Com pompa e circunstância realizou-se no passado dia 24 de Outubro uma Conferência sobre a mobilidade nos territórios de baixa densidade. Nele, a Autoridade de Mobilidade e Transportes (AMT) publicou um Estudo sobre o tema onde descobre que «a oferta de Transportes Públicos é mais pronunciada nos municípios que não são de baixa densidade.» Como se houvesse algum recanto do universo onde acontecesse o contrário. É que, seja qual for o grau de mercantilização ou de socialização da economia, os municípios de baixa densidade populacional terão sempre uma menor oferta de transportes públicos. A questão não é se a oferta é ou não menor. A questão é o quase abandono dessas regiões, e uma oferta tão baixa que ela própria contribui para o processo de despovoamento. E principalmente, porquê? Só por serem «de baixa densidade» ou por causa de um conjunto de opções políticas que prejudicaram, que agravaram a situação nos municípios «de baixa densidade»? Mas falar de porquês questiona a política que tem sido seguida, que é exactamente a mesma que se quer continuar a seguir.
Assim, a quantificação de meia dúzia de realidades por todos conhecida tenta disfarçar o que a AMT não estudou e não quer estudar. E à cabeça é preciso dizer porque é que não quer. Porque quer manter o caminho que está a ser seguido há – grosso modo – 30 anos: o da liberalização dos transportes públicos. Que nunca é avaliado, que nunca é questionado. E é assim que conseguem alimentar a triturante mecânica onde para resolver as consequências dos processos de liberalização a solução é sempre mais liberalização.
O estudo «descobre» que os municípios de baixa densidade têm muito menos presença da ferrovia. Mais uma vez, qual a surpresa? Mas já agora... no quadro do processo de liberalização da ferrovia, o país não passou 30 anos a encerrar linhas, ramais e estações? O número de Municípios de Baixa Densidade ligados à rede ferroviária não era maior antes do encerramento – entre 1985 e 2013 – de 289 estações e 1255 quilómetros de via em 30 linhas e ramais? Não teria muito mais interesse estudar porque se encerrou? No quadro de que processo? Sobre a responsabilidade de quem? Com que objectivos? Não foram estes encerramentos uma consequência directa e inevitável do processo de liberalização da ferrovia? Não são uma consequência directa e inevitável de todos os processos de liberalização, que comprimem a oferta até à procura solvente? E depois – mas só depois – exigem apoios públicos para a procura não solvente?
Outro exemplo: o transporte rodoviário de passageiros, que é praticamente inexistente nos municípios de baixa densidade. Ficámos a saber, pelo estudo, que «em relação à oferta de transporte regular, os valores médios são de 691 Veículo Km/km2 nos municípios de baixa densidade e de 11667 Veículo Km/km2 nos restantes.» Importante precisão sobre uma realidade que todos conhecíamos ou intuíamos. Mas, mais importante: qual a relação destes dados com as diferentes fases do processo de liberalização do transporte rodoviário de passageiros? Esta realidade – repetimos, em parte natural devido à diferença de densidade populacional – agravou-se ou melhorou com a destruição da Rodoviária Nacional? E agora com a contratualização do serviço público[fn]O processo de contratualização arrasta-se, prometendo agora Ana Paulo Vitorino que todos os processos «possam ser concluídos em 2024, estando todos em curso». E porque se atrasou o processo? Porque em muitos locais os privados deixaram os concursos desertos porque queriam ser mais bem pagos. Que Ana Paula Vitorino caracteriza desta forma: «o mercado não correspondeu às condições submetidas à concorrência, o que implicou o relançamento de procedimentos ou a sua reformulação». E é sabido que em muitas outras regiões os privados ameaçam abandonar as concessões se as CIM/AM não lhes pagarem mais.[/fn]?
Nas rondas de propaganda motivadas pela realização da dita Conferência, Ana Paulo Vitorino afirmou que «há uma fraca atractividade financeira por parte dos operadores para este tipo de linhas porque a procura é muito baixa». Mas isso não era um dado de partida? Foi preciso privatizar e liberalizar o sector para o descobrir? Não era essa «fraca atractividade» que explicava os resultados da Rodoviária Nacional e explica hoje os resultados da CP Regional? Não foi essa «fraca atractividade» usada para privatizar? Claro, agora que o sector, nestas regiões de baixa densidade, está privatizado no essencial, passamos à fase do depois, o que implica que agora é preciso que o Estado abra os cordões à bolsa e atribua «naturais» e maiores apoios públicos para compensar a fraca atratividade.
«Não era essa "fraca atractividade" que explicava os resultados da Rodoviária Nacional e explica hoje os resultados da CP Regional? Não foi essa "fraca atractividade" usada para privatizar?»
A mecânica da liberalização é sempre a mesma: onde a oferta pode gerar lucros, ela é colocada a gerar lucros; onde a oferta não tem a possibilidade de gerar lucros, ela é abandonada e o Estado é chamado a subsidiar essa oferta até ela poder gerar lucros.
Outra das novidades da Conferência foi a de identificar as potencialidades da intermodalidade, e de como a resposta tem que ser intermodal. Mas, mais uma vez, isso sempre foi assim e não se aplica apenas às regiões de baixa densidade. Já o velhinho passe L123 se chamava intermodal por alguma razão. Claro que é preciso encontrar soluções mais dinâmicas e flexíveis para as tais regiões onde a oferta regular de meios pesados é naturalmente menor. Mais uma vez, qual o balanço dos passos dados? Por que razão a maioria das soluções de passes regionais não são plenamente intermodais no plano do transporte colectivo de passageiros? Qual o maior obstáculo a uma maior intermodalidade entre os diferentes modos de transporte? Não será a diferente propriedade de muitos deles? Somos informados – mas não surpreendidos – que o TVDE não opera em quase metade dos territórios de baixa densidade, e que os táxis têm um número de licenças por habitante superior nos municípios de baixa densidade que no resto do país.
Mas nada se reflecte sobre o impacto da introdução do TVDE na oferta global, que em muitas zonas e períodos se reduziu. Nem sobre a evolução do táxi e as políticas que impactaram nessa evolução (por exemplo, a retirada do transporte de doentes não acamados).
«Qual o maior obstáculo a uma maior intermodalidade entre os diferentes modos de transporte? Não será a diferente propriedade de muitos deles?»
Acenam-nos com as potencialidades da agregação dos diferentes modos de transporte em plataformas de transporte. Que são inegáveis. Mas se o plano é encaixar no projecto da Uber, essas vantagens desaparecem. Só o Estado tem os meios e o capital para avançar com uma plataforma que não agrave as taras do actual sistema e não o coloque a pagar o dízimo a uma multinacional. Porque não avança, começando por integrar os sistemas públicos ou com contratação pública, e depois ligando ao serviço público de táxi?
Por fim, todo o problema é tratado como se dois terços do território nacional fossem um deserto, onde naturalmente vive muito pouca gente, e como vive pouca gente é preciso montar um serviço de transportes adequado a essa realidade. Ora, Portugal não é um deserto, apesar de ter o seu interior a perder população. Que razões existem para esse despovoamento? Não há um conjunto de políticas que directamente contribuem para esse resultado? Desde a política agrícola ao encerramento de serviços essenciais, não assistimos a políticas conduzidas por critérios liberalizantes, todas produzindo o mesmo resultado um pouco por todo o lado? Todas agravando o processo de despovoamento em vez de o reverterem? E não têm sido os transportes públicos uma dessas políticas?
A tudo isto, ao essencial da Conferência sobre a mobilidade nas regiões de baixa densidade, chama-se fazer o mal e a caramunha. É um truque antigo para eternizar a velha política. Temos de recusar ir a este jogo com as regras que nos querem impor e antes tratar do que tem que ser questionado, travado e revertido: o processo de liberalização dos transportes.