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Culpar o árbitro ou a arte da manipulação

Assiste-se, no futebol, como na nossa sociedade, a uma manipulação das expetativas dos adeptos, com vista ao alcançar de interesses que pouco ou nada parecem corresponder aos ideais de desporto e jogo.

CréditosManuel Fernando Araújo / Agência Lusa

A forma como se reage às decisões de arbitragem é um campo de manipulação de opinião pública que utiliza o futebol como laboratório para a expansão de ideias que contrariam a possibilidade de educação, debate e evolução. Um perigo onde todos têm a sua parte de responsabilidade.

Na cultura portuguesa, a ideia de infalibilidade inatingível constituiu-se como um recurso utilizável para justificar a ausência de ação. Esta ideia parte de uma exigência que é imposta aos outros, enquanto se busca uma atenuante para as próprias falhas. É uma ideia utilizada, tantas vezes, como um degrau que, sendo impossível de alcançar (não existe ninguém que seja perfeito), então todos estarão desculpados para abdicar de a tentar atingir. A ideia de processo que pode ser percorrido por um coletivo fica para trás, porque a perfeição, a que todos estariam dispostos a aderir se ela se apresentasse pronta a usar, não existe.

Recorrer a esta artimanha lógica é um dos caminhos para quem procura manipular a perceção dos acontecimentos. A meio da passada semana, perante a ação do árbitro Benoit Bastien no jogo entre Fiorentina e Braga, na qual o francês rejeitou a indicação da tecnologia da linha de golo e não validou um tento a favor dos italianos, Artur Jorge, o técnico da equipa minhota, declarou que isto provaria que «nada no futebol é totalmente fiável». Em Portugal, depois de Sporting, Benfica, Braga e FC Porto terem, num momento ou noutro, feito grande alarido de queixas sobre arbitragens, o presidente dos portistas, Pinto da Costa, exigia no domingo o fim do VAR.

Em todos estes casos se desenha a mesma artimanha. Perante a possível falibilidade de uma ferramenta, exige-se o seu fim. Não se vê em Portugal um esforço para apresentar resultados sobre as decisões tomadas com esta tecnologia. Em Inglaterra, a Premier League passou a organizar workshops onde os responsáveis de arbitragem apresentam casos a jornalistas, com vista a explicar o processo de elaboração dos critérios de ação. No Brasil, a federação local apresenta com regularidade vídeos que explicam cada uma das decisões. Em ambos os casos, o objetivo é claro. Para alcançar um conjunto de critérios aceitáveis por todos, é preciso que todos contribuam de alguma forma para o resultado final.

« Em Portugal, depois de Sporting, Benfica, Braga e FC Porto terem, num momento ou noutro, feito grande alarido de queixas sobre arbitragens, o presidente dos portistas, Pinto da Costa, exigia no domingo o fim do VAR.»

Em Portugal, o esforço dos principais clubes tem estado mais do lado de definir quem ganha vantagem milimétrica através de eventuais erros dos árbitros. Cada direção de informação gasta enormes recursos e tempo de antena nos canais próprios para desfilar interpretações que se apliquem aos interesses particulares. Da parte de quem tem a responsabilidade de defender a arbitragem em Portugal também não se vê um trabalho efetivo para comunicar de forma clara. Sob a égide da Federação, mas assumindo um estilo muito próprio à Liga Portugal, o silêncio e a venda da ideia de decisões sem recurso a análise, pouco se escutam os responsáveis de arbitragem, com muitos ex-árbitros a utilizarem também o espaço público para alimentar alguma confusão sobre como nos relacionarmos com o trabalho dos juízes em campo.

Parece difícil de entender que não existem ferramentas perfeitas, nem o futebol terá alguma vez a capacidade para resolver problemas que pertencem à sociedade e ao humano. A utilização do VAR corresponderá, sempre, ao ambiente que se respirar na competição onde este é utilizado. Na Liga Portuguesa, o alimentar de polémicas parte de dentro dos próprios clubes, com vários atores a assumirem um papel de lançadores de fumo para as discussões necessárias, continua a transtornar qualquer esperança de melhoria no imediato.

Assiste-se, no futebol, como na nossa sociedade, a uma manipulação das expetativas dos adeptos, com vista ao alcançar de interesses que pouco ou nada parecem corresponder aos ideais de desporto e jogo. E, nesse caminho, é fácil utilizar o futebol como laboratório para ações cujas consequências se observaram noutras áreas da nossa sociedade. A defesa do futebol enquanto jogo é, por isso, uma ação essencial para aqueles que entendem que a nossa sociedade precisa de exemplos pedagógicos e educativos de debate na vida democrática. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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