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|cultura

O intelectual em construção

Em Portugal, durante décadas, os intelectuais foram submetidos à invisibilidade por força da repressão do fascismo. Censurados, presos e alguns assassinados, com a exceção de corajosas publicações, o espaço para a livre reflexão e debate de ideias não existia.

Bento de Jesus Caraça CréditosJoão Abel Manta

Há dias, o jornalista Nuno Aguiar perguntava «em 2024, quem são os intelectuais portugueses?». A pergunta, na minha leitura, traz com ela duas questões: uma certa desesperança no espaço mediático e, em última análise, a própria definição de intelectual. À pergunta acresce, também, o risco de alimentar velhas caricaturas ou equívocos sobre a realidade intelectual em Portugal. Ao elitismo da conceção da intelectualidade contrapôs-se sempre um desprezo pelo papel dos intelectuais – uma divisão classista explorada pela demagogia mais reacionária, como tão bem o demonstra a obra do francês Raymond Aron O ópio dos intelectuais (1955). 

Foi precisamente esta narrativa que contribuiu para que, durante os anos da Guerra Fria e, em Portugal, durante o fascismo, os intelectuais fossem uma espécie de proscritos, burgueses hipócritas que disfarçaram estar muito preocupados com o povo, mas que só o faziam porque o seu estatuto o permitia. Aron recorria, aliás, a uma frase de Simone Weil que atacava o marxismo através dos seus intelectuais, espalhando uma confusão que assumia um propósito de descredibilização política e que Aron ampliou numa das obras mais icónicas, que serviria de guião para a direita e para a sua propaganda demonizadora, muitas vezes com consequências devastadoras.  

Em Portugal, durante décadas, os intelectuais foram submetidos à invisibilidade por força da repressão do fascismo. Censurados, presos e alguns assassinados, com a exceção de corajosas publicações como a Vértice, O Diabo, o Sol Nascente, a Seara Nova ou o clandestino Avante!, o espaço para a livre reflexão e debate de ideias não existia, apesar de haver proeminentes figuras académicas com exposição mediática, na sua maioria cúmplices ou resignadas ao poder político, acolhidas em publicações situacionistas – uma intelectualidade relativa. 

Foram grandes os intelectuais desse tempo que, depois de anos de resistência antifascista, emergiram com a Revolução portuguesa e passaram a integrar o circuito institucional e mediático, retomando às universidades, à imprensa, ao mundo editorial, à rádio e à televisão. Podemos, hoje, encontrar nos Arquivos RTP um acervo de reportagens, entrevistas e programas de debate que muito enriqueceram o serviço público, contribuindo para o acesso universal. Foi também o tempo de homenagem a todos os que não chegaram a 25 de Abril de 1974, mas que muito contribuíram para esse rumo vitorioso do povo português.

Com os anos, o lugar dos intelectuais foi sendo substituído no espaço mediático ou relegado para os canais de nicho, restringindo o acesso universal com as linhas do paternalismo elitista de quem nunca perdoara à Revolução a abertura de um meio classista ao povo. Era o que faltava! O próprio conceito de intelectual foi regressando à sua conceção mais burguesa ou academicista, como que negando a possibilidade de qualquer um de nós ter a ousadia de entrar nos campos divinos do saber e nos salões de uma casta de escolhidos. 

«O próprio conceito de intelectual foi regressando à sua conceção mais burguesa ou academicista, como que negando a possibilidade de qualquer um de nós ter a ousadia de entrar nos campos divinos do saber e nos salões de uma casta de escolhidos.»

Quando se pergunta onde estão os intelectuais do séc. XXI, pergunta-se realmente o quê? Onde estão os Eduardos Lourenços ou onde estão os Dias Lourenços? Curioso como apelidos semelhantes podem significar ideias tão diferentes daquilo que caracteriza um intelectual – um académico ou um homem dedicado à reflexão sobre a história e sobre o seu tempo, mesmo sendo um operário. Se esta discussão no séc. XX era de grande pertinência, talvez no séc. XXI ela mereça outra abordagem, mas não necessariamente outro diagnóstico. 

Com a exclusão de qualquer forma de reflexão no plano mediático, sobram hoje nos media personalidades que trazem muito pouco ou nada para o debate público e para a construção de uma sociedade emancipada, limitando-se a servir de caixa de ressonância do poder dominante. Qualquer momento que exija reflexão e dialética não serve os interesses alienadores de quem detém os meios de comunicação. Também isto explica os recorrentes ataques ao serviço público de rádio e de televisão e a sua rendição ao modelo de entretenimento, alienação e desinformação forçado pelos grandes grupos da comunicação social – uma opção política que não é inocente. 

A intelectualidade fica reservada a uma elite que se move no campo da exclusividade, do acesso limitado pela condição económica e pelas relações sociais. Confundem-se personalidades com acesso exclusivo a fenómenos culturais com intelectuais; confunde-se informação exclusiva e posse com erudição e confunde-se, sobretudo, arte com cultura. Estas confusões estão tão enraizadas que já não se imagina outra forma de caracterizar um intelectual sem ser como o diletante que toca piano, fala francês e é convidado para conferências nos equipamentos culturais de Lisboa às três da tarde de uma qualquer quarta-feira. Velhas caricaturas e equívocos.

«A intelectualidade fica reservada a uma elite que se move no campo da exclusividade, do acesso limitado pela condição económica e pelas relações sociais.»

Apesar do classismo e da sua expulsão do circuito mediático, há intelectuais em Portugal, muitos deles a fazer um trabalho sério de reflexão em áreas tanto específicas como abstratas, na produção de exposições em museus e galerias de menor dimensão, a publicar em editoras que não ocupam dois quarteirões nas feiras do livro, em órgãos de comunicação independentes do poder económico e da sua censura e elitismo, no movimento associativo popular, nas universidades séniores e nas escolas (o intelectual ainda em construção, a libertar-se dos lugares-comuns e a explorar os caminhos infindáveis da imaginação e da possibilidade). 

Os intelectuais em 2024 são também tantos outros que vão recusando a exclusividade de certos temas e têm a audácia de refletir sobre a arte e a vida, sobre o conhecimento, a ciência, sobre, enfim, a «cultura integral do indivíduo», esse tema suscitado por Bento de Jesus Caraça e que ainda hoje é tão central para o nosso tempo. Talvez Nuno Aguiar encontre a sua resposta, como muitos de nós, não neste século, mas no século passado ou talvez possa encontrar uma resposta à sua pergunta na origem e nos motivos da ausência de intelectuais no seu próprio meio profissional. É um começo.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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