|Nuno Ramos de Almeida

Vivam as greves e as mulheres que amamentam os filhos

Onde se fala na primeira greve da humanidade feita pelos servos da praia da verdade. Um spoiler, a luta triunfou.

Quando uma greve é noticiada, raramente são descritas as reivindicações dos trabalhadores, todo o ângulo da notícia é sobre incómodos que o protesto dos trabalhadores causa na população em geral. É a repetição deste discurso que permite ganhar apoio para legislar contra os sindicatos e o direito à greve, como se faz nas propostas laborais do governo. O que se pretende é tornar a greve como a letra da canção do Sérgio Godinho:

«Se eu mandasse neles/os teus trabalhadores/seriam uns amores

Greves era só/das seis e meia às sete/em frente a um cassetete

Primeiro de Maio/só de quinze em quinze anos

Feriado em Abril/só no dia dos enganos»

Aquilo que não se explica é que a liquidação na prática do direito à greve, fazendo dele apenas algo que é pago pelos grevistas sem nenhum efeito de forçar os patrões a discutirem as reivindicações dos trabalhadores, impede que todos possamos melhorar as nossas condições de vida, mesmo aqueles que sofrem, momentaneamente, com os efeitos de uma paralisação dos grevistas.

As várias reformas laborais, eufemismo de manobras legislativas para dar mais poder e dinheiro aos patrões, executadas pelos governos de Durão Barroso, Passos Coelho e Luís Montenegro, contribuíram para que cada vez menos o rendimento nacional seja distribuído para quem trabalha.

«Portugal, segundo o relatório do The Global Wealth Report, referente a 2020, contava com mais 19 430 milionários em ano de pandemia. E os 1% mais ricos detinham um quinto da riqueza.»

Num estudo do Colabor, do ISCTE, mostra-se que o crescimento da produtividade não correspondeu a igual crescimento dos salários. Entre 2013 e 2022, a produtividade subiu mais oito pontos percentuais do que os salários. Só com uma enorme desigualdade de poder entre patrões e trabalhadores se pode perceber que, numa situação de quase pleno emprego, com uma enorme falta de trabalhadores, em sectores como na hotelaria e restauração a produtividade tenha subido 54,7% e o ganho médio dos trabalhadores apenas 19,4%. Provavelmente, a reboque do aumento do salário mínimo que subiu 45,4% nesse intervalo de tempo. 

Nas várias graves crises, a do subprime, troika, pandemia e o aumento de preços devido à crise do comércio internacional e da guerra da Ucrânia, as sociedades ficaram mais pobres, mas os ricos ficaram mais ricos. Para isso, contribuiu a política neoliberal de tirar todo o poder aos sindicatos e fazer com que os trabalhadores estejam mais fracos.

Portugal, segundo o relatório do The Global Wealth Report, referente a 2020, contava com mais 19 430 milionários em ano de pandemia. E os 1% mais ricos detinham um quinto da riqueza.

Foram as greves e as lutas do movimento operário que conquistaram a jornada de trabalho de oito horas, o direito a férias e até o direito ao voto para todos. Nada foi dado aos trabalhadores, tudo foi conquistado. Muitas dessas conquistas, que hoje nos parecem fazer parte da paisagem, custaram vidas e foram fruto de gerações de lutadores. E muitas delas estão hoje em causa. 

Mesmo durante os 48 anos de ditadura, com a greve proibida e os sindicatos reprimidos, os trabalhadores fizeram greves.

O governo de direita pretende erigir um paraíso para os patrões: não há negociação colectiva, é quase proibido o direito à greve, e os sindicatos são reprimidos e impedidos de fazer propaganda nas empresas sem sindicalizados. Esquecem-se que podem reprimir a justa luta dos trabalhadores, mas que estes já conquistaram direitos em lutas mais duras e em circunstâncias mais difíceis. Ao tornarem a vida dos assalariados impossível estão a encomendar uma explosão. Mais tarde ou mais cedo, as pessoas vão deixar de aceitar patrões ricos com empresas em que há salários de miséria, e os trabalhadores vão lutar e conquistar uma vida mais justa. 

O primeiro registo que há de uma greve na História da humanidade é de 1155 AC (antes da nossa era), e aconteceu no Vale dos Reis, no Egipto, do reinado de Ramsés III. 

«Mais de 2000 anos depois, ainda há governantes que pretendem vender gato por lebre e responsabilizar as mães trabalhadoras por terem filhos, supostamente para ganharem umas horas para amamentar.»

A história deste primeiro conflito social é contada pelo escriba Amennakht no «papiro da greve», conservado no Museu Egípcio de Turim, fragmentos de cerâmica, conservados nomeadamente no Cairo e em Berlim, e que pode ser lida na revista Alternatives Economiques.

Os artesãos do Vale dos Reis recusaram-se a trabalhar, dado que não lhes tinham dado os alimentos que faziam parte do pagamento do seu trabalho. 

Os chamados de «servos da Praça da Verdade», os trabalhadores e artesãos do Vale dos Reis, eram funcionários públicos empregados na construção de túmulos e templos funerários para os faraós. Residiam na aldeia de Set Ma'at (a Praça da Verdade, hoje Deir el-Medina) e constituíam uma corporação no Império Novo egípcio, composta por escultores, pedreiros e pintores.

Esses funcionários reais não eram pagos em dinheiro, mas em espécie: carne, aves, peixe, pão, cerveja, laticínios, roupas e até sacos de cereais para os trabalhadores qualificados.

A certa altura, devido à crise no Egipto, os abastecimentos demoraram a chegar e a qualidade das rações deteriorou-se. Os trabalhadores das obras do Vale dos Reis, confiantes na sua posição de força na sociedade egípcia da época, começaram a parar de trabalhar em sinal de protesto. Os artesãos ocuparam os templos e outros edifícios administrativos para impedir o bom funcionamento da vida económica.

Normalmente limitado a transcrever o estado de avanço das obras, o escriba Amennakht torna-se então um testemunho privilegiado deste evento pioneiro. No seu texto relata as palavras dos trabalhadores:

«Viemos para cá, pressionados pela fome e pela sede. Não temos roupas, não temos óleo. Não temos peixe, não temos comida. Por isso, escreva ao Faraó, nosso gracioso senhor, e escreva ao vizir, nosso chefe, para que nos dêem o que precisamos para viver».

Depois de uma dura luta, os primeiros grevistas da humanidade ganharam.

Mais de 2000 anos depois, ainda há governantes que pretendem vender gato por lebre e responsabilizar as mães trabalhadoras por terem filhos, supostamente para ganharem umas horas para amamentar.

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