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|Educação

Para lá do arco-íris

Crianças e jovens que, pela sua condição física ou mental, necessitam de apoios materiais, de auxiliares e recursos específicos, têm sido mantidos em casa ou remetidos para espaços e atividades alternativas.

Créditos / Ekonomista

A pandemia fez-nos vir para casa em março e deixar a escola, um confinamento de primavera, traumático para muitas crianças e famílias, mas também para muitos  professores e auxiliares; semanas que deixaram rastos, talvez difíceis de apagar.

Voltamos em setembro a ter a maioria das crianças nas escolas, com direito  ao professor e à sala física, agora em condições diferentes das que sempre conhecemos. Mas, com as imagens coloridas dos arco-íris a darem as boas-vindas, em que zona cinzenta ficaram outras crianças e jovens?

Se a grande maioria, mesmo em condições precárias e difíceis, voltou à sala de aula e ao ansiado recreio e às conversas com os amigos, para muitas outras crianças e jovens ir à escola e ver garantido o direito à educação tornou-se, neste ano particularmente difícil, uma impossibilidade prática.

Crianças e jovens que, pela sua condição física ou mental, necessitam de apoios materiais, de auxiliares e recursos específicos, têm sido mantidos em casa, ou remetidos para espaços e atividades alternativas às que são realizadas pela turma onde têm o direito de estar inseridos.

Às portas do mês de dezembro, como balanço do que tem sido este primeiro período, este assunto não pode continuar a ser ignorado e deixado a cargo das famílias, como se de um problema da esfera familiar se tratasse. Estas crianças e estes jovens têm direito à educação, a frequentar a escola pública e a desenvolver as suas capacidades em pleno; têm direito a estar inseridas num ambiente de cuidado, de desafio e de ensino de qualidade, um ambiente de igualdade efetiva.

Em julho deste ano, em plenas férias escolares, a FENPROF, a APD, a CNOD, e também diversos pais e encarregados de educação, promoveram uma conferência de imprensa à porta do Ministério da Educação. Foram dos primeiros a chamar a atenção para a falta de condições concretas para o regresso à escola destas crianças e jovens.

«Às portas do mês de dezembro, como balanço do que tem sido este primeiro período, este assunto não pode continuar a ser ignorado e deixado a cargo das famílias, como se de um problema da esfera familiar se tratasse.»

Nesta iniciativa (quase sem visibilidade na comunicação social, mas partilhada e divulgada entre os que vivem efetivamente esta situação), alertavam para o alheamento e a falta de noção da realidade do Ministério da Educação:

«(…) O Ministério da Educação fecha-se em torno das insuficientes condições de organização do próximo ano letivo, por si definidas, sem atender às preocupações que toda a comunidade educativa tem vindo a manifestar. (…) Se a situação é complicada para a generalidade dos alunos, que dizer quando se fala de alunos com necessidades educativas especiais, pois embora elas tenham sido apagadas do quadro legal, mantêm-se no mundo real. Foi precisamente para exigir as condições adequadas para o regresso dos alunos com necessidades educativas especiais às escolas (mais recursos humanos e materiais, integração em grupos mais pequenos que proporcionem verdadeira inclusão, mais horas de apoio, mais e adequados EPI…)

(...)

O regresso ao ensino presencial é fundamental para estas, como para todas as crianças e jovens em idade escolar, mas isso só se tornará possível se formos exigentes nas condições e estas se verificarem. Ser facilitista, como acontece com o Ministério da Educação, terá como consequência o rápido regresso ao ensino remoto, que deveria ser resposta para uma situação de emergência, mas não para a falta de investimento e de medidas concretas e corretas para fazer face à situação epidemiológica.»

Nesta iniciativa, o testemunho realista e esclarecido dos pais dos alunos demonstra as enormes preocupações manifestadas ainda antes de o ano letivo começar, preocupações que por esta altura só podemos compreender e, lamentavelmente, confirmar.

Sobre as dificuldades enfrentadas neste primeiro período têm saído tímidas notícias, que precisam urgentemente de ser ampliadas no sentido de trazer a público uma situação que não podemos de todo aceitar. Quem tem espaço nos jornais escreve umas linhas se conhece uma ou outra situação próxima, mas a indignação tem-se mantido num insuportável tom moderado.

As notícias sobre o assunto1, longe de falarem de «uma questão de abertura de mentalidades em relação a crianças especiais» (tecla velha que alguns vendedores de «formação na área da inclusão» insistem em tocar), dão-nos conta de coisas tão terra a terra como a falta de transportes e de veículos adaptados para cadeiras de rodas, inexistência de rampas de acesso, falta de flexibilidade dos diretores (convertidos em verdadeiros patrões das escolas) para definir percursos físicos acessíveis a todos, bloqueios na relação com as famílias, inexistência de máscaras ou material de proteção adaptado a estas crianças e jovens, falta de equipamentos para leitura de textos por alunos cegos, inexistência de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa para alunos surdos, entre outros... E, acima de tudo, a crónica falta de auxiliares, prejudicial a todos os alunos, mas a estes em particular.

Em relação à falta de auxiliares nas escolas, e ainda durante o ano lectivo passado (que durou poucos meses), dezenas de iniciativas de denúncia, greves e ações de protesto foram desenvolvidas em estabelecimentos de ensino um pouco por todo o País. São os próprios trabalhadores das escolas que, exaustos e sem condições de acorrer a tudo, se têm mobilizado para que a situação se altere. 

A situação é tão flagrante, que as próprias famílias, sentindo o problema, muitas vezes o denunciam, apresentando queixas ao Ministério, conseguindo mesmo que os professores mais esclarecidos e com maior consciência se solidarizem com a situação. Este ano tudo está pior.

Sobre este assunto, o Conselho Nacional de Educação (CNE), não podendo deixar de reconhecer uma questão óbvia, escreve o seguinte na sua Recomendação de setembro de 2020:

«Diretores escolares ouvidos para o relatório da OCDE referem não ter pessoal de apoio suficiente. Embora a OCDE considere que, em Portugal, os rácios destes profissionais são baixos relativamente a outros países, admite que possa existir mais necessidade de pessoal de apoio (Liebowitz et al, 2018: 27-28).

(...)

Em Portugal, muitos dos intervenientes da comunidade educativa consideram ser um número insuficiente face às necessidades. O facto de os agrupamentos congregarem várias escolas distribuídas por diversos edifícios ou pavilhões implica a necessidade de um maior número de profissionais por cada agrupamento, o que nem sempre está acautelado no cálculo previsto nos diplomas legais.

(...) Na mesma linha, sugere que se avalie até que ponto as referidas carências de pessoal estão associadas às necessidades de apoio a alunos com distúrbios comportamentais ou necessidades especiais de educação.» 

Longe do cenário colorido que nos traçam as comunicações oficiais sobre a reabertura das escolas, o cenário real é outro. De facto, a reabertura das escolas é a decisão mais acertada, mas não podemos, mesmo com o receio legítimo de que voltem a encerrar, deixar de apontar e denunciar os problemas.

A somar à falta de auxiliares, recursos, espaços e meios adequados, temos professores envelhecidos e enfrentando eles próprios severos ataques aos seus direitos laborais  e à sua imagem social (não reconhecimento do tempo de serviço, precariedade e baixos salários, desrespeito pelo horário de descanso, e exaustão efectiva  com a acumulação de horas e horas de preparação de aulas e preenchimento de burocracia).

«Longe do cenário colorido que nos traçam as comunicações oficiais sobre a reabertura das escolas, o cenário real é outro. De facto, a reabertura das escolas é a decisão mais acertada, mas não podemos, mesmo com o receio legítimo de que voltem a encerrar, deixar de apontar e denunciar os problemas.»

A carência de psicólogos nas escolas permanece, apesar da abertura de mais 500 vagas no ano lectivo de 2015-2016. A precariedade entre a classe também é grande e a vinculação de grande parte destes profissionais deu-se no longínquo ano de 1991.

Com a pandemia e as consequências na saúde mental das famílias, obrigadas a um confinamento e a uma pressão sem precedentes, não faltaram os anúncios oficiais do Ministério a garantir «apoio psicológico». Saber o que foi feito nesse aspecto, sem se terem contratado mais profissionais desta área para as escolas, é um balanço que, no final deste período as escolas precisam de fazer.

Como é que esses psicólogos (um ou dois por agrupamento de escolas, em muitos casos) chegam para dar o apoio necessário numa situação de grande ansiedade e angústia, vivida pelas crianças e jovens em geral, e trabalham ainda com as crianças e jovens que necessitam permanentemente do seu suporte?

Como colaboram com os professores e educadores de infância? Que condições têm estes psicólogos para colaborar na definição de necessidades educativas especiais? Para identificar e encaminhar casos de problemas de desenvolvimento infantil?

De facto, o Decreto de Lei n.º 54/2018, que enquadra legalmente a identificação de alunos que carecem de medidas educativas especiais (e que começou a ser aplicado nas escolas durante o passado ano letivo), retira da alçada dos psicólogos a identificação das crianças com este tipo de necessidades, sem qualquer parecer, bastando que os educadores, o professor de Educação Especial ou mesmo os encarregados de educação, reconheçam qualquer tipo de comportamento que lhes pareça carecer de apoio.

Numa escola cada vez mais distante das reais necessidades de crianças e jovens, onde a maioria das crianças passa mais de oito horas diárias (sentada e dentro de salas), de onde sai de noite, e onde se multiplicam os comportamentos disruptivos e a indisciplina, que garantia podemos ter de que estes comportamentos não sejam avaliados como inadaptação?

É benéfico classificar a inadaptação à escola atual como um fator negativo? O sentido crítico em relação à escola como a conhecemos hoje onde fica no meio desta análise?

«Numa escola cada vez mais distante das reais necessidades de crianças e jovens, onde a maioria das crianças passa mais de oito horas diárias (sentada e dentro de salas), de onde sai de noite, e onde se multiplicam os comportamentos disruptivos e a indisciplina, que garantia podemos ter de que estes comportamentos não sejam avaliados como inadaptação?»

Qual a verdadeira dimensão de um decreto de lei que abre um precedente que até agora não existia? O de aplicar medidas pedagógicas especiais a crianças sem nenhum diagnóstico feito por psicólogos ou médicos?

Foram muitas as questões levantadas aquando da discussão deste Decreto, uma das quais, a deste não se debruçar sobre a alocução de recursos e criação de condições materiais para a inclusão mas, pelo contrário, não resolvendo nenhum dos problemas apontados pelos professores, famílias e comunidade escolar, definir que o trabalho deve ser feito «numa lógica de rentabilização dos recursos existentes na escola».

Falar de inclusão e de oportunidades para todos os alunos também é falar da legislação existente e deste ambiente nas escolas mas, no entanto, ele é pouco tocado nos debates mais mediáticos, em conferências e formações que credenciam especialistas criados à pressão para não tocarem em assuntos incómodos à tutela.

Fala-se, assim (abstratamente e em painéis a apelar ao sentimento) da «mudança de atitude em relação à diferença», das «crianças especiais que é preciso incluir» (sem dizer muito bem como), da «vocação» colocada em tom quase espiritual para trabalhar com estas crianças, entre outras inutilidades...

Em tempos de relativismo e desvalorização do conhecimento científico, tais conceções, em casos mais agudos, resvalam facilmente para campos quase esotéricos, dos quais resulta abundante literatura, infelizmente demasiado promovida junto de educadores e professores que careciam de outro apoio.

Têm sido lançados há mais de duas décadas os mesmos chavões e as mesmas frases sonantes sobre o tema «inclusão», sem que nada mude de forma consistente, até porque nada pode mudar se não se garantirem as condições materiais de acesso e permanência na escola para todas as crianças e jovens.

Há uma necessidade premente de lançar para o debate público as reais necessidades destes jovens, mais do que nunca este ano letivo e nos difíceis tempos que se avizinham.

Torna-se cada vez mais importante ouvir os testemunhos das famílias, das extraordinárias conquistas feitas quando as condições são garantidas e o ambiente envolvente é favorável. Conquistas normalmente feitas em coletivo, onde as crianças ainda apelidadas de normais, também ganham e desenvolvem a capacidade de viver com todos.

É preciso ouvir falar das condições concretas que enfrentam estes alunos no seu percurso escolar, e permitir que ganhem condições para se desenvolverem, frequentarem a escola e viverem como têm direito. Aceitar que a escola é só para alguns não é o caminho. A escola pública tem de ser a escola de todos.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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