O programa que o Movimento das Forças Armadas (MFA) apresentou ao país provocou uma rutura com o regime fascista derrubado a 25 de Abril de 1974. Não era apenas uma mudança de chefias, era uma nova forma de viver coletivamente. Depois de 48 anos de repressão, era necessário aprender a discutir, a tomar decisões, a assumir compromissos e a desamarrar o povo de um poder paternalista. O processo revolucionário foi, acima de tudo, um processo de aprendizagem para todos, com o objetivo de afirmar o poder democrático. Mas as correntes conturbadas nem sempre convergiram e as conceções sobre aquilo que deve ser um país democrático entraram num conflito que revelava o verdadeiro campo de batalha que o 25 de Abril abrira. A democracia, nas suas várias dimensões – social, económica, cultural e política –, é um terreno disputado entre povo e elites e para isso concorre uma conceção de poder que custa derrotar.
A Constituição de 1976 resistiu a muitas tentativas de submeter o poder democrático a fações sobreviventes do fascismo, sobretudo aos grupos económicos e monopólios que controlavam o país. A chantagem sobre as populações, o sequestro dos seus horizontes, expectativas e aspirações, para criar dependências e as fazer servir interesses que não os seus, passava por reprimir a sua participação política, alienando qualquer conceção de democracia e alimentando uma cultura de política burguesa, onde só as grandes elites ou os predestinados têm assento.
Não se tratava apenas de 48 anos de negação de iniciativa política, mas sim de uma história de séculos de paizinhos da nação a quem o povo deveria servir e obedecer. A distância entre o povo e o poder surgia como natural, uma inevitabilidade da civilização, que nem merecia discussão. Foi por isso que uma das mais importantes conquistas do 25 de Abril foi o Poder Local Democrático e o seu movimento de aproximação do povo ao poder. 50 anos depois do 25 de Abril essa aprendizagem, com avanços e recuos, mantém-se e continua a ser um território de disputa.
«A Constituição de 1976 resistiu a muitas tentativas de submeter o poder democrático a fações sobreviventes do fascismo, sobretudo aos grupos económicos e monopólios que controlavam o país.»
Exemplo disso tem sido a luta das populações para recuperar a organização das freguesias, desmontando a política de agregação que a direita impôs ao país no período da troika. Numa conjuntura favorável ao individualismo e à atomização, a agregação de freguesias foi um recuo nessa aproximação das populações às decisões tomadas sobre o seu quotidiano, à sua verdadeira representação nos órgãos de poder e à responsabilização e escrutínio dos eleitos. Muitas são as forças que continuam a tentar impedir que se recuperem freguesias, seja através da ameaça do aumento da despesa pública, que os órgãos de comunicação social vão sugerindo por encomenda, seja através da desvalorização da discussão sobre o poder local, em pleno ano de eleições autárquicas.
Basta olhar para a tentativa de realçar a discussão sobre os candidatos às eleições para a Presidência da República, em ano de autárquicas. O truque é velho: para resolver os problemas do país precisamos de um paizinho cheio de sensatez e moderação para nos salvar, o resto é paisagem. Num terreno disputado pelo bloco central, com nomes a sair todos os dias de putativos candidatos e o seu merecido Prémio Carreira, o guião vai sendo construído por figuras serôdias, nas suas velhas e bafientas conceções sidonistas. Enfiados dentro de fatos e gravatas, através da demagogia da moderação, garantem a mediatização de uma discussão e a anulação da outra. Longe da vida das suas freguesias, não conhecem outra discussão que não seja a da gestão dos interesses privados pelos partidos políticos com eles comprometidos. Educados nos corredores do elitismo, querem uma política aristocrata caucionada pelo voto popular. Fazem-no com uma aparente serenidade que não é mais do que sofreguidão do controlo do poder e do seu quinhão.
Apesar do grande esforço para manter esta roda em movimento, seja através dos monopólios da comunicação social, seja através de táticas cirúrgicas que limitam a participação política, a defesa das conquistas do 25 de Abril continua a assumir um ponto de convergência popular que ganha real expressão nas ruas, nos locais de trabalho e nos movimentos unitários (sindicatos, comissões de utentes e de moradores, coletividades) que reclamam o património político da Revolução. Com o recuo de muitas investidas reacionárias, percebe-se que o campo de batalha, mesmo que minado, existe para ser disputado e que não há inevitabilidade que não possa ser superada. Com essa superação, também ficam expostos aqueles que, disfarçados de grandes democratas, não passam de caixas de ressonância dos grandes interesses económicos.
É fundamental que em ano de eleições autárquicas não nos deixemos distrair, que reclamemos a nossa aproximação às decisões que mais nos afetam e que determinam a nossa vida futura. Nas nossas ruas, nos nossos bairros, nas nossas aldeias, vilas e cidades há um caminho para construir e que só nós poderemos traçar. É preciso derrotar a ideia de que há algo muito acima de nós que não compreendemos e que não estamos preparados para compreender, que está tão acima de nós que parece estar numa dimensão espiritual. A política é feita de coisas materiais, de necessidades reais e de legítimas aspirações para uma vida melhor, mais justa e mais nossa.
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