Na sua passagem por Lisboa, em véspera do 25 de Abril de 2024, para apresentar a sua longa e imprescindível biografia de Karl Marx, o intelectual marxista e comunista brasileiro José Paulo Netto foi confrontado com uma pergunta sobre a responsabilidade da esquerda no recrudescimento dos fascismos. Reconhecendo a perda de força da esquerda e a necessidade de refletir sobre eventuais erros cometidos, o autor respondia, então, que essa autocrítica era muito conveniente às forças do capitalismo e que, mais do que a esquerda entrar num ciclo de autoflagelação, era necessário um combate concreto a essas forças.
Passado pouco mais de um ano desta sessão, chega-nos A Economia Política do Antifascismo, uma obra que reúne cinco ensaios do professor e investigador de História da Economia e de Economia Política, João Rodrigues, pela editora Página a Página. Não sendo uma resposta àquele repto específico de José Paulo Netto, estes ensaios oferecem uma proposta de alternativa ao modelo socioeconómico hegemónico – o neoliberalismo – que pela sua natureza antidemocrática e antissocial cria as condições ideais para o crescimento dos neofascismos, alimentando-se e necessitando deles. Para derrotar, então, a voracidade deste movimento, será necessário um programa substantivo que seja, simultaneamente, resistência e projeto. A Economia Política do Antifascismo não é, por isso, um mero objeto de resistência, mas um instrumento precioso para a «reconfiguração institucional de uma economia que se quer democraticamente incrustada e logo socialmente blindada aos processos de fascização».
Na nota introdutória encontramos uma bússola para esta Economia Política do Antifascismo. Entre referências académicas, interlocutores para os diferentes momentos em que estes ensaios foram produzidos e espaços onde se torna possível materializar essa produção, João Rodrigues assume o seu posicionamento com uma grande clareza, anunciando uma proposta que se funda na «lógica de frente popular», unida em torno de um programa substantivo e não da mera proclamação antifascista sem um programa alternativo e sem qualquer enquadramento teórico. Nesse sentido, João Rodrigues convoca o cruzamento de duas tradições da economia política – a de Marx e a de Keynes.
«A Economia Política do Antifascismo não é, por isso, um mero objeto de resistência, mas um instrumento precioso para a "reconfiguração institucional de uma economia que se quer democraticamente incrustada e logo socialmente blindada aos processos de fascização".»
Nesta seleção de textos, organizados cronologicamente do mais recente para o mais antigo, o ensaio que dá o título a este livro é um inédito, através do qual somos levados numa «digressão histórica» internacional e nacional. De forma perfeitamente sistematizada, João Rodrigues oferece-nos um enquadramento histórico do séc. XX, a partir da economia política e da luta antifascista, entrelaçando factos, colocando em oposição diferentes correntes de pensamento, numa dinâmica de «freios e contrapesos», que nos conduzirão até à atualidade, sem esquecer o contributo inestimável dos comunistas portugueses. Esta sistematização irá demonstrar que o surgimento dos fascismos e dos neofascismos está intrinsecamente associado às necessidades de afirmação do neoliberalismo e que um modelo de economia mista será a solução para a sua derrota.
Para além desta proposta inequívoca de economia mista, tal como plasmada na Constituição portuguesa de 1976 e inspirada em experiências históricas, o autor vai explorar a forma como o neoliberalismo corrompeu uma parte expressiva do campo progressista e assumiu um papel determinante na capitulação das soberanias e nos ajustes de contas dos inimigos de uma economia com peso social e democrático, planeada e fomentada por uma política de pleno emprego, onde o Estado assume o controlo dos setores estratégicos e define como prioridade o provisionamento de bens essenciais. Neste capítulo, João Rodrigues insistirá na natureza perversa e equívoca da União Europeia, no enfraquecimento da economia soberana e nas narrativas que inspiraram a reação às crises do capitalismo, desde a intervenção da Troika ao reforço de uma corrente radical que designa de «liberais até dizer chega».
A seleção dos ensaios que acompanham esta nova reflexão demonstra-se essencial. Não só pela narrativa que ajuda a construir, como também pela forma como cria uma coesão que nos permite compreender velhos debates. Os ensaios vão-se emparelhando, como rimas que não se limitam a manter o ritmo da coesão, mas como alavancas para a compreensão da universalidade do todo da obra. A repetição é uma ferramenta assumida pelo autor, mas creio que o seu efeito é ainda mais profundo do que aquele que o próprio assume. É um movimento que sintoniza e opera como um alicerce, permitindo avanços significativos no desenvolvimento da ideia central – uma proposta política sustentada numa economia mista e no planeamento indicativo, que sirva de alternativa ao neoliberalismo e de travão à escalada dos neofascismos.
Segue-se um ensaio sobre as formas do planeamento económico e a sua perversão; uma reflexão sobre o medo e a melancolia e a forma como operam na economia política; um ensaio inspirado nas máscaras do capitalismo de António Avelãs Nunes; e, por fim, a exposição de um debate que põe em confronto as origens do neoliberalismo e as opções socialistas.
O primeiro ensaio acaba por preencher um espaço que os outros, anteriores no tempo, foram deixando. É o fator de unidade entre as partes e funciona como proposta, porque não se limita a reconhecer a hipótese da economia mista mas, antes, propõe-na, abertamente, como solução. Os restantes textos dirigem-se a especificidades e particularidades desta história da economia política e contribuem para o enquadramento histórico e para a análise das várias correntes de pensamento.
Com um vasto quadro de referências, João Rodrigues obriga-nos a sair de um debate imposto pela sabedoria económica convencional e a mergulhar em significados e contextos que nos dão perspetiva e, por isso, um impulso natural para perguntar: o que fazer?
Ao longo de toda a obra, o autor sinaliza e corrige deturpações cirurgicamente elaboradas, que foram introduzidas na sabedoria convencional, impregnada da ideologia neoliberal, e normalizadas através de um falso empirismo, de uma falsa naturalidade, que se esconde atrás de uma neutralidade inverosímil. A negação dessa neutralidade e o compromisso com o ativismo político sem cedências demonstram mais coragem do que alguns dos seus pares e menos oportunismo do que tantos outros. Em cada momento, vão surgindo críticas e provocações explícitas e duras, mas sempre fundamentadas, justas e necessárias. São, elas mesmas, um desafio à afirmação inequívoca de um posicionamento político-económico e um convite a abandonar essa corrente contemporânea tão confortável que é o encimadomurismo. Um convite, enfim, a contribuir para essa Economia Política do Antifascismo.
Há, por vezes, momentos em que a sua reflexão sugere uma «melancolia» social-democrata, um olhar melancólico sobre soluções social-democratas falhadas. Porém, uma leitura mais atenta mostra-nos que o exercício que nos propõe é outro: acompanhar uma tradição de ir ao encontro de autores de outras correntes, acolhendo o seu contributo para traçar, então, um mapa da história da economia política, as suas possibilidades e contradições e o seu campo de batalha. Este é um exercício de uma profunda humildade intelectual e de superação daquilo que, noutros momentos, poderão ter sido as nossas convicções, evoluindo para outras hipóteses que a realidade nos impõe. Sem a existência do primeiro ensaio, esta conclusão teria mais dificuldade em surgir, podendo até conduzir a alguns equívocos. Assim se demonstra a necessidade imperiosa de a ele regressar, para compreender o todo que compõe esta coletânea.
Por outro lado, é no ensaio sobre o livro de Avelãs Nunes que vamos encontrar uma pista para compreender as opções de João Rodrigues e, em última análise, o leitmotiv de A Economia Política do Antifascismo. Neste texto, torna-se claro que só a leitura rigorosa e uma discussão dialética profunda de todas as correntes de pensamento que concorrem para a determinação do pensamento hegemónico poderão garantir a formulação de uma alternativa sustentada por um programa substantivo liberto de ilusões e preconceitos.
No campo das referências teóricas, surge, então, a encerrar este livro, um ensaio essencial onde se disseca a liturgia neoliberal a partir da sua génese, onde se destaca a discussão entre Mises e Hayek com Polanyi. Este é um texto que expõe bem as insuficiências e debilidades do debate mediático contemporâneo sobre a economia liberal, sobretudo quando existem tentativas explícitas de transformar o liberalismo numa decorrência natural da vida. Nenhuma discussão se faz sozinha e a aparência de que autores como Hayek não tiveram contraditório e que totalizaram a discussão é aqui denunciada e contrariada.
O conjunto dos ensaios não substitui o aproveitamento das leituras nele sugeridas. Mas, pelo contrário, estimula essas leituras, a reflexão e uma ação concreta, tanto do ponto de vista institucional como do ponto de vista social e popular. De resto, ao longo dos cinco ensaios valoriza-se o papel dos movimentos sociais, do movimento associativo, cooperativo e sindical na construção e consolidação de um modelo que permita o seu reforço. Demonstra-se, assim, que a Economia Política do Antifascismo favorece e é favorecida pelos mecanismos democráticos de progresso social, por oposição a um neoliberalismo apostado em aniquilar direitos, liberdades e garantias.
Leio este conjunto de ensaios num momento em que o genocídio do povo palestiniano às mãos do sionismo fascista do Estado de Israel prossegue com cumplicidade de EUA e União Europeia (UE); num momento em que o nosso país arde; a destruição do SNS e de outros serviços públicos tem, cada vez mais, consequências drásticas; e em que o pacote laboral proposto pelo governo português anuncia um agravamento dramático das nossas condições de vida. Vou vislumbrando nesta preocupante realidade a natureza das opções ideológicas identificadas por João Rodrigues e a economia política que lhe está subjacente: a ausência forçada de «freios e contrapesos» no plano institucional e mediático, a falta de planeamento, sobretudo no ordenamento do território; e a reação agressiva e repressiva do imperialismo estadunidense à sua cada vez mais evidente perda de relevância, instituindo o medo e a violência e tendo na UE um cão de fila subserviente.
«Vou vislumbrando nesta preocupante realidade a natureza das opções ideológicas identificadas por João Rodrigues e a economia política que lhe está subjacente: a ausência forçada de "freios e contrapesos" no plano institucional e mediático (...).»
Mas no meio deste cenário trágico, este A Economia Política do Antifascismo traz-nos um sinal de esperança e convoca-nos para um combate, oferecendo uma base substantiva e um discurso humanista a que dificilmente podemos ser alheios. Livro essencial para os dias que correm, no meio de ruídos dissonantes e de caos programado, A Economia Política do Antifascismo é, sobretudo, um desafio aos que não querem ficar a morder a própria cauda ou a ver até que ponto a espinha dobra. Porque se há acordo nesta proposta, então procurem-se os espaços para uma intervenção política e social que a materialize.
O livro será apresentado na edição deste ano da Festa do Avante!, um lugar privilegiado para discutir esta proposta e encontrar caminhos de convergência para uma alternativa concreta a essa hegemonia do neoliberalismo. Será também uma oportunidade para incentivar João Rodrigues a prosseguir o projeto prometido de um livro de Economia Política. Não faltemos a essa oportunidade.
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