Como se não bastasse o livro Identidade e Família, eis que o mesmo autor – Paulo Otero – e o mesmo prefaciador – Passos Coelho – lançam novo livro, agora dedicado ao aborto: My Body, My Life. Junta-se a esse coro, o anúncio «Obrigado, mãe», de Miguel Milhão (aka Guru Mike Billions), e outros instrumentos de propaganda, peças de um puzzle que alimenta um ambiente em que o conservadorismo se normaliza, enquanto o Estado falha em garantir direitos fundamentais, tal como inscrito na Constituição da República Portuguesa.
E, agora, até a Constituição querem alterar. Porque será, não é?
Os resultados das últimas eleições legislativas – com a vitória da AD e aumento das forças de direita e extrema-direita – reforçam esse ambiente e ressuscitam discursos que vendem retrocessos como soluções – sempre às custas dos direitos e da autonomia das pessoas, especialmente das mulheres.
É impossível não pensar no livro The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood (adaptação televisiva: O Conto da Aia). Um inquietante denominador comum emerge: a desilusão face à incapacidade das políticas em resolver problemas sociais é terreno fértil para discursos que prometem «soluções rápidas», mas que significam retrocessos brutais na liberdade, nos direitos, sobretudo das mulheres. Atwood, no extremo distópico, imagina a mulher como propriedade do Estado, em que as mulheres férteis são endeusadas, mas sujeitas a uma violência, incluindo sexual, absolutamente atroz. Inimaginável. Justificada. Normalizada.
«A desilusão face à incapacidade das políticas em resolver problemas sociais é terreno fértil para discursos que prometem "soluções rápidas", mas que significam retrocessos brutais na liberdade, nos direitos, sobretudo das mulheres»
O (legítimo) descontentamento torna-se combustível para narrativas ultraconservadoras e autoritárias, onde o retrocesso social é vendido como progresso, sacrificando a dignidade humana.
Em comum, todos mostram que o poder promete ordem e estabilidade, mas à custa da liberdade e dos direitos humanos. O anunciado desenvolvimento é, na verdade, uma regressão disfarçada, limitação de direitos, de autodeterminação, com aumento da violência.
E, enquanto isso, vemos, lemos e ouvimos – na vida real e nos dias de hoje – relatos de atos violentos, racistas, xenófobos e nazis. Nada disto é inocente.
Neoliberalismo, conservadorismo e manipulação da opinião pública
O vídeo «Obrigado, mãe» não é só um anúncio. É também um manifesto conservador disfarçado de homenagem. Reduz a mulher ao papel reprodutor, criminaliza sua autonomia e glorifica a maternidade como destino inquestionável. Um paradoxo do neoliberalismo: promover a «liberdade» ao mesmo tempo que negligencia as condições de vida das mulheres, que restringe a autonomia e as escolhas das mulheres.
Identidade e Família revela como o neoliberalismo e o conservadorismo andam de mãos dadas, ao empurrar responsabilidades sociais para o plano individual, reforçando o papel reprodutivo da mulher e a «família tradicional» (heterossexual) como instituição imutável e idealizada.
O novo livro antiaborto segue a mesma linha anti escolha, com autores conhecidos por contestar a capacidade de decisão da mulher sobre a maternidade. Já sabemos ao que vêm.
Debaixo de discursos sedutores sobre «autonomia feminina» e «dedicação ao cuidado da família», na prática, promove-se o retrocesso no plano socioeconómico para dar lugar ao mercado e à austeridade. É a apologia da renúncia: menos Estado, menos investimento na Escola Pública, no SNS, na Segurança Social e na habitação. Tudo isso se torna «negociável».
Estes três contributos encaixam-se perfeitamente na opção ideológica: reafirmar a mulher como reprodutora e usar a moral conservadora para justificar a regressão social e de direitos.
«Debaixo de discursos sedutores sobre «autonomia feminina» e "dedicação ao cuidado da família", na prática, promove-se o retrocesso no plano socioeconómico para dar lugar ao mercado e à austeridade.»
Estas narrativas não são apenas retóricas – são instrumentos de um projeto político e económico que junta neoliberalismo e moral conservadora. O primeiro reduz o Estado, transforma direitos em mercadorias, empobrece e precariza. O segundo justifica essa destruição com valores «tradicionais» e reforça a desigualdade de género.
O neoliberalismo não é só um sistema económico assente em menos Estado: é a destruição da nossa Constituição, de direitos e funções sociais, transferindo para a família e para o plano individual, responsabilidades que a Constituição define como coletivas e sociais. A moral conservadora serve para esconder o retrocesso nos direitos.
Quem quer mesmo defender a vida deve, primeiro, respeitar o direito de escolha
Esta ofensiva contra o direito de escolha das mulheres caminha lado a lado com o neoliberalismo – do qual Passos Coelho (ex-primeiro-ministro e ex-presidente do PSD), foi também responsável – que corta na saúde, precariza vidas, congela salários, ataca direitos dos trabalhadores e das mães.
Uma política que transforma direitos em mercadoria e serviços pagos, que não investe em creches, na saúde, nem na promoção de direitos na maternidade – paternidade, salários dignos ou habitação acessível.
O discurso pró-vida e conservador é hipócrita: quer garantir nascimentos, mas ignora a qualidade de vida dessas futuras vidas e das suas mães. O mito da família «natural» serve para desviar a responsabilidade do Estado, fazendo mulheres e famílias carregarem sozinhas o peso da renovação geracional. A mensagem é clara: menos liberdade, menos diversidade, menos direitos e menos igualdade.
Assim, Identidade e Família e My Body, My Life deveriam ser usados para denunciar a manipulação da opinião pública, desmascarar o discurso neoliberal conservador e fortalecer a resistência que exige acesso real, universal e de qualidade aos serviços públicos de saúde e à interrupção voluntária da gravidez. Só assim a autonomia das mulheres e a justiça social podem avançar para além das páginas dos livros e dos discursos vazios.
«O discurso pró-vida e conservador é hipócrita: quer garantir nascimentos, mas ignora a qualidade de vida dessas futuras vidas e das suas mães.»
Nestes dias discute-se o Programa do Governo — mais um exemplo do brutal ataque às condições de vida e direitos das mulheres. Já tiraram as luvas e o assalto não tem amortecedores. Com grande pertinência, o PCP apresentou uma Moção de Censura a este programa. Veremos como os restantes partidos se irão posicionar. Depois, faremos o teste do algodão e veremos quem «dará a mão» ao Governo e a estas políticas que afrontam direitos e agravam as condições de vida.
Num país onde a desigualdade cresce, onde os salários são ainda mais baixos para mulheres, as várias formas de violência sobre as mulheres persistem e o acesso aos serviços públicos é obstaculizando, o programa do Governo agrava a vida das mulheres trabalhadoras e suas famílias. Porque mantém baixos salários, a precariedade; porque reduz autonomia e liberdade das mulheres, que enfrentam a dupla exploração. Cortar na saúde, educação e proteção social piora a vida de quem mais precisa. É um inquestionável aprofundamento das discriminações, e das desigualdades.
O programa do Governo, esses livros, anúncios e outras manipulações com tempo de antena são instrumentos da mesma política: a que nos explora e mantém abaixo do nível da água, a que quer mulheres submissas, recatadas, discriminadas e exploradas.
Querem retroceder? Azar. Contem com a nossa resistência, nossa luta contra tudo que seja retrocesso.
Não voltaremos aos cabides, aos corredores escuros, nem ao silêncio. Nem seremos recatadas, nem do lar, enquanto o Governo do PSD e CDS-PP desfila seus «inconseguimentos».
Liberdade, direitos e dignidade não têm preço e não podem ser desvalorizados. E se alguém se incomoda com isso, paciência.
Contem com o incómodo das mulheres que lutam e exigem que a lei se cumpra, para todas, no SNS, e em todo o País. Se negam, denunciamos. Se impedem, lutamos. Se atrasam, exigimos: cumprimento da Lei da IVG já!
Não aceitamos que se perpetue esta objeção institucional no acesso à IVG. Denunciamos cada obstáculo. Exigimos que a Lei seja cumprida em cada hospital, em cada região. É hora de cumprir!
NEM UM PASSO ATRÁS: por direitos, pela igualdade e dignidade das mulheres.
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