Crianças que hoje se encontram no 3.º ano do primeiro ciclo têm uma escolaridade marcada por confinamentos, aulas à distância, bolhas, máscaras, apelos ao distanciamento. Entretanto, a exigência das aprendizagens prossegue como se nada tivesse acontecido. O que estamos a fazer a estas crianças?
Estamos a fazer asneiras, porque é óbvio que a escola também tem que aprender que estas crianças têm um mundo que as cerca e que mudou. Significa que as crianças estão a ser muito penalizadas pelo facto de terem uma escola muito estruturada, com currículos intensos e extensos, muito centrada numa escolarização que, de algum modo, só tem como objectivo teste atrás de teste e médias para entrar na universidade, com uma expectativa familiar muito intensa de que tenham boas notas. É uma escola que olha para o corpo e apenas tem em mente o cérebro. Um cérebro que aprende e não um corpo activo, que através de sentimentos e emoções tem necessidade de se expressar, e essa é uma das questões mais preocupantes.
Por outro lado, é preciso também dizer que as crianças, principalmente até aos dez anos (estamos a falar de creche, pré-escolar e primeiro ciclo), precisam de tempo para ser crianças. E hoje, não é em todos os casos, mas a escola de algum modo omite muito esta necessidade básica, ancestral, biológica, psicológica e social de as crianças terem tempos não formais para poderem aprender coisas que são fundamentais. Porque brincar não é um comportamento inútil nem secundário, é um comportamento absolutamente fundamental. Brincar é aprender. Diria que temos que desformalizar um pouco a forma como a escola funciona, de modo a dar mais liberdade, autonomia e participação das crianças, para que o processo de aprendizagem tenha significado para elas. As crianças têm que ter, acima de tudo, curiosidade e, por outro lado, entusiasmo. Só assim é que elas aprendem, porque de facto de outra maneira não têm motivação intrínseca para terem capacidade de buscar conhecimento.
«Porque brincar não é um comportamento inútil nem secundário, é um comportamento absolutamente fundamental. Brincar é aprender.»
A busca de conhecimento faz-se porque há interesse interno de o organismo se conhecer a si próprio, mas conhecer também aquilo que o envolve. Se as escolas, em vez de terem as crianças sentadas, quietas e caladas, tivessem as crianças activas e se fossem elas as protagonistas da aprendizagem, isto é, sendo elas os próprios interlocutores da busca do conhecimento através de contextos, de formas, de projectos… tentando ouvi-las, tentando colocá-las em participação nos temas ou nos projectos que se pretende desenvolver, então provavelmente a escola tornar-se-ia muito mais interessante para as crianças. De outra forma, o que acontece é que elas não encontram entusiasmo, porque também não encontram na escola desafios, e esses desafios têm muito a ver com a cultura própria de ser criança. E a cultura própria de ser criança é brincar.
Faz falta um novo paradigma.
Nós somos o animal com a infância mais longa de todas, não tem sentido nenhum andarmos com uma metodologia de aprender tudo à pressa, porque temos muito tempo para aprender. Com esta angústia pandémica que se criou no contexto escolar, de as crianças terem que aprender tudo e de uma forma muito intensa, e passando muito tempo escolarizadas na escola… Repare que além do tempo escolar ainda temos muitas outras escolas paralelas, como são as AEC [Actividades de Enriquecimento Curricular], as CAF [Componente de Apoio à Família], os ATL [Actividades de Tempos Livres] , as explicações, os trabalhos de casa, as actividades organizadas que os pais também se encarregam de fazer. As crianças vivem verdadeiramente aprisionadas hoje na escola, em casa e na comunidade.
Nós temos que libertar as crianças para que elas tenham mais vida activa, mais participação, mais liberdade e mais autonomia para serem crianças. Porque a infância só se vive uma vez, é irrepetível, portanto tem que haver aqui um maior equilíbrio entre o tempo escolar, o tempo familiar, e também o tempo vivido em comunidade. Porque se olhar hoje para a cidade não vê crianças. Elas são transportadas de carro, não vivem, não brincam, não têm aventuras, não têm conexão com a natureza, não se confrontam com o risco. Portanto, vivem de facto dentro de prisões, com quatro paredes e sentadas numa sala de aula, como se a escola do século XXI pudesse ser apenas a sala de aula.
Nós temos que desconstruir a sala de aula para aprender lá fora. As crianças têm que vir cá para fora, para a cidade, para o contexto comunitário, porque lá também existe escola. A aprendizagem e o conhecimento não se faz apenas entre quatro paredes, faz-se em toda a comunidade. Portanto, temos que redesenhar um novo paradigma para a escola, um novo paradigma social de educação, em que trabalhem juntos de uma forma cooperativa, democrática, e a escola tem que mudar para uma outra ordem de valores.
Esta é a minha visão de escola, muito baseada acima de tudo num corpo activo, com um cérebro aprendendo através de emoções e sentimentos e é preciso também que a avaliação das crianças não seja escravizada pela avaliação.
«Nós temos que libertar as crianças para que elas tenham mais vida activa, mais participação, mais liberdade e mais autonomia para serem crianças. Porque a infância só se vive uma vez, é irrepetível (...)»
A aprendizagem tem que ser um acto de liberdade, de prazer, de busca de conhecimento, por isso digo que hoje a escola deve procurar ter alunos que sejam exploradores, pesquisadores, pequenos cientistas, artistas e também desportistas. Dêem às crianças oportunidades de elas se poderem exprimir as suas necessidades intrínsecas, as suas motivações, e de terem oportunidade de aprender aquilo que querem e não aquilo que o sistema exige. Porque não é aceitável que as crianças estejam todas a aprender ao mesmo tempo, no mesmo sítio e da mesma maneira, sendo elas todas diferentes umas das outras. A escola esmaga completamente a curiosidade das crianças, e isso não pode acontecer.
Para termos crianças motivadas, precisamos de uma escola pública valorizada, mas a realidade não reflecte isso. Há falta de auxiliares de acção educativa, um corpo docente instável, turmas que pecam por excesso de alunos, falta de psicólogos...
Nós temos que rapidamente motivar a escola e também dar melhores condições para que os professores possam trabalhar com prazer e não apenas com burocracia. Porque os professores fazem um trabalho absolutamente notável, o problema são as expectativas sociais, familiares, as expectativas que se colocam em cima das crianças, tudo centrado no produto, tudo centrado nos resultados, uma escola que não tem em atenção a necessidade de tempo livre, a necessidade do brincar livre para as crianças, e isso é absolutamente essencial. É um alimento fundamental para se poder crescer.
O corpo docente está cansado, comprimido. Está com uma carga enorme porque a sua profissão não é valorizada socialmente nem salarialmente. Por outro lado, há muitos anos que não há subida de escalões, muitos de facto já se demitiram da função, muitos outros continuam a ser excelentes professores, com grande energia para a profissão que tiraram, mas a escola tem que ser mais acarinhada do ponto de vista de retirar a carga burocrática que tem e deixar que as pessoas tenham mais liberdade de aprender com as crianças, em conjunto, e dêem mais significado a um mundo que mudou e que não se sabe exactamente qual é o seu contorno a médio e longo prazo. Nós não sabemos o que vai ser o futuro, ele é imprevisível, incerto e desconhecido. Por isso, a pergunta que se impõe é esta: estamos a preparar estas crianças para que futuro?
Consegue adivinhar?
Provavelmente, aquilo que elas estão a aprender hoje em dia, nas matérias consideradas mais nobres, não servirá para nada, porque a sociedade vai mudar e estamos perante três transições que são vertiginosas, que nunca aconteceram na humanidade. Por um lado, uma transição digital; a inteligência artificial, a robótica, as neurociências, a genética, vieram para ficar e mudar o mundo, para mudar os processos, os mecanismos de assimilação de conhecimento e de vivência da vida, da nossa existência.
O actual Governo, na linha dos anteriores, «nada fez de concreto» para resolver este problema, reconhecido como grave pela OCDE, insistindo na precariedade e na sazonalidade do emprego nas escolas. Os dados divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com base num estudo efectuado nos últimos três anos nas escolas portuguesas, num conjunto de 79 países, confirmam «a razão da luta da comunidade escolar» pelo reforço do número de auxiliares de acção educativa, afirma a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (FNSTFPS/CGTP-IN) em comunicado. A falta de auxiliares de acção educativa nas escolas da rede pública contribui para «a limitação da capacidade de ensino e de aprendizagem», considera a federação, para além do aumento da carga laboral dos trabalhadores em serviço. O actual Governo, na linha dos anteriores, «nada fez de concreto» para resolver este problema, reconhecido como grave pela OCDE, insistindo na precariedade e na sazonalidade do emprego nas escolas públicas, denuncia a FNSTFPS. Atribuir ao surto epidémico da Covid-19 a culpa dos problemas decorrentes da falta destes trabalhadores é «um acto de inegável mistificação», acrescenta a estrutura sindical, lembrando que a pandemia só veio «pôr a nu» um problema já existente. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
OCDE confirma necessidade de mais auxiliares de acção educativa
Contribui para uma boa ideia
Depois temos uma transição muito preocupante que é a transição verde. O planeta está doente, temos que tratar dele, temos que ter uma educação ecológica nas crianças desde as primeiras idades para que elas tenham de facto uma percepção de que o envolvimento que as rodeia precisa de ser acarinhado e também acompanhado de uma forma séria. E temos uma transição também energética, que está a colocar o mundo numa situação imprevisível contra o futuro, portanto, diria que, se estivéssemos atentos, a escola não está isolada da família nem da comunidade, e por isso precisávamos de um pacto urgente de sustentabilidade entre a escola, a família e a comunidade.
E assim reduzir o tempo ocupado pela escola.
As crianças passam 50 horas em média na escola, no primeiro ciclo, no pré-escolar e na creche. Não podem estar tanto tempo nas escolas porque elas precisam de pais mais disponíveis, mais activos, que permitam ter mais tempo para os seus filhos, e a escola precisa de mais sossego, de mais calma, mais tranquilidade, e não andar tudo à pressa para que as crianças rapidamente obtenham notas para entrar na universidade. Este é um problema muito sério. Também acho que temos agora um desafio enorme que se vai colocar que é a questão da digitalização da escola.
Eu acho que não podemos digitalizar completamente a escola, o professor é insubstituível, e o que está a acontecer hoje em dia é que as crianças estão a ficar demasiadamente seduzidas por estas narrativas simbólicas de natureza digital. Há grandes multinacionais que se encarregam de criar essas narrativas, que são essencialmente tempos em que as crianças passam muito tempo quietas, sentadas e caladas, um aumento de sedentarismo, enormíssimo.
As crianças não se mexem, não exploram a natureza, não exploram a realidade, vivem num mundo centrado num ecrã, completamente hipnotizadas e demasiadamente protegidas.
«As crianças passam 50 horas em média na escola, no primeiro ciclo, no pré-escolar e na creche. Não podem estar tanto tempo nas escolas porque elas precisam de pais mais disponíveis, mais activos, que permitam ter mais tempo para os seus filhos, e a escola precisa de mais sossego, de mais calma, mais tranquilidade, e não andar tudo à pressa para que as crianças rapidamente obtenham notas para entrar na universidade.»
Ora, quando as crianças são completamente protegidas ficam desprotegidas. E quando estão demasiadamente quietas e hipnotizadas frente aos ecrãs lúdicos, ficam demasiadamente excitadas. E por isso eu sou apologista de que, antes de tratarmos da sua saúde mental, temos de tratar da sua saúde física. Elas ficaram muito penalizadas com esta pandemia e com este clima de incerteza que vivemos, e portanto elas estão com uma energia desconcentrada, sem foco.
Eu trabalho com crianças há 50 anos, dos três aos dez anos, e noto que nos últimos meses, depois do regresso do segundo confinamento, as crianças precisam de socialização, de mexer o corpo, de andar na rua, de andar a explorar e brincar às coisas mais simples, como jogar às escondidas, saltar os muros, subir às árvores. Primeiro é preciso recuperar o corpo. É preciso restaurar o corpo, e depois então vamos à saúde mental. A [falta de] saúde mental é uma consequência de um corpo que não está bem consigo próprio, nas emoções e nos sentimentos, e também o facto de estarem numa situação de grande iliteracia motora. Não sabem correr, não sabem saltar, isso é o princípio de tudo. Aprende-se primeiro com um corpo culto, conhecido, que se domina bem a si mesmo, um corpo que tem autonomia, mas também tem auto-estima. Hoje as crianças são demasiadamente imaturas porque não têm tédio nem frustração, têm tudo pronto na hora.
Com os tablets e os telemóveis, e usando aqui uma expressão sua, as crianças vivem cada vez mais o corpo «na ponta dos dedos». O espírito crítico e criativo dos mais novos está comprometido?
Está diminuído, porque não deixamos que se expressem. Matamos a sua curiosidade logo no princípio e não deixamos que expressem os seus talentos. Nós temos uma escola que é concebida, formatada pelos adultos em função do que nós achamos que as crianças têm que aprender, e não daquilo que elas gostariam de eventualmente procurar em função da sua motivação, do seu talento. No fundo, já perguntámos às crianças o que querem ser, antes de aprenderem? Temos de reencontrar um novo paradigma para a escola, redesenhar uma nova forma de funcionamento da escola, na sua organização, mas principalmente no seu processo de aprendizagem, porque os professores deveriam criar contextos, ter uma escola que funcionasse por meio de projectos, perguntas, e não de respostas, colocassem as crianças a serem capazes de resolver problemas, terem pensamento crítico, trabalharem em grupo e de se fazerem comunicar. Essas seriam as grandes conquistas de uma escola inteligente, activa, moderna, participativa, democrática, e não é isso que está a acontecer. Estamos a criar crianças sossegadas, muito obedientes, e isso não é para mim o conceito de uma criança activa e de uma criança sábia.
A verdade é que não é incentivada a participação pública dos cidadãos e respectiva defesa dos seus direitos. Diria até que se está a alimentar um modelo de sociedade fechado, onde falta um projecto de desenvolvimento humanista. Concorda?
A ideia é essa. Aliás, um relatório da UNESCO publicado recentemente, e que foi discutido em termos internacionais, em vários continentes, em várias culturas, define claramente um objectivo central: criar um novo contrato social para a aprendizagem em que o termo fundamental que aparece no relatório é «trabalhar juntos».
Trabalhar juntos implica de facto um modelo democrático de vivência da escola entre alunos e professores, e não um modelo hierárquico ou um modelo top-down, em que a criança recebe informação e despeja informação nos testes. Esse não é o modelo do futuro. É uma escola humanista, uma escola participativa, democrática. Não quer dizer que não tenhamos já boas experiências pedagógicas em Portugal.
«Trabalhar juntos implica de facto um modelo democrático de vivência da escola entre alunos e professores, e não um modelo hierárquico ou um modelo top-down, em que a criança recebe informação e despeja informação nos testes.»
Já temos, não precisamos de ir para a Finlândia, mas é preciso que os agrupamentos escolares, que as comunidades locais, que têm agora uma nova realidade de haver um conjunto de competências que foram delegadas para as autarquias, possam trabalhar em conjunto, dentro das escolas, mas também com as famílias, de modo a tornar as escolas mais abertas do ponto de vista do seu funcionamento, mais espertas, no sentido de entender o que é aprender, para ir buscar o conhecimento ao património artístico, ao património físico, natural, local, e cada escola ter o seu próprio projecto pedagógico. Não podemos estar sempre com um modelo que depende da tutela. Temos que redefinir os modelos de funcionamento escolar através de novas matrizes curriculares. É preciso libertar as escolas da pesada situação em que se encontram do ponto de vista do trabalho.
E também os pais…
As crianças são vítimas do trabalho dos pais. Os pais precisam de mais tempo livre com as crianças, portanto a lei do trabalho tem que ser alterada. Na comunidade europeia, no grupo dos 27, somos talvez dos países que temos horários mais rígidos. Trabalha-se de manhã à noite, as crianças passam a vida na escola, e portanto nós temos que reinventar um novo conceito de qualidade de vida para todos: para os professores, para os pais, para a comunidade, em vez desta pressa em que vivemos, em que temos um país fascinante, mas não temos qualidade de vida.
Em 2016 ficámos a saber que, em todo o mundo, as crianças perderam oito horas de brincadeira por semana nos últimos 20 anos. No seguimento do que refere, nomeadamente de as crianças estarem cada vez mais reféns dos horários desregulados dos pais, que dados tem relativamente ao nosso país?
Os dados da nossa investigação mostram que, nos últimos 30, 40 anos, as crianças têm vindo a perder de facto tempo livre para brincar durante o seu quotidiano. Quer dizer que as crianças foram de algum modo encerradas, aprisionadas no contexto escolar, com actividades muito formais. Para invertermos esta situação precisamos de tempo livre, como acontece nos países do Norte da Europa, em que as crianças têm em média quatro horas por dia para estarem com os pais em actividades livres, actividades de aventura, de contacto com a natureza.
Nós precisamos de tempo livre para crescermos, para nos adaptarmos. Não podemos estar sempre numa situação de escolarização excessiva, porque ela acaba por criar insucesso escolar.
«Para invertermos esta situação precisamos de tempo livre, como acontece nos países do Norte da Europa, em que as crianças têm em média quatro horas por dia para estarem com os pais em actividades livres (...)»
É a minha opinião, e alguns estudos têm demonstrado que quando o corpo não se mexe, quando o corpo não brinca, quando o corpo não é activo, não se confronta com o outro, quando o corpo não tem oportunidade de fazer actividades que são próprias destas idades, as crianças não ganham o nível de socialização e o nível de desenvolvimento interno, principalmente ao nível neurológico, para terem capacidade de aprendizagem escolar.
Isto está perfeitamente claro do ponto de vista da investigação, mas o sistema reprime completamente este acto de liberdade de o ser humano existir nas primeiras idades em função de direitos que estão consagrados na Carta Internacional dos Direitos da Criança. Como o artigo 31.º: direito a brincar e ao tempo livre, e, por outro lado, o artigo 12.º, que é o tempo que a criança tem para se poder exprimir livremente, o tempo de participação.
Já referiu que não se vêem crianças na rua, mas a verdade é que o espaço público não é apelativo. Encontramos muitas vezes parques infantis desligados das necessidades dos mais novos e há falta de equipamentos para os jovens. As localidades deixaram de disponibilizar espaços para a realização de desportos colectivos, a oferta de actividades físicas é maioritariamente privada.
E completamente estruturada. O espaço público é um direito de qualquer cidadão, permite que ele tenha mais condições para se referenciar no seu próprio crescimento. Hoje as crianças não conhecem os espaços junto à sua habitação, vão de carro para a escola, completamente sentadas, vêem a paisagem pelo vidro do automóvel, quer dizer que não percorrem o espaço urbano de uma forma própria em termos do uso do corpo. Não fazem brincadeiras que eram absolutamente fundamentais no seu desenvolvimento do ponto de vista perceptivo, sensorial e também mental, e terem o mapa geográfico daquilo que é a consciência do espaço. Tudo isso tem vindo a desmoronar-se completamente porque, como digo, falta capacidade de iniciativa, mobilidade autónoma.
As crianças não têm autorização para saírem sozinhas de casa, não vão a pé para a escola, não vão de bicicleta, não vão de transportes públicos, quer dizer, isto tornou-se uma desgraça de agendas completamente preenchidas nos horários das crianças, tudo formatado, e não há tempo livre. Ora tudo isso tem implicações muito nefastas no desenvolvimento humano. E até me apetecia ir mais longe, as crianças nestas idades, até à puberdade, deveriam fazer pequenas transgressões, porque se não as fizerem agora, fazem-nas mais tarde, de forma mais perigosa.
Por outro lado, como disse e muito bem, a adolescência é uma idade que está esquecida na sociedade. Os jovens estão a viver dramas enormes. Já por si, a adolescência é uma idade ansiogénica, uma idade fascinante e de grandes transições: físicas, neurológicas, sexuais, etc. E, portanto, os jovens precisavam de ter condições para terem mais prazer em viver, descobrir, ter amigos.
«(...) as crianças nestas idades, até à puberdade, deveriam fazer pequenas transgressões, porque se não as fizerem agora, fazem-nas mais tarde, de forma mais perigosa.»
Mas, de facto, há hoje um conjunto de condicionamentos que eles vivem, em que não têm espaços próprios para eles e, quando for ver, os espaços públicos são todos formatados, todos cheios de cimento e de betão e também de sintéticos. Não são espaços naturais, naturalizados, humanizados, não seduzem as crianças para sair de casa. E as crianças agora estão a colocar-se numa atitude de estarem muito seduzidas pelos telemóveis, pelos ipads, pelos computadores, por dinâmicas digitais, e há mesmo crianças que já não têm vontade de sair de casa, o que não admira. E isso muitas vezes agrada aos pais, mas os pais não percebem que isto tem imensas consequências no futuro. As crianças precisavam de ter um corpo mais ousado do ponto de vista físico e social para poderem crescer de uma forma mais saudável.
Nós precisamos de discutir nas crianças e jovens o conceito de estilo de vida activo e também de poder discutir melhor aquilo que é o conceito de cidades activas, famílias activas e escolas activas, porque, de facto, antes desta pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já tinha colocado como uma missão fundamental para o futuro prever a saúde mental e a saúde física, social e emocional de uma forma mais clara, com políticas públicas mais ousadas. Mas veio a pandemia e isso ficou tudo esquecido.
Há reflexos dessa falta de compromisso?
Têm-me chegado informações e também alguns estudos que temos feito, de que a agressividade, a violência e a indisciplina têm aumentado nas escolas, porque de facto elas estão lá, mas não têm desafios. Os recreios não têm nada de interessante, os espaços verdes não têm nada de interessante. É tudo formatado, tudo organizado por catálogo, como os espaços públicos. E portanto as crianças não têm desafios, e quando não se tem desafios não se progride, não se confronta.
Hoje as crianças não se confrontam com riscos, vive-se uma espécie de desenvolvimento humano, eu diria, sem gosto, sem cheiro, e depois claro que isso paga-se caro em termos de sintomas que aparecem, principalmente ao nível das desordens mentais, como é o caso da ansiedade, depressão, défice de atenção e hiperactividade, stress, sentimentos de suicídio na passagem para a vida adulta. Tudo isso é uma grande tragédia que está a acontecer, mas não há consciência política nem consciência social deste sofrimento invisível. Porque nós somos um país bem desenvolvido em relação ao resto do mundo, mas somos completamente subdesenvolvidos na maneira de entender os direitos que as crianças têm de se desenvolver de forma saudável, porque aquilo que era fundamental para eles não está a acontecer.
Há uma expectativa de trabalharem de uma forma tão profunda ou mais do que os adultos para obterem resultados rápidos, a qualquer preço, com explicações, com tempo excessivo na escola, para poderem ser alguém. É completamente ao contrário, as expectativas estão todas erradas.
Mais uma vez, responder aos direitos das crianças pressupõe atender aos direitos dos pais.
Exacto. Repare, a legislação laboral tem alguns dispositivos que não são usados, como a flexibilização do horário de trabalho, a jornada contínua. Os pais têm medo de pedir porque se vive numa sociedade cheia de medo, com salários baixos, e, por outro lado, com a impossibilidade de terem uma qualidade de vida como têm os países do Norte da Europa, que têm climas muito mais hostis, não têm o sol que nós temos nem a nossa cultura. Somos o quarto país mais seguro do mundo, somos dos mais visitados, e, no entanto, os portugueses não têm qualidade de vida. Isto é inaceitável.
«Porque nós somos um país bem desenvolvido em relação ao resto do mundo, mas somos completamente subdesenvolvidos na maneira de entender os direitos que as crianças têm de se desenvolver de forma saudável, porque aquilo que era fundamental para eles não está a acontecer.»
Tem que haver aqui portanto uma capacidade ousada de modificar estas políticas públicas. Por exemplo, neste Orçamento do Estado podiam estar incluídas estas preocupações para o futuro. Não é só a questão orçamental, mas é acima de tudo que o plano orçamental pudesse promover melhores condições de vida e, por outro lado, para se ter mais qualidade de vida. E se assim fosse haveria mais produtividade.
Não podemos estar sempre com uma visão de curto prazo e economicista, em vez de uma visão de qualidade de vida. Mas mesmo nas classes mais altas as crianças vivem muitos problemas decorrentes de viverem amarradas a conceitos de produtividade e de consumismo que não têm sentido.
Tem que haver aqui uma coerência entre as políticas que são de facto colocadas. A política tem que olhar para as pessoas, os partidos representados na Assembleia da República têm que olhar para a vida dos cidadãos, para o que tem de mudar nas políticas laborais, da educação, da saúde, de ordenamento do território, porque a gente depois paga tudo muito caro do ponto de vista da saúde. Em situações desta natureza, as pessoas ficam mais doentes, o que vai implicar mais gastos do ponto de vista do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Não dar tempo nem espaço para se ser criança, para brincar, não dar tempo informal para a criança ter resiliência, criatividade, o facto de esse tempo e dessa gestão não existir pode ser considerada uma forma de negligência. Provavelmente, nós temos que começar a falar disso. A sociedade portuguesa não está a dar as condições fundamentais que assinou quando aderiu à Convenção Internacional sobre dos Direitos da Criança. Temos um Estado negligente com as crianças e jovens; não lhes dá futuro, não lhes dá rumo, não lhes dá expectativas, e ainda por cima aprisiona-as num sistema educativo que não tem pés nem cabeça.
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