|Jorge C.

O equívoco dos cultos

O grande problema ao usar a cultura como temática central da clivagem social é que só nos referimos a ela pelo lado da fruição, como se a fruição fosse finalidade, quando a criação e a produção são o elemento coletivo que rompe o individualismo e transforma o contributo de cada um numa cultura.

Créditossereiahh / Pixabay

As reações ao resultado das últimas eleições legislativas são um excelente ponto de partida para discutirmos conceções de cultura. Tornou-se comum concluir que a votação expressiva na extrema-direita reflete a ignorância e o caráter do povo. Estas duas características parecem manifestar-se em conjunto: as pessoas são más e rancorosas porque são ignorantes e são ignorantes porque são estruturalmente incultas. Não há salvação!

Na base deste raciocínio, para além da proverbial intuição, está uma conceção de cultura que se disseminou axiomaticamente nas camadas populares. Ora, nenhuma crença, por mais profunda e espiritual que seja, nasce de geração espontânea. Esta, em particular, tem origem num elitismo que define como critério para a formação do caráter e da inteligência o acesso a objetos culturais. Falamos, sobretudo, da leitura, mas também do gosto por outras formas artísticas que aparentem, pelo menos, alguma elevação: o teatro, o cinema, a música ou as artes plásticas. Como se a fruição da arte tivesse um efeito imediato na nossa forma de ver o mundo e passássemos todos a tirar as mesmas conclusões porque fomos assistir a uma peça num equipamento da Egeac ou da Ágora pela módica quantia de 20 euros. 

Claro que tem!, dir-me-ão imediatamente os escudeiros da alta cultura, porque a cultura – a alta, claro – alimenta a mente e o espírito, porque nos faz refletir e inspira-nos para as coisas boas da humanidade: empatia, humanismo, multiculturalismo, mundo, calçar os sapatos dos outros (na tradução não fica tão bem, convenhamos), etc. Há, de resto, um manual de frases feitas e clichés que suportam esta narrativa. Frases proferidas, até, pelos próprios criadores no momento de falar sobre a sua obra. «A minha obra é sobre racismo, xenofobia, violência de género, homofobia, machismo, nacionalismo, o flagelo do ananás na pizza, a crise dos refugiados, a gentrificação e aproveito a oportunidade para deixar uma mensagem aos extremismos: não passarão!» Depois de sermos confrontados com esta verdade, não temos outra hipótese se não ir a correr votar bem. Devia, aliás, haver uma frente partidária de coisas boas e corretas para se defender, um movimento de unidade no humanismo (alguém chame o Rui Tavares!). Quem ficar do outro lado, fez a sua escolha. E assim se forma um fosso artificial entre pessoas cultas e humanistas contra pessoas estúpidas e más. 

«Tornou-se comum concluir que a votação expressiva na extrema-direita reflete a ignorância e o caráter do povo. Estas duas características parecem manifestar-se em conjunto: as pessoas são más e rancorosas porque são ignorantes e são ignorantes porque são estruturalmente incultas. Não há salvação!»

Palermices à parte, há aqui, então, um problema de conceção de cultura que precisa de ser discutido e que exige de nós um combate que se desenvolve, muitas vezes, dentro de nós próprios. É uma luta contra uma dogmática da qual nem sequer nos apercebemos. 

O grande problema ao usar a cultura como temática central da clivagem social é que só nos referimos a ela pelo lado da fruição, como se a fruição fosse finalidade, quando a criação e a produção são o elemento coletivo que rompe o individualismo e transforma o contributo de cada um numa cultura. Não é a fruição que é transformadora. No limite, ela reflete a maior ou menor democratização do acesso à cultura. Esse acesso, para ser democrático, não pode estar dependente de vários fatores que muitas vezes nem são considerados: salários, horários de trabalho, geografia, assimetrias regionais, suburbanização, equipamentos públicos ou estímulo das políticas públicas. A própria hierarquização dos fenómenos culturais, entre dinâmicas elitistas, produtos comerciais e cultura popular cria uma segmentação de classe que sugere e reflete uma barreira no acesso. A fruição é, por isso, o resultado de um conjunto de conceções anteriores sobre criação e produção cultural. 

O primeiro lugar da cultura é o espaço social. Sem um espaço comum, partilhado por todos, o indivíduo nada cria. A sua relação consigo mesmo não é suficiente porque a criação é uma manifestação da relação do universo endógeno com o universo exógeno. Sem esta relação não há comunicação com o mundo exterior. O segundo lugar da cultura são os instrumentos e as técnicas que permitem desenvolver a criação e materializá-la. O terceiro lugar da cultura é a partilha. 

O caminho feito no tempo em que vivemos não só tem dificultado o acesso a estes lugares, como tem estrangulado as condições para a sua possibilidade. As coletividades passam grandes dificuldades para manter os seus edifícios; os horários de trabalho, as oportunidades de trabalho e a distância entre casa e trabalho contribuem para a desvalorização do associativismo; a substituição da solução artesanal por consumíveis industriais e massificados afastou-nos do contacto com a tradição oral e com a transmissão de práticas e técnicas; a privatização do espaço público e a obesidade burocrática, que privilegia sobretudo o negócio da cultura e o entretenimento, reduzem a possibilidade da partilha; o fétiche da exclusividade do acesso aliena e corrompe as camadas populares – os principais protagonistas da ação cultural. 

«Não é a fruição que é transformadora. No limite, ela reflete a maior ou menor democratização do acesso à cultura. Esse acesso, para ser democrático, não pode estar dependente de vários fatores que muitas vezes nem são considerados: salários, horários de trabalho, geografia, assimetrias regionais, suburbanização, equipamentos públicos ou estímulo das políticas públicas.»

Perante estas opções, a nossa perceção fica refém de conclusões como a de que a fruição da cultura é a única componente cultural a que temos acesso. Tudo o resto é folclore (anacronismo) ou arte (exclusividade). A opção que o mercado nos propõe é, então, o consumo. E o mercado é que decide o que é consumível ou não. A nós, consumidores, resta-nos a ilusão da escolha. 

Ao mesmo tempo, aqueles que têm acesso ao pacote exclusivo (técnicas e ferramentas, conhecimento, nichos sociais e académicos, mobilidade, rendimentos e tempo disponível) podem dar-se ao luxo de considerar a fruição cultural como a finalidade que nos distingue. Das elites aos aspirantes a elite, a criação cultural e artística pode até ser encarada como uma questão de talento e a produção cultural como um serviço. O elitismo significa isso mesmo: o desprezo e a desvalorização da construção coletiva e democrática. 

O resultado político destas conceções é a atomização das comunidades. No fundo, o elitismo é mais um contributo para um sentimento de revolta por sentirmos a sociedade à nossa volta desagregada, dividida; de a sentirmos, de resto, desenraizada. Esse desenraizamento é apropriado pelos discursos mais reacionários quando, ao perdermos a nossa construção cultural coletiva, nos confrontamos com culturas de outras geografias. Torna-se mais fácil acreditar na teoria da substituição do que na necessidade de romper com conceções que esmagaram a nossa iniciativa cultural.

O antídoto para esta dinâmica dificilmente passa por assistir a uma peça de teatro ou a uma apresentação de um livro; dificilmente passa por confrontar duas opiniões no espaço de comentário de um jornal. Mas com toda a certeza que passa por devolvermos às comunidades o espaço para o encontro e para a possibilidade da criação da cultura, passa por políticas que combatam o isolamento e a atomização e estimulem o regresso à rua. 

Se a cultura não se resume à arte, a arte também não se resume à experiência isolada dos indivíduos e ao seu talento para a manifestar. Ela resulta de uma experiência muito mais ampla e que necessita dos outros. É esse o espaço que temos de reconquistar, abandonando a ideia de que há uma utilidade na arte e que é essa utilidade que justifica a existência da cultura. Não há maior equívoco do que esse.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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