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|cultura

A cantiga ainda é uma arma

Num país ao abandono, onde vivemos reféns das decisões tomadas bem longe, onde vivemos sem ser ouvidos, permeáveis a todo o tipo de demagogia por causa de uma legítima revolta contra o sistema, é à cultura de massas que muitas vezes cabe o papel de esclarecimento e luta. 

Créditos / GNR

A memória de um tempo de concertos interrompidos pela GNR, de censura de artistas em plena democracia e de um impacte revolucionário de expressões artísticas que criaram uma rutura cultural com o passado vai subsumindo numa vaga ideia de liberdade que não se desliga da dominação das ideias pelo status quo. A própria noção de revolucionário confunde-se com um mero arrojo ou uma irreverência fugaz que, sem consequência ou transformação, não sai do umbigo do seu protagonista. 

A cultura popular de intervenção diluiu-se num território amplo onde se tenta confundir capitalismo com democracia e o seu caráter revolucionário vai sendo substituído pelo simbolismo performativo. No bulício da cidade, sobram os refrões simplistas e a irreverência estética. De vez em quando, lá vão aparecendo bandeiras de um progressismo que também não deixa de ser cosmopolita, escolarizado e intelectualmente correto. Estas formas de expressão artística, porém, nem sempre se estendem pelo país.

À medida que a distância de Lisboa vai aumentando, a paisagem e as sonoridades da rádio também vão mudando. Mas ao contrário da Viagem a Lisboa, de Wim Wenders, não são os Madredeus que vamos encontrar nas estradas que se entrelaçam no meio da serra. Sintoniza-se a rádio local e sai uma voz estridente que acompanha um malhão. O acordeão abafa os cordofones e só a pandeireta consegue sobressair. A locutora vai atendendo chamadas de quem tem a família longe, de quem tem nos vizinhos os únicos amigos, dos que, sós, depositam nos netos uma esperança melancólica, com a graça de Deus e de Nossa Senhora. 

«A cultura popular de intervenção diluiu-se num território amplo onde se tenta confundir capitalismo com democracia e o seu caráter revolucionário vai sendo substituído pelo simbolismo performativo.»

Se no quintal do cosmopolitismo a realidade mudou, desde aquele tempo em que a GNR carregava sobre os punks à bastonada, e em que tudo era subversão, lá, onde há mais floresta e ribeiros do que casas, o tempo da transformação é outro e, de certo modo, a cristalização também se deve ao abandono. A União Europeia só passou por ali para roubar. 

Faço a viagem para desligar da cidade e sou engolido pelos efeitos da sua hegemonia, entre eucaliptos, pinheiros e placas a assinalar o contributo da empresa que mais beneficia com a substituição da floresta autóctone que tanta destruição já trouxe para estes lados. Ao longo de dezenas de quilómetros não vemos um único material de propaganda política. De vez em quando, numa freguesia mais povoada, bem no centro da vila, um cartaz que promete combater a corrupção e os tachos de Lisboa. Nos cafés, o jornal e o canal sensacionalistas e no meio de umas dezenas de homens duas ou três mulheres, a servir. Imagino-me, turista, a tentar replicar aqui as interessantes discussões da rede social que se chamava uma coisa e agora se chama outra, a manifestar as grandes preocupações com os extremismos e o papel decisivo dos moderados das democracias liberais na política nacional de Lisboa. Se são ultramontanos, para quê perder tempo, não é verdade? 

Pela noite chega a festa. Centenas de miúdos aproximam-se do recinto que o município destinou para o lazer. O cartaz anuncia o concerto de uma banda que há 38 anos chocou o país com o seu nome e com uma atitude que abanou o conservadorismo das elites e ainda lhes gritava palavras de ordem pelo trabalho, pelo salário, contra as relações de poder, de casa para a rua. Em meados dos anos 80, os Peste & Sida eram uma de muitas bandas que substituíram a canção popular portuguesa pelo punk-rock de intervenção. Milhares de adolescentes viram naquela explosão uma ferramenta de revolta, mas também de reivindicação. Ainda hoje os efeitos dessa vaga de música de intervenção contemporânea se fazem sentir na consciência que muitos têm da realidade e dos avanços, para os quais muito contribuíram artistas comprometidos com o progresso, a democracia e a liberdade. 

«Se no quintal do cosmopolitismo a realidade mudou, desde aquele tempo em que a GNR carregava sobre os punks à bastonada, e em que tudo era subversão, lá, onde há mais floresta e ribeiros do que casas, o tempo da transformação é outro e, de certo modo, a cristalização também se deve ao abandono. A União Europeia só passou por ali para roubar.»

Mas se para a população urbana algumas destas canções já não representam a sua realidade (uns puderam aceder a melhores salários, outros deixaram de se confrontar com a figura do macho português do bigode e da unha higienista), para uma juventude rural, abandonada e sem horizonte, aquelas canções continuam a fazer sentido e são, por isso, essenciais para o seu processo de emancipação. Para esta juventude não há truques de ilusionismo que desviem a sua atenção da realidade material e das relações de poder em estado puro. 

Aquele momento, ali, promovido pela edilidade (irónica contradição) é, talvez, o único em que a música ganha um significado político e em que um concerto se transforma num comício subtil. Ali estão, confrontados com uma crítica voraz ao machismo, ao racismo e à xenofobia; ali estão, diante da relação entre tudo isto e um modelo económico que determina o seu futuro; ali estão, convocados para a luta de massas. Nenhum livro, nenhum cartaz, nenhum comentador de televisão tem tanto impacto num adolescente como um artista com «cara de espelho», que reflete as suas inquietações e que consegue projetar a sua realidade íntima e social, sem o alienar, sem o colocar contra os seus semelhantes e que lhe diz «não estás sozinho». 

A resistência ao tempo de bandas como os Peste & Sida é também a resistência de uma ideia de que a arte é revolucionária, não pela irreverência da forma, mas pela força do conteúdo. Num país ao abandono, onde vivemos reféns das decisões tomadas bem longe, onde vivemos sem ser ouvidos, permeáveis a todo o tipo de demagogia por causa de uma legítima revolta contra o sistema, é à cultura de massas que muitas vezes cabe o papel de esclarecimento e luta. É ela que destapa o rosto que emana o veneno e aponta o caminho dos dias claros. 

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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