Um diz que o povo é racista, o outro que a sociedade portuguesa, nem mais, nem menos, está doente por causa de situações em caixas de comentários e ainda outro afiança que ouve constantes boçalidades racistas em cafés, naturalmente representativas de milhões. Ainda ninguém usou o método Fátima Bonifácio e fingiu escutar a empregada doméstica para daí confirmar uma previamente tirada lição histórico-filosófica reacionária, mas já faltou mais.
Tenho andado a colecionar as frequentes tiradas elitistas da «esquerda brâmane» em Portugal, termo cunhado por Thomas Piketty e coautores para dar a ver o afastamento em relação às classes populares maioritárias daquilo que passa por elite diplomada, cada vez mais dominante na social-democracia ou nos ecologistas com bombas e sem luta de classes nos países do Atlântico Norte. Em Portugal, o Livre é o partido da esquerda brâmane por excelência.
«Apoucar o povo substitui o estudo, atividade tão necessária e que há que organizar coletivamente para todos. Sem estudo das formas de economia política, histórica e geograficamente concretas, sem estudo da história e da teoria políticas puras e duras, não há apuramento substantivo da estratégia política mais adequada»
Esta esquerda, chamemos-lhe assim por convenção, está enredada num autêntico círculo vicioso, incapaz sequer, por introspeção, de se colocar no lugar dos segmentos das classes subalternas que, derrotados e desorganizados, votam, contra os seus interesses objetivos, nos fascistas, seduzidos pela sua demagogia amplamente televisionada, alarmados pelos súbitos fluxos migratórios, por exemplo, e pelos seus impactos assimétricos, sobretudo vantajosos para os mesmos que exploram os de cá.
São os mesmos que desertaram do sempre poderoso e maleável terreno nacional, seduzidos por euro-tolices, relembro o leitor. Passaram a divertir-se e a beneficiar com jogos sem fronteiras, alardeando um cosmopolitismo que nunca pode ser confundido com internacionalismo. Basta pensar como muitos soçobraram moralmente perante o genocídio palestiniano. E agora estão sem chão, só lhes restando apoiar a corrida armamentista.
Apoucar o povo substitui o estudo, atividade tão necessária e que há que organizar coletivamente para todos. Sem estudo das formas de economia política, histórica e geograficamente concretas, sem estudo da história e da teoria políticas puras e duras, não há apuramento substantivo da estratégia política mais adequada. Só resta a tática, tão míope quanto desmemoriada, gizada por generais sem exércitos.
Apoucar o povo substitui aliás a militância política, seja tomando partido, seja organizada em partido de classe. Esta não pode ser um somatório de egos, agigantados por primárias e outras americanices, tendo de ser antes coletivo intelectual persistente, partindo do princípio que todos os indivíduos são intelectuais, independentemente dos diplomas.
Alguns dos membros da esquerda brâmane estão instalados na comunicação social e não têm grandes incentivos para explorar a fundo as formas como a oferta política tão reacionária quanto mediatizada condiciona a procura política, para não dizer que a determina. Têm, isso sim, cada vez mais incentivos para virar cada vez mais à direita.
Muitos já esqueceram, ou nunca conheceram, o problema da «falsa consciência» ou, para estômagos fragilizados pela dieta liberal, o problema das preferências políticas adaptativas, quer dizer o problema da forma como o capitalismo engendra formas de dividir e de manipular, de impedir a passagem da classe em si à classe para si.
E, obcecada com as «qualificações», será que a esquerda brâmane leva a sério o facto de Ventura ter um doutoramento, havendo muitos mais como ele no seio do fascismo, esse produto político da classe dominante? A sensibilidade política e a empatia não estão correlacionadas com diplomas.
«Caindo na tentação decadentista, apetece dizer que a capacitação técnico-científica do país foi acompanhada, pelo menos desde a viragem do milénio, da incapacitação política de grande parte da agora mais numerosa elite intelectual»
Imaginai, no contexto infinitamente pior da ditadura, se os antifascistas antes de 1974 se tivessem posto nestes preparos elitistas, insultando o povo, sem cuidar de explorar e agigantar os elementos progressistas do contraditório e mutável fundo comum de uma cultura nacional que nunca esteve parada, até porque estava sendo produzida por esse mesmo povo: nunca teria havido 25 de abril, aposto.
É como se parte da nossa elite que se diz de esquerda fosse hoje uma aristocracia falida, que vivesse das rendas minguadas de uma história que já esqueceu. Caindo na tentação decadentista, apetece dizer que a capacitação técnico-científica do país foi acompanhada, pelo menos desde a viragem do milénio, da incapacitação política de grande parte da agora mais numerosa elite intelectual. À esquerda houve um retrocesso, à direita um avanço, na realidade. O dinheiro ajudou a direita, claro. O elitismo partilhado é a sua expressão mais clara, reflexo da prolongada hegemonia liberal.
Encontrei nas redes sociais uma citação de Amílcar Cabral, que não consegui confirmar nas suas obras, que as Edições Avante! têm editado, confirmando quem tem valorizado devidamente o seu centenário: «Jamais confundam o povo com os inimigos do povo. Nunca caiam na tentação de odiar o povo».
E cito Cabral, porque a lição deste marxista-leninista é universal e porque o 25 de abril deve muito à luta esperançosa dos que, cá e lá, ousaram imaginar e construir nações livres, com os povos realmente existentes, sabendo que a autodeterminação e o florescimento coletivos estão imbricados.
Desgraçadamente, Portugal já não é um Estado que se autodetermina em demasiadas áreas demasiado fundamentais. Terá de voltar a autodeterminar-se um dia e isso exigirá uma mudança prévia de hábitos intelectuais. Haja esperança, todos mudamos.
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