O agrovoltaísmo é apresentado como uma solução milagrosa para conciliar dois objetivos aparentemente virtuosos: produzir energia renovável e manter a atividade agrícola. A promessa é simples e sedutora: painéis solares elevados sobre campos agrícolas, protegendo culturas, aumentando o rendimento dos agricultores e contribuindo para a transição energética. No discurso dominante, trata-se de um novo eldorado para o mundo rural. Mas, como tantas vezes acontece, a realidade é bem mais ambígua.
Na definição mais comum, o agrovoltaísmo consiste na instalação de painéis fotovoltaicos em terrenos agrícolas com a condição de que a produção agrícola se mantenha. No entanto, esta definição esconde uma tensão fundamental: quem manda no solo, a agricultura ou a energia? As experiências em curso, dentro e fora de Portugal, amplamente documentadas por investigadores e jornalistas, mostram que, na prática, a balança tende, como quase sempre, para os interesses dos grandes grupos energéticos.
Vejamos alguns números que ajudam a perceber o que está em jogo. Um parque solar no solo ocupa, em média, entre 1,2 e 1,6 hectares por megawatt instalado. A União Europeia prevê aumentar rapidamente a capacidade solar, passando de cerca de 260 GW em 2023 para 600 a 750 GW até 2030. Em Portugal, estudos de mercado apontam para um crescimento da capacidade solar de 6,8 GW em 2025 para 17,5 GW em 2030. Só este acréscimo poderá exigir entre 13 mil e 17 mil hectares adicionais de solo, pressionando sobretudo territórios rurais já fragilizados. Esta trajetória traduz-se numa pressão crescente sobre o espaço rural, num contexto em que a terra agrícola é um recurso escasso e estratégico.
«Na definição mais comum, o agrovoltaísmo consiste na instalação de painéis fotovoltaicos em terrenos agrícolas com a condição de que a produção agrícola se mantenha. No entanto, esta definição esconde uma tensão fundamental: quem manda no solo, a agricultura ou a energia?»
Vários estudos apontam para benefícios agronómicos incertos. Em alguns contextos muito específicos, certas culturas podem beneficiar de sombreamento parcial. Mas não existe evidência robusta de ganhos generalizados de produtividade. Pelo contrário, há riscos claros de redução da diversidade agrícola, de padronização das culturas e de perda de autonomia dos agricultores, transformados em meros gestores de infraestruturas energéticas alheias. É por isso que, em muitos países, incluindo Portugal, cresce a contestação. Organizações de agricultores denunciam o agrovoltaísmo como uma nova forma de apropriação do solo, comparável a um «arrendamento disfarçado» em favor das multinacionais da energia. O aumento do valor da terra, a pressão sobre o acesso ao solo e a financeirização do espaço rural são efeitos já impossíveis de ignorar. O campo deixa de ser lugar de produção alimentar para se tornar um ativo energético.
Portugal, com cerca de 3,6 milhões de hectares de superfície agrícola utilizada, apresenta um elevado défice alimentar externo e uma incapacidade persistente de valorizar o seu setor agropecuário. Durante décadas, sucessivos governos contribuíram ativamente para o desaparecimento de milhares de explorações, promovendo o abandono e a desertificação. O problema é, portanto, político: primeiro estrangulam-se os agricultores, através de preços não remuneradores e de políticas que favorecem a concentração e a grande distribuição, depois oferece-se a energia como boia de salvação.
A isto soma-se uma questão frequentemente silenciada: o fim do ciclo de vida dos painéis. Milhões de módulos fotovoltaicos terão de ser desmantelados nas próximas décadas. A reciclagem é parcial, dispendiosa e tecnologicamente limitada, e os custos ambientais e económicos desse passivo continuam largamente ausentes do debate público.
A questão central não é ser «a favor» ou «contra» a energia solar. É decidir quem controla o território e para que fins. Sem salvaguardas fortes, como a primazia absoluta da produção alimentar, limites à dimensão dos projetos, exclusão de solos agrícolas de elevada aptidão e um verdadeiro controlo público, o agrovoltaísmo arrisca tornar-se apenas mais uma promessa verde ao serviço da acumulação privada. O mundo rural não precisa de um novo eldorado. Precisa de políticas agrícolas justas, de soberania alimentar e de uma transição energética que não sacrifique a terra nem os agricultores no altar de uma falsa economia verde ao serviço de alguns.
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