O exercício do direito à constituição e funcionamento das associações de estudantes (AE) ou até mesmo a realização de reuniões gerais de alunos (RGA) têm sido objecto de restrições e proibições em muitas escolas do ensino básico e secundário, um pouco por todo o País.
Esta realidade expressa laivos de autoritarismo que vão para além da legítima preocupação com as regras sanitárias exigidas no momento actual.
É indiscutível que a defesa da saúde pública tem de ser princípio orientador na organização escolar no quadro da pandemia que vivemos. Mas será que a salvaguarda das regras sanitárias implica que os estudantes tenham de ser arredados de pôr em prática os seus direitos democráticos? E que lhes seja retirada autonomia e espaço de criatividade para, os próprios, conceberem formas seguras para o exercício dos seus direitos?
«a defesa da saúde pública tem de ser princípio orientador na organização escolar no quadro da pandemia que vivemos. Mas será que a salvaguarda das regras sanitárias implica que os estudantes tenham de ser arredados de pôr em prática os seus direitos democráticos?»
Naturalmente, no actual contexto de crise sanitária, as escolas, com grande exigência para as suas direcções e quadros docentes e não docentes, mas também para os seus estudantes, tiveram de criar condições para as aulas presenciais, num quadro de grandes e acrescidas dificuldades, quando é conhecida a falta estrutural de recursos humanos, materiais e técnicos.
Uma das medidas implementadas para limitar os contactos entre estudantes e minimizar os riscos para a saúde pública da sua presença nas salas de aula, é o conceito de «bolha». Assim, os estudantes devem evitar sair da «sua bolha» e não devem estar próximos ou contactar de perto com colegas de turmas diferentes, ou até mesmo frequentar espaços, dentro da escola, que impliquem cruzar-se com alunos de outras salas.
Esta e outras medidas podem ser plenamente justificadas para evitar a propagação de contágios inter-turmas e mitigar eventuais surtos. Até aqui tudo bem.
«Esta e outras medidas podem ser plenamente justificadas para evitar a propagação de contágios inter-turmas e mitigar eventuais surtos. Até aqui tudo bem. No entanto, impõe-se discutir se as limitações necessárias são ou podem ser impeditivas de questões essenciais à vida dos estudantes, como o direito a associarem-se e a organizarem-se democraticamente»
No entanto, impõe-se discutir se as limitações necessárias são ou podem ser impeditivas de questões essenciais à vida dos estudantes, como o direito a associarem-se e a organizarem-se democraticamente. É que não é preciso furar-se «a bolha» para garantir condições de saúde e higiene na participação estudantil em diversas esferas.
Na verdade, a questão que se coloca é que podem e têm de ser ultrapassadas as dificuldades que se vivem, neste ano lectivo, na realização de diversas actividades que impliquem o exercício da democracia por parte dos estudantes. Porque a pergunta fundamental que se impõe é: qual o conceito de democracia que as novas gerações terão sobre organização, associação e democracia?
O debate está longe de ser de hoje. As limitações ao exercício de direitos democráticos não são fruto da vida em pandemia, mas estão a ser agravadas com este pretexto. Nos últimos anos agravaram-se situações de desprezo e paternalismo sobre os direitos associativos e organizativos dos estudantes.
São inúmeras as situações que traduzem exercícios de verdadeira coacção sobre a actividade estudantil, legitimadas pelo Estatuto do Aluno, aprovado por um governo do PS em 2002, e revisto, para pior, em 2012, pelo então governo de PSD/CDS-PP. Este instrumento legal, que já vai sendo conhecido junto dos estudantes como «código penal», confronta aquele que deveria ser o papel da Escola Pública, que deveria promover respostas pedagógicas, de integração e cooperação entre a comunidade educativa, e não privilegiar a punição e a proibição.
No actual contexto, este é, com muita incidência, um tema que ocupa presença no espaço público, com os defensores das ideias mais obscuras e reaccionárias, a aproveitar todos e quaisquer pretextos para pôr em causa o exercício de direitos políticos, sindicais e associativos.
Mas, se por um lado, há quem muito aproveite a oportunidade para escalar o ataque a estes direitos e liberdades, idealizando sedimentá-los, por outro não é menos verdade que o quadro político de resistência que se vive, em diversos sectores da sociedade, contraria e demonstra, pela prática, que é possível prosseguir a vida em todas as dimensões, com os cuidados devidos.
Torna-se factual que os problemas que já existiam se agravaram exponencialmente com o contexto da pandemia, com mais um pretexto para adiar e suspender estes direitos.
«O paternalismo e o facilitismo não são respeitadores da juventude. A construção colectiva, a participação com responsabilidade, a solidariedade e o cumprimento das regras sanitárias exigidas no actual momento são sim, o que de mais relevante as novas gerações podem levar para o seu futuro deste presente que vivemos»
Chegam-nos relatos de escolas onde as RGA só seriam «autorizadas» pela direcção se fossem realizadas por plataformas online, não se fazendo um esforço mínimo para garantir em auditórios, pavilhões ou campos desportivos a sua realização. Mas também se registam, a par de outros anos lectivos, significativos impedimentos à formação de listas e à construção do processo eleitoral para a eleição de AE.
Ou ainda direcções de escolas que adiam, unilateralmente, as eleições que estavam a ser organizadas pelos estudantes, ou que recusam ceder espaços mais amplos para a realização de uma RGA.
Termos como «proibir tudo», «não é possível», «suspender», são agora do léxico diário dos estudantes que ousam, mesmo em contexto de pandemia e com intenção de cumprir as regras sanitárias, não adiar os seus direitos políticos.
O paternalismo e o facilitismo não são respeitadores da juventude. A construção colectiva, a participação com responsabilidade, a solidariedade e o cumprimento das regras sanitárias exigidas no actual momento são sim, o que de mais relevante as novas gerações podem levar para o seu futuro deste presente que vivemos.
É que se há coisa que esta pandemia veio demonstrar, é que o ser humano é criativo e expedito a encontrar soluções para prosseguir a vida, dentro do cumprimento de regras sanitárias. E isso verifica-se em todas as esferas da vida, desde o pequeno comércio aos grandes espectáculos, passando pelo exercício de direitos políticos, como foram as eleições para a assembleia legislativa da Região Autónoma dos Açores.
É pois um dever cívico e uma exigência inadiável a criação de condições para que os jovens e os estudantes tenham a possibilidade de exercer os seus direitos e liberdades políticos, em cada escola. Naturalmente tendo em conta a realidade dos espaços de cada escola, para limitar e prevenir quaisquer riscos para a saúde pública.
Em tempos de crise económica, social e sanitária – mais do que nunca –, torna-se crucial revisitarmos a Lei Fundamental do País sobre esta matéria. E o seu artigo 73.º, n.º 2 fornece as orientações para responder à actual situação: «o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva».
A garantia do exercício de direitos democráticos tem de ser também o papel da escola nos dias de hoje e deve sê-lo em respeito de uma óptica de formação integral dos indivíduos. Porque é na escola que se dão os primeiros passos para participar activamente na vida democrática do País. Vedar o acesso a estes direitos só alimenta os problemas de participação que muitos vão lamentando, omitindo as soluções que têm à sua frente.