armamento que será oferecido ao regime de Kiev.»
Ao olhar o contraste entre a calamidade dos incêndios e o culto institucional da guerra não é difícil perceber mais um exemplo das opções desumanas da União Europeia. Conclusão que é a mais lógica consequência de um sistema de poder transnacional que encara as pessoas como meros serviçais do dinheiro e do lucro.
O governo da coligação PSD/CDS/Chega e IL, a exemplo da quase totalidade dos seus congéneres dos 27, concede migalhas para a segurança das pessoas contra as calamidades naturais ou provocadas, como grande parte dos incêndios, e dispõe-se a gastar verbas inimagináveis para criar um aparelho de morte susceptível, por este caminho, de sacrificar milhares e milhares de cidadãos. O sistema da «democracia liberal», tornado obrigatório e único em todo o espaço federalista da Europa, não tem qualquer vontade e interesse em apoiar os povos nas suas lutas contra os fenómenos naturais porque, para ele, as pessoas são instrumentais a ponto de estarem destinadas, se o caminho actual não for invertido, a ser transformadas em carne para canhão. Basta olhar para o que está a acontecer na Ucrânia e para o apoio incondicional que a União Europeia testemunha ao destrambelhado Zelensky no sacrifício diário, e inútil, de milhares dos seus concidadãos. Não tenhamos dúvidas: se tudo continuar como está, essa poderá ser a sorte que nos espera.
Se apenas sabem viver em guerra, os governos europeus não têm qualquer necessidade de a inventar. Basta que se dediquem a tomar as medidas preventivas realistas, necessárias e eficazes contra as calamidades naturais – incêndios, cheias, ciclones, tremores de terra, tempestades localizadas, vagas de calor e frio extremos – e a criar sistemas de protecção civil dotados com os fundos e os meios indispensáveis para travar os combates em defesa da segurança das pessoas, e nos quais estas possam confiar. Essa é a verdadeira segurança de que os povos da Europa precisam.
Agora que venha o voto
Ao tentarem apagar os fogos descontrolados com as próprias mãos, com heroísmo, uma coragem e uma generosidade de que só o povo é capaz, os portugueses atacados por esse flagelo sentiram, em carne viva, o desespero da solidão, do isolamento, do esquecimento. Agora, em tempos próximos de eleições, assistiremos aos desfiles festivos dos membros da classe política governante, que se acha o «arco da governação», para pedinchar votos até em lugares de que nem querem saber os nomes, prometendo para ontem a solução dos problemas dos incêndios, ao mesmo tempo que se vangloriam da abolição de cobranças que já nem existem, como as taxas moderadoras na saúde, que o governo decidiu «eliminar» na sua última reunião. Por aqui se percebe o destino que espera o mirabolante pacote eleitoral de medidas alegadamente reparadoras dos prejuízos dos incêndios.
Arrebanhados os votos, a arrogância autoritária voltará a descer sobre o país e atingirá, sobretudo, os mais desfavorecidos. Dentro de um ano regressarão os incêndios, principalmente no território que ainda falta arder, mas, antes disso, as populações indefesas terão de enfrentar as cheias no Inverno, as chuvas torrenciais e arrasadoras quando menos se espera e outros fenómenos naturais nocivos, alguns deles localizados, que até nem os mais velhos se recordam de ter vivido.
«Arrebanhados os votos, a arrogância autoritária voltará a descer sobre o país e atingirá, sobretudo, os mais desfavorecidos. Dentro de um ano regressarão os incêndios, principalmente no território que ainda falta arder (...).»
Cumpre-se assim o destino ditado pela «democracia liberal», o único regime permitido até ao dia em que as pessoas, lembrando-se destes e dos anteriores tempos de sofrimento máximo, provocados pelas calamidades naturais e governamentais, decidirem que a guerra na qual devem combater é contra o sistema de poder que arruína o seu dia-a-dia. A partir de então não permitirão que façam delas cúmplices e vítimas dos planos de extermínio colectivo inventados pelos seus governos para que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres ainda mais pobres.
A Europa já está em guerra. Não é preciso inventá-la. A segurança a garantir é a das pessoas, não a dos impérios financeiros, económicos e militares que sequestraram os chamados «valores ocidentais».
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