Vivemos um período histórico tão sombrio e perigoso, que se torna imperativo combater determinadas retóricas e discursos no espaço público, para que não se normalize e reforce um imaginário ideológico fundante do capitalismo: «as desigualdades são naturais». Por outro, é preciso fazer uma crítica firme àqueles que de alguma forma procuram justificar tais discursos. Nesse contexto e de modo respeitoso é que elaboro este breve artigo.
Leio (e ouço) regularmente Ana Sá Lopes (ASL) no jornal Público, pois, além de uma jornalista bem informada, é bastante arguta e perspicaz nas suas análises políticas, mesmo discordando delas muitas vezes. Entretanto, na última quarta-feira fez um comentário, no podcast Soundbite, acerca da intervenção do ministro da Educação, Fernando Alexandre, que relacionava pobreza e a degradação das residências estudantis, contudo, tal análise pareceu-me inconsistente e ilógico em termos de argumentação da nobre jornalista.
A tese central do raciocínio é que o ministro da Educação não tem «viés classista» na sua fala. Imagino que a ASL saiba que não existe escolha de não ter viés de classe (situação, posição, etc.), seja consciente ou não, na sociedade de classes em que vivemos. Portanto, dizer algo assim, parece-me justificar a fala classista do ministro, pois ele tem o seu viés, sim, só que não tem a posição de classe daqueles despossuídos que só conseguem fazer universidade porque o Estado possibilita residência estudantil de forma «focalizada», ou seja, não é uma política social universalizante. Fernando Alexandre escolheu ocupar uma posição e um viés de classe daqueles que vivem da exploração e do empobrecimento dos reais produtores da riqueza na nossa sociedade. O ministro tornou-se um intelectual orgânico das classes mais ricas de Portugal, de «visão liberal» como categoriza ASL.
O «fundamento» da justificação ideo-argumentativa é o facto de que o ministro, enquanto estudante bolseiro, teria vivido numa residência universitária (degradada), logo, tal situação impediria que falasse de forma classista – porque supostamente estaria falando «contra ele mesmo». Essa espécie de «lugar de fala» inibiria de tal coisa. Por essa lógica, não poderia dizer que Mussolini foi fascista, porque um dia ele pertenceu ao Partido Socialista Italiano. Seletivamente fixo uma situação na cronologia do tempo para justificar outras futuras. De um ponto de vista metodológico na teoria social, devemos partir «dos pensamentos» que o ministro tem hoje para que possamos entender como o jovem estudante, usuário da política pública, se tornou um liberal, mas não será a condição de jovem que legitima o mesmo falar que os pobres são destruidores dos bens público. É o complexo (em termos de tempo histórico) que explica o mais simples e não o seu contrário.
O ministro deixa bem claro que a questão central para ele é «misturar os extratos [leia-se classes] sociais», portanto, é mais uma forma de legitimar e perpetuar as desigualdades, estranho ele não ter viés classista? Acabar com os estratos sociais não seria melhor? Ou, criar uma política de residência estudantil universal? A ideia do «voucher moradia» (a transferência de riqueza do Estado para o privado) beneficiaria quais classes? Ser liberal não é só uma questão de ideário político, ela tem um conteúdo de classe e de manutenção de um terminado status quo.
No final do comentário, ASL, procura rechaçar aqueles que criticaram duramente o ministro («populismo de esquerda»), com a técnica argumentativa forma patologizar a situação, a dizer que o ministro «sem viés classista» teria «enlouquecido da cabeça» se disse algo assim, sinto dizer, não há nada de loucura, mas é a opção de projeto de sociedade e classe mesmo. Ele terá sido pobre um dia, mas hoje pode até ser um «pobre premium», que está ao serviço intelectual e na gestão da educação em prol das classes mais abastadas e aristocratas de Portugal.
A esquerda partiu com fúria para cima do ministro não só por essa fala, mas pelo projeto político que ele representa, em que a universidade seria um «privilégio» [para as elites], portanto, a frase que ASL que afirma ter sido mal colocada representa só o transbordar do copo de empobrecimento e pauperismo que o «viés e interesses de classe» que Alexandre defende e procurar perpetuar. O que me deixa atónito (para relembrar o chefe do ministro), é o facto de uma jornalista tão séria como Ana Sá Lopes sair em defesa do indefensável. Realmente inacreditável.
Esse tipo de retórica classista, assim como todas outras (racistas, misógina, homofóbicas etc.), só vêm para forçar uma realidade material que movimento e partidos de extrema-direita e neofascistas procuram cavalgar.
Se alguém tiver dúvidas deixo o trecho transcrito da fala de Fernando Alexandre:
«E para a mobilidade social, que eu gosto muito de falar, se há coisa mais importante e é por isso que eu sou um grande defensor da Escola Pública, se há coisa que é importante para a mobilidade social e para a democracia é a mistura de extratos sociais e aquilo que nós fazemos no Ensino Superior é não misturar, é pôr nas residências universitárias os estudantes dos meios socioeconómicos mais desfavorecidos e por isso também já agora é que depois elas se degradam, é por isso que elas depois se degradam, é por isso que elas depois não são cuidadas e é por isso que eu devo-vos dizer, eu pedi ao CNIPES [Conselho Nacional para a Inovação Pedagógica] essa reflexão e essas ações, mas confesso que eu não estou nada otimista, nada, porque quando nós metemos pessoas que são basicamente todas de rendimentos mais baixos a beneficiar do serviço público nós sabemos que esse serviço público se deteriora, é assim nos hospitais, é assim nas escolas públicas, nós sabemos que é assim. E por isso que aquilo que nós vemos nas residências e que eu – espero enganar-me –, mas que provavelmente vai continuar a acontecer, é que nós vamos ter residências todas renovadas que daqui a cinco anos vão começar a degradar. Eu espero que não, mas isso vai ser preciso um esforço muito grande, a reinvenção por parte dos gestores dos serviços sociais, das universidades e dos politécnicos, porque aquele elemento que verdadeiramente faz a diferença, que é nós termos os diferentes estratos socioeconómicos a beneficiar do serviço público, aqui não vai existir, não vai continuar a existir.»
Obs.: O número de Caco Antibes que ganhou coragem de falar «tenho horror a pobreza» só tem aumentado, não será por termos normalizado e justificados tais retóricas?
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