A menos que as mais selectas e selectivas academias militares dos EUA se tenham subrepticiamente transformado, por um qualquer inconcebível ataque das forças do mal de que ninguém se deu conta, numa fábrica de fazer revolucionários, alguma coisa está muito mal contada nesta história dos golpes de Estado em África, de que o Níger é o mais recente capítulo.
Desde 2020, quatro golpes mudaram a face do poder instalado no Burkina Faso, Guiné, Mali e Níger, tendo em comum pelo menos duas características: o sentimento anti-francês existente naquelas ex-colónias da França, e o facto de grande parte dos militares golpistas ter sido formada nos EUA.
Os media corporativos, caixa de ressonância das 'condenações internacionais', não perderam tempo a colar rótulos de esquerda aos golpes, como se a boina vermelha de Ibrahim Traoré, do Burkina Faso, suposta alusão ao revolucionário marxista Thomas Sankara, assassinado em 1987 num golpe orquestrado pelo imperialismo, e as manifestações populares de apreço por quem no passado ajudou às lutas pela independência, a URSS socialista, não a Rússia capitalista de Putin, bastassem para credibilizar uma narrativa dissociada da realidade.
Se é um facto que o governo do general Abdourahamane Tchiani foi lesto a anunciar que não permitiria que a França continuasse a sugar o urânio do Níger (85% da exploração está nas mãos dos franceses) enquanto 42% da população nigerina vive abaixo da linha da pobreza, e revogou a cooperação militar com Paris, dando guia de marcha aos 1500 soldados franceses estacionados no país, a exemplo do sucedido no Burkina Faso e Mali, não é menos verdade que a norte-americana Base Aérea 201, em Agadez, a maior base de drones do mundo, crucial para as operações dos EUA no Sahel, não foi visada.
É um facto que existem razões de sobra para a revolta na região do Sahel, desde a apropriação de recursos naturais por companhias ocidentais sem escrúpulos, passando pelas redes de tráfico de armas, seres humanos e drogas potenciadas pela intervenção da NATO na Líbia em 2011, governos corruptos e pobreza generalizada. Mas é pouco crível que os EUA tivessem sido apanhados de surpresa com o(s) golpe(s), não sendo certamente por acaso que o secretário de estado norte-americano Antony Blinken, num tom que contrasta com a histeria bélica da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, tenha dito à Radio France International que uma solução diplomática «é certamente a forma preferida de resolver esta situação».
A marca anti-francófona dos golpes sugere o despertar de consciência patriótica das novas gerações. Nada que incomode os EUA, desde que os seus interesses não sejam beliscados. Contradições do capitalismo, que não desdenha dividir para reinar.
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