|Jorge C.

De portas abertas

Poucos dias após as comemorações populares do 25 de Abril, ali ficou claro o que significa democracia, o que significa tomarmos o futuro nas nossas mãos para responder àqueles que são os nossos interesses. 

CréditosAntónio Pedro Santos / Agência Lusa

Poucas semanas depois da chocante descoberta de que os mais novos estão expostos aos maléficos desígnios da internet, por causa de uma série de televisão dedicada ao tema, os adultos foram confrontados com a obrigação de conviver com eles. Uma falha geral de energia por toda a Península Ibérica, para além de revelar as fragilidades da nossa soberania energética e o nosso grau de dependência externa, deixou a jangada de pedra a viver sem eletricidade durante umas dramáticas dez horas. Impedidos de recorrer aos telemóveis para se relacionarem com o universo, adultos e crianças foram forçados a conviver, a brincar, a conversar e a levantar os olhos. Não foi menos chocante a descoberta de que até o tempo passa de outra forma fora da virtualidade. 

Temo, porém, que ambas as descobertas tenham um efeito efémero e que, tal como no período de isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, as conclusões morais que retirámos fiquem fechadas em caixotes nas arrecadações da vida - uma memória caricata de um episódio inusitado. Ainda assim, creio que podemos e devemos aproveitar o momento para tirar outras conclusões, menos líricas, mais concretas e sobre as quais temos capacidade para desenvolver uma ação concreta. 

Talvez tenha sido surpreendente para muitos de nós chegar a casa mais cedo do que o habitual e ver as ruas e os bairros cheios de gente a partilhar as suas inquietações e a aproveitar o que restava da luz do dia para inventar o que fazer. Perante o imprevisto, tornou-se inevitável estabelecer relações de vizinhança, aproveitar o espaço público e recorrer ao comércio disponível para improvisar refeições e garantir o bem-estar. Sem telecomunicações, sem acesso ao dinheiro depositado e sem capacidade de refrigeração elétrica dos alimentos, foi necessário construir relações de solidariedade e confiança. 

«Impedidos de recorrer aos telemóveis para se relacionarem com o universo, adultos e crianças foram forçados a conviver, a brincar, a conversar e a levantar os olhos. Não foi menos chocante a descoberta de que até o tempo passa de outra forma fora da virtualidade.»

A falha de energia afetou, também, o recurso às televisões e a informação ficou concentrada no serviço público de rádio. Deixámos de ficar expostos a horas intermináveis de comentário televisivo inútil e de fabricação de distrações. Para lá dos ecos da desinformação, que inicialmente ainda se infiltrou nas conversas de rua, sobrou a procura da informação junto das entidades competentes e a reportagem da realidade. Isto obrigou-nos a pensar sobre a confiança que temos nestas entidades e sobre o escrutínio a que, sobre elas, temos direito. Poucos dias após as comemorações populares do 25 de Abril, ali ficou claro o que significa democracia, o que significa tomarmos o futuro nas nossas mãos para responder àqueles que são os nossos interesses. 

Na rádio mal se ouviu falar no negócio privado da saúde. Falou-se, sobretudo, no grande esforço do Serviço Nacional de Saúde, nas suas dificuldades e no empenho com que hospitais e centros de saúde, através dos seus profissionais, garantiram o nosso mais precioso bem. Ouvimos falar da importância da escola pública, das refeições e da capacidade e autonomia das escolas para garantir a segurança das crianças. Ouvimos falar da natureza social das IPSS, do seu contributo e solidariedade com o resto da comunidade. Não ouvimos falar sobre imigração desregulada, mas antes no papel dos imigrantes no comércio de proximidade. Ouvimos falar do excesso do transporte individual e da importância de uma rede de transportes com capacidade de resposta entre concelhos. 

Aquelas que são as grandes preocupações do quotidiano ganharam, no dia 28 de abril, a relevância que não têm habitualmente. Os jornalistas puderam fazer o seu trabalho e trazer para primeiro plano os fundamentos da política e do poder democrático. Enquanto isso, os grupos económicos escondiam-se atrás do silêncio das comunicações sem outra alternativa que não fosse mandar toda a gente para casa. 

Foi em casa, nas ruas e nos bairros, que os trabalhadores viram como é a vida sem dezenas de solicitações inúteis; como é ter tempo para o lazer sem distrações; como é dar e ter atenção e cuidado dos seus semelhantes. Encheram-se os parques infantis, os bancos de rua e de jardim, fizeram-se churrascos para a vizinhança e conversou-se muito. Houve tempo para a leitura, para o desporto, até para a indolência, e tudo sem termos de andar distanciados uns dos outros. Houve tempo para a vida, para a ligação à vida, e para descobrir que o nosso propósito é viver sem medo de ter tempo para a vida.

«Aquelas que são as grandes preocupações do quotidiano ganharam, no dia 28 de abril, a relevância que não têm habitualmente. Os jornalistas puderam fazer o seu trabalho e trazer para primeiro plano os fundamentos da política e do poder democrático. Enquanto isso, os grupos económicos escondiam-se atrás do silêncio das comunicações sem outra alternativa que não fosse mandar toda a gente para casa.»

O que seria do nosso país com horários que permitissem essa ligação à vida, que nos permitissem viver mais com a família e com os amigos, que nos permitissem abrir as portas e reforçar as relações de vizinhança? O que seria o nosso país com a garantia de que os serviços públicos estão capacitados para situações imprevistas? O que seria o nosso país com um controlo total da sua soberania, sem dependências externas e de interesses que não são os nossos? 

São estas as conclusões que podemos e devemos tirar. São estas as conclusões que devem fazer parte da nossa consciência política. São estas as conclusões que o jornalismo tem de nos ajudar a procurar. Não nos basta dizer que devemos aprender com o momento. Por norma, quando se diz que temos de aprender com estes momentos, o que se pretende fazer é desviar as atenções para a moralidade: sermos melhores pessoas e sermos mais empáticos. Mas é preciso ir ao fundo dos problemas para encontrarmos o projeto de sociedade em que realmente queremos viver. Essa sociedade, que está tão bem refletida na nossa Constituição, precisa de ser construída e estimulada por todos. Essa sociedade, com a qual sonhámos no 25 de Abril, está ali por cumprir e precisa da nossa força, da nossa solidariedade, mais do que da caridosa e paternalista empatia. 

Devemos, de facto, aproveitar Maio para cumprir Abril. Com eleições legislativas à porta, podemos fazer uma escolha que se comprometa com esse caminho, que tenha como prioridade a recuperação da nossa soberania e a nossa ligação à vida. Precisamos de uma força política na Assembleia da República que represente essa comunidade forte e determinada na transformação da sociedade, na procura da paz, da solidariedade e da cooperação. Precisamos de uma política da comunidade para a comunidade. Só assim poderemos ser muitos mais mil para continuar Abril. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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