|José Goulão

Os andrajosos e a segurança da Europa

Para sossego de todos nós, alegremo-nos por isso, a peste dos agonizantes arribados em jangada desconjuntada às rentáveis areias dos Algarves vai voltar para donde veio e de onde nunca deveria ter saído.

A 8 de Agosto, um barco com 38 migrantes marroquinos, incluindo sete menores, aportou à praia da Boca do Rio, concelho de Vila do Bispo, Faro. 
A 8 de Agosto, um barco com 38 migrantes marroquinos, incluindo sete menores, aportou à praia da Boca do Rio, concelho de Vila do Bispo, Faro. CréditosJoão Matos / Agência Lusa

Ventura mandou celebrar um Te Deum, Montenegro virou-se para o Tribunal Constitucional e desafiou, batendo com um punho na palma da outra mão, «bem feita, bem feita, para não estarem com esquisitices». Rangel enviou um mail para Netanyahu garantindo que sabemos muito bem honrar os seus exemplos, Costa remeteu um emoji com aplausos e até Von der Leyen telefonou ao chefe do governo insuflando-lhe coragem para continuar a combater uma descabelada Constituição da República.

Para sossego de todos nós, alegremo-nos por isso, a peste dos agonizantes arribados em jangada desconjuntada às rentáveis areias dos Algarves vai voltar para donde veio e de onde nunca deveria ter saído. A nossa raça privilegiada não aceita mais ser conspurcada e não tem culpa de que os náufragos famintos, fiados nos mitos da nossa hospitalidade tradicional e do reconhecido humanismo dos nossos egrégios avós, tenham nascido na hora e no lugar errados e, ainda por cima, com uma cor de pele demasiado tisnada.

Se fossem como nós, com a vantagem suplementar de terem cabelos aloirados e olhos azuis e tivessem chegado em automóveis topo de gama de terras da Galícia e da Volínia agregadas à Ucrânia, então tudo bem, haveria sempre lugar para mais um, para muitos mais.

Mas atreverem-se a vir do Norte de África em redescobertos tempos de purificação da raça é uma rematada inconsciência, uma desafiadora provocação.

As autoridades e os juízes de serviço olharam para as leis com os olhos assépticos e tecnocráticos que lhes competiam e fizeram o que tinham a fazer: mandá-los embora.

As entidades de socorro armaram umas tendas e, para isso, até tiveram a boa vontade de cancelar uns quantos eventos desportivos; deram sopinha e umas sandes reforçadas aos intrusos, reservaram umas camas de hospital aos mais débeis até que conseguissem pôr-se de pé e agora ala que se faz tarde. Cumprimos a nossa missão evangélica e, a partir daí, que vão morrer para outro lado porque isso é assunto que já nos diz respeito.

É verdade que essas três dezenas de potenciais terroristas e criminosos eram oriundos de um país muito nosso amigo e que representa a «nossa civilização» no Norte de África, sob o comando firme e democrático do rei Mohammed VI. Marrocos é como se fosse um nosso irmão na União Europeia, é pena que se tenha desenvolvido num continente de incivilizados e bárbaros, mas tivemos o cuidado de fazer acordos especiais com ele para que se sinta quase como um de nós.

Tem as suas bolsas de pobreza, é certo. Há muitos marroquinos como os portugueses, sem outro remédio que não seja o de procurarem sobreviver, com a dignidade possível, noutros países. É muito provável que naquela terra até haja barracas, mas isso é porque os seus responsáveis ainda não receberam formação em Loures e outros criativos municípios portugueses sobre os métodos para acabar com elas.

Marrocos, aliás, tem ainda a seu favor o facto se ser uma espécie de Israel aqui bem mais perto, merecendo assim as correspondentes atenções dos governos da União Europeia por tratarem o povo do Sahara Ocidental tal como o nosso aliado Netanyahu cuida dos palestinianos. Neste caso, porém, há ainda mais vantagens para o nosso lado: como paladino da democracia que é, o rei Abdallah VI pode gerir como quer as riquezas do Sahara Ocidental que não lhe pertencem, sobretudo os generosos recursos de pesca. E fá-lo até de maneira altruísta, permitindo aos irmãos da UE, entre eles nós, como seus dilectos vizinhos, partilhar à vontade dos grandes banquetes de rapina em águas territoriais do Sahara Ocidental, sob os olhos tornados democraticamente impotentes dos seus legítimos proprietários.

O rei Mohammed VI é um amigão, mas amigos, amigos, negócios à parte e não pode distrair-se com os indigentes que vivem contrariados no seu país e querem incomodar a segurança de outros com manobras clandestinas e a salto.

Os cuidados securitários

Sim, não se trata de exagero. Aquelas três dezenas de farrapos humanos que se arriscaram, atraídos pela miragem de uma vida melhor, nas águas do Atlântico e sob o abrasador sol estival, são uma ameaça à segurança da Europa. Assim o dizem os nossos governantes e não há que duvidar deles. Em verdade vos digo que este turismo da fome é muitas vezes pior que o turismo de pé descalço.

Como se não bastassem as ânsias expansionistas dos bárbaros russos, ainda temos de enfrentar a terrível ameaça dos esfomeados do Norte de África, invejosos do brilho das nossas vidas e, quiçá, industriados para sujar a pureza do nosso sangue lusitano.

O governo e os seus aliados do «não é não» querem acabar com essas ameaças e pôr fim à permissividade do convívio com os povos inferiores, mais uma mania das que ainda restam da catástrofe de 25 de Abril de 1974. Como muito bem diz o nosso bom amigo Netanyahu, a propósito do «muro de separação» que cuida da pureza sionista, «nós cá e eles lá». É assim que deve ser, é assim que irá ser pelas mãos de Montenegro, Ventura e adjacências mais ou menos «liberais». Racismo? Xenofobia? Segregacionismo? Isso são rótulos anacrónicos, incompatíveis com os novos tempos que estão no horizonte, tempos de redenção instaurados, assim se deseja, sob o estalar de periscópios e bengalins de almirantes e generais, há demasiado tempo afastados da condução da grei.

Bem basta a mistura que já vai por cá e que tanto tempo custará a corrigir. Devolver estas três dezenas de esfomeados ameaçadores à procedência é um exemplo dissuasor que ficará como advertência para outros eventuais atrevidos, e um sinal indelével de que agora a música é outra. Vinha uma criança de um ano entre os potenciais criminosos? Não interessa. O primeiro-ministro e também o presidente de Israel, Netanyahu e Herzog, nossos gurus, já tiveram o cuidado de prevenir, a propósito de Gaza, que essa gente, os bárbaros, já nascem terroristas. Nada de maciezas, corações moles ou contemplações. Naquele caso, a sua liquidação é indispensável para combater o Hamas. Aqui, há que cortar o mal pela raiz para que não tenhamos de sofrer reincidências.

Além disso, fizeram muito bem as nossas diligentes autoridades em investigar a pente fino o caixão de madeira ou «o barco» – houve quem lhe chamasse isso – em que chegaram os invasores. Nunca se sabe quais são as manhas e artimanhas dos traficantes de droga, capazes até de se disfarçar de esfomeados para fazerem negócio. Ao largo da praia ao lado, entretanto, poderá ter ancorado um luxuoso iate transportando mais umas dezenas de quilos de coca, mas quem iria desconfiar de tão aperaltada encadernação?

Por cá, de vez em quando citam-se estudos de autoridades policiais e de investigadores nas áreas sociais e sociológicas segundo os quais a percentagem de imigrantes envolvidos na criminalidade é ínfima. Além disso, as comunidades de imigrantes integradas no tecido português contribuem com o seu trabalho e assinalável generosidade para a sobrevivência do sistema de Segurança Social. Comunidades essas que, em tantos casos, estão disponíveis para realizar trabalhos reles para os quais as elites portuguesas já não se se sentem vocacionadas. Há quem diga até que, no caso de haver uma expulsão em massa de imigrantes, a economia do país e a qualidade de vida dos portugueses cairiam a pique.

Isso não passa, garantem as nossas autoridades, de manipulações mal intencionadas por parte de quem se recusa a aceitar a mudança e, em última análise, é cúmplice de todo um processo de adulteração da pureza rácica original dos portugueses, destruindo grande parte da genuinidade lusitana que o salazarismo tão bem cultivara.

Está bem de ver que a expulsão dos refugiados (imigrantes seriam se cá ficassem) que chegaram de Marrocos não é mais do que a aplicação dos conselhos do clarividente Josep Borrell, quando era «ministro» dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, e que recomendava a defesa e a segurança deste nosso «jardim de civilização» cercado de bárbaros por todos os lados. O facto de os invasores virem depauperados nada tinha de tranquilizador em matéria de segurança europeia, porque não tardariam a ficar em pleno modo de ameaça a partir do momento em que lhes fossem concedidas cama, mesa e roupa lavada, como sempre tem acontecido até agora. Nada de ilusões.

Em suma, são muito bem expulsos, nem que seja para morrer, circunstância que, além disso, iria aliviar a pressão demográfica sobre este nosso superpovoado planeta, a necessitar da aplicação dos visionários programas de eugenia pelos quais, como bons seguidores do génio Kissinger, alguns frequentadores do Fórum de Davos são responsáveis.

Outros se seguirão, se deixarmos Ventura e Montenegro continuar com as mãos na massa dos assuntos governamentais. Tudo farão para garantir, à sua maneira, a segurança da Europa segundo o modelo de Von der Leyen, Macron, Kallas, Merz, Costa, Meloni, Tusk, Orban e outros sociopatas, sob a tutela do sempre fiável e lúcido Donald Trump, alumiados pelo farol da democracia que é a NATO. Trinta e poucos esfomeados vindos de Marrocos tiveram a ousadia de desafiar as regras desta ordem estabelecida e vão receber um tratamento exemplar. A grande Europa unida e pura ultrapassou, com galhardia, mais esta cobarde provação.

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