A invasão da Turquia é um novo episódio da guerra internacional contra a Síria. Tratando-se de uma violação da soberania síria – apesar de Ancara invocar a Carta das Nações Unidas alegando que se trata de «autodefesa» – a operação veio provocar alterações significativas nas relações de forças no terreno, e nem todas elas, porém, desfavoráveis à República Árabe Síria. O que está a acontecer revela um dos mais complexos quebra-cabeças existentes hoje no panorama internacional.
Levando a sério as declarações proferidas pelos dirigentes dos países envolvidos e outros mais directamente interessados conclui-se que existe unanimidade contra a acção turca, com maior ou menor indignação. Mas será que as palavras ditas correspondem à posição real de alguns países sobre os acontecimentos ou não passam de atitudes de conveniência para consumo das opiniões públicas?
Passada uma semana desde o início da operação «Fonte de Paz» desencadeada pelo regime autocrático de Recep Tayyip Erdogan e, numa fase em que Ancara parece ter aceitado um acordo de cessar-fogo, alinhemos alguns factos realmente comprovados, apuremos causas e consequências indubitavelmente registadas.
Antecedentes
Apesar das declarações de surpresa que se ouvem de muitas fontes oficiais e oficiosas, a invasão turca iniciada em 9 de Outubro não surge do nada e não pode ter apanhados desprevenidos os países mais envolvidos na questão síria, designadamente os da NATO e da União Europeia.
Tudo indica que o assunto tenha sido ventilado em reuniões anteriores, como as que realizaram os conselheiros de segurança nacional da Rússia e dos Estados Unidos na última semana de Junho e os chefes de Estado da Turquia, da Rússia e do Irão, já no mês de Setembro.
Além de movimentos diplomáticos, foram-se acumulando sinais de que a administração Trump assumia cada vez mais uma posição diferente da que foi desenvolvida por Obama em relação à guerra da Síria, uma vez que, desde Setembro de 2018, vinha evocando a possibilidade de retirar as tropas envolvidas «nessa guerra ridícula sem fim», palavras do actual presidente norte-americano.
Os sinais mais elucidativos de que a acção turca não apanhou Washington de surpresa foram dados em 23 de Agosto, quando tropas norte-americanas desmantelaram as fortificações dos terroristas curdos YPG (Força de Protecção do Povo) seus protegidos, como que aplanando terreno para a entrada patrocinada pela Turquia.
É verdade que os Estados Unidos decretaram imediatamente sanções contra a Turquia na sequência da operação; não é menos verdade que as penalizações escolhidas foram irrelevantes e logo retiradas assim que anunciado o cessar-fogo; não menos verdade é também o facto de em 11 de Outubro o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, se ter deslocado a Ancara para transmitir implicitamente o apoio da organização às operações no terreno. O que nunca teria acontecido se os Estados Unidos estivessem efectivamente contra o comportamento turco.
As partes mais surpreendidas parecem ter sido França e a Alemanha. É inegável, porém, que sabiam o que iria passar-se. Paris e Berlim, tal como Londres e todos os membros da «Coligação Internacional» contra o Daesh, foram convidados pelo governo turco a receber de volta os seus nacionais envolvidos neste grupo e que estavam nas mãos do YPG. Isso só poderia significar que os detidos iriam passar para a responsabilidade turca, pelo que alguma coisa iria acontecer nos domínios do YPG – esse mito chamado Rojava e qualificado como «um Estado curdo».
Londres reagiu remetendo os seus nacionais para o Iraque. Paris e Berlim não responderam.
Perante a entrada no Rojava – isto é, em território sírio – de forças às ordens do governo turco, a França e a Alemanha tentaram fazer reunir o Conselho da NATO, mas sem êxito; em vez disso, Stoltenberg partiu para Ancara, deixando Paris e Londres perfeitamente associados às desventuras do mirífico – mas terrorista – Rojava. Quer isto dizer que talvez pela primeira vez se assiste a um desencontro de posições entre as chefias da NATO e a «locomotiva franco-alemã» da União Europeia, isto é, entre a NATO e a União Europeia.
Primeiras consequências
No espaço de oito dias, entre a entrada das forças a mando da Turquia e o anúncio do cessar-fogo, registaram-se alterações de fundo nas relações de forças no campo de batalha em que se transformou a Síria; e não se verificou qualquer confronto armado entre turcos e sírios.
As forças invasoras não pertencem directamente às forças armadas turcas: são essencialmente mercenários curdos turcos e sírios e turcomanos sírios que agem sob as bandeiras do «Exército Livre da Síria» ou do «Exército Nacional Sírio», entidades que integram o lote dos terroristas «moderados» criados pelos «amigos da Síria» e geridos pela senhora Clinton logo no início da agressão internacional, falsamente qualificada como uma «guerra civil».
Os grupos comandados por Ancara atacaram as posições do Rojava numa faixa síria com 32 quilómetros de profundidade na fronteira norte com a Turquia, a leste do rio Eufrates. Uma faixa que há muitas décadas é regularmente utilizada pelas tropas turcas para perseguir guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), com autorização dada no tempo do presidente sírio Hafez Assad, pai de Bashar al-Assad.
As tropas às ordens da Turquia ocuparam toda a faixa – incluindo duas posições abandonadas previamente pelos ocupantes norte-americanos, Tal Abiad e Ras al-Ain – com excepção de Qamishli. Esta zona mais a Leste, junto à fronteira com o Iraque, foi tomada por um comando aerotransportado do exército regular da Síria.
Não foram apenas os grupos de mercenários turcos que se moveram nestes últimos dias. As tropas regulares sírias avançaram decididamente para Norte, para a zona do Rojava – entidade que representava um terço do território sírio – onde tomaram posições estratégicas decisivas como Raqqa, antiga «capital» do Daesh, e Hasaka, enquanto forças russas bombardeavam posições da Al-Qaeda na província de Idlib, último bastião deste grupo terrorista apoiado por potências da NATO.
Entretanto, tropas russas tomaram conta das bases militares até agora em mãos norte-americanas e que foram abandonadas.
Antes destas movimentações, em 3 de Agosto, o chefe do regime turco dera ordem às suas tropas, há muito presentes no província de Idlib, para recuarem na frente que mantinham com as tropas regulares sírias; de modo que estas ocuparam agora, nessa região, uma área de território equivalente à faixa ocupada pela Turquia a norte. Uma «troca» de zonas de influência que não pode ser coincidência.
Em termos gerais, apurados os movimentos de tropas no terreno durante os últimos dias, assinalam-se a ocupação de uma faixa a norte a rogo da Turquia, a saída da maioria das tropas norte-americanas da Síria e a presença russa nas instalações até agora usadas pelas tropas dos Estados Unidos.
A Síria terá recuperado aproximadamente mais um quarto do seu território. Para a soberania integral falta-lhe libertar a totalidade da província de Idlib e a faixa agora tomada pelos grupos a mando da Turquia.
Não houve confrontos directos entre as tropas de Damasco e os terroristas enviados por Ancara. E não é de prever que venham a registar-se, para já, pela reconquista da faixa de território a norte que estava em poder do YPG. Na verdade, noutros azimutes, o Iraque ainda não logrou recuperar à Turquia a faixa de Baachica, que tem 110 quilómetros de profundidade; nem a União Europeia conseguiu ainda expulsar as tropas turcas da terça parte do território de Chipre que ocupam no norte da ilha.
Fim do mito do Rojava
Os últimos dias representaram o fim do mito do Rojava, o «Estado curdo» montado em um terço do território sírio e que encantou algumas «esquerdas» europeias e norte-americanas com as maravilhas do seu regime «anarco-ambientalista». Que não passou, afinal, de uma máscara para a ditadura de Salih Muslim exercida por um PKK infiltrado pela CIA até ao tutano e assente numa limpeza étnica que o mundo silenciou.
Pode ir encontrar-se a génese do Rojava num protocolo secreto estabelecido em 2011 entre a França de Sarkozy e a Turquia de Erdogan. Em troca da entrada de Ancara na guerra para destruição da Líbia, a França comprometia-se a contribuir para construir uma entidade curda no nordeste da Síria, região onde as comunidades aramaicas cristãs e comunidades árabes eram maioritárias. Erdogan acreditava que a criação de um Curdistão na Síria iria eliminar o independentismo curdo na Turquia.
O acordo foi passado à prática em 31 de Outubro de 2014 no Palácio do Eliseu entre o presidente François Hollande e Erdogan, com a discreta participação de Salih Muslim, copresidente do YPG – o braço sírio do PKK.
Nem tudo funcionou, porém, como ambos os presidentes imaginavam.
Hollande foi chamado à ordem pelo presidente norte-americano, Barack Obama, lembrando-lhe o facto de o desmembramento da Síria ser um plano a executar sob comando dos Estados Unidos.
O presidente francês ter-se-á submetido. Erdogan não. Foi este, provavelmente, o primeiro choque de Ancara com Washington, respectivas repercussões no interior da NATO e uma viragem mais nítida do regime turco para o nacionalismo.
Por outro lado, Erdogan acusou Hollande de violar o protocolo de 2011 e o acordo de 2014. Seguiram-se os atentados de Paris de 13 de Novembro de 2015 e de Bruxelas em 22 de Março de 2016, com fortes possibilidades de terem tido a mão dos serviços secretos turcos.
Em Outubro de 2015 o Pentágono criou as Forças Democráticas Sírias (FDS) como organização terrorista para se substituir ao Daesh – detonado essencialmente pelos esforços conjuntos do exército sírio e dos aliados russos. O núcleo principal das FDS foi o YPG curdo, ao qual se juntaram mercenários turcos, sírios e dezenas de comandantes do Daesh libertados para o efeito.
Iniciou-se então uma dramática limpeza étnica no nordeste da Síria: as FDS expulsaram as populações árabes e cristãs assírias, substituídas por mercenários curdos e suas famílias oriundos do Iraque e da Turquia, que ocuparam as casas e as terras deixadas à força pelos proprietários. Foi com base neste crime contra a humanidade, silenciado pela miríade de organizações, governamentais ou não, que sentenciam sobre os direitos humanos, que nasceu, como braço da NATO, o mitificado Rojava – em 17 de Março de 2016. O arcebispo católico siríaco de Hassakeh-Nisib, monsenhor Jackes Behnan Hinde, testemunhou que dirigentes curdos lhe mostraram planos para expulsão dos cristãos do Rojava.
Mudanças de planos
A libertação de Alepo pelo exército nacional sírio, no início de 2017, marcou, porém, uma viragem no quadro da guerra contra a Síria. Representou uma grande derrota da NATO e da sua estratégia de desmantelamento do país – tentando replicar o que já acontecera no Iraque e na Líbia.
Perante a nova realidade, Trump alterou gradualmente a estratégia que transitara da administração Obama. Foi abandonando o YPG ao mesmo tempo que fazia saber à Turquia que a única condição para acabar com o apoio ao grupo curdo era a garantia de que seria cortada a estrada que liga o Irão ao Líbano através da Síria. Ancara aceitou: o reposicionamento das suas forças na faixa fronteiriça permite-lhe bombardear a estrada em questão.
Desde então o Rojava passou a ficar sustentado apenas pela França e a Alemanha. Macron aumentou para nove o número de bases gaulesas no território, de acordo com um mapa divulgado pela agência oficial turca. Há poucas horas, militares franceses e noruegueses em debandada por causa do avanço sírio para norte incendiaram a base onde funcionava a fábrica da cimenteira francesa Lafarge, responsável pela mais importante edificação de túneis e subterrâneos militares desde a Segunda Guerra Mundial, colocados ao serviço do Daesh e da al-Qaeda.
Perante a situação, também o YPG foi obrigado a buscar outros apoios, por uma questão de sobrevivência. Na tarde de 13 de Outubro, dirigentes do grupo negociaram com representantes de Damasco na base de Khmeimim, em poder das forças russas. Acordaram submeter-se à jurisdição do governo sírio, mas a posição assumida foi rejeitada por outra facção da organização, alegando que os negociadores não tinham mandato para pôr em causa o Rojava. A divisão enfraquece ainda mais o braço sírio do PKK.
Questões em aberto
A guerra contra a Síria entrou, indiscutivelmente, em nova fase.
A ofensiva turca contra um Estado soberano vizinho viola o direito internacional – como todas as acções minando a soberania, a integridade territorial e a dignidade do povo da Síria realizadas desde 2011 por várias potências da NATO e aliados árabes do Golfo.
Ciente de que as posições reais dos seus membros permanentes não estão em sintonia com as declarações proferidas a propósito do ataque turco, o Conselho de Segurança da ONU abordou o assunto à porta fechada. E o presidente, ao contrário do que é costume, não fez qualquer comunicação. É evidente o constrangimento da chamada «comunidade internacional» perante o que está a acontecer.
O regime turco não está isolado, apesar do seu comportamento e das declarações que o condenam. Recebeu apoio expresso da NATO – mesmo contra a vontade de importantes Estados membros – e contou com a compreensão activa dos Estados Unidos.
Em relação à União Europeia e aos ataques lançados contra Ancara, Erdogan dispõe de vários instrumentos. Pode abrir ainda mais as portas para a entrada de refugiados sírios no espaço europeu; e, sobretudo, pode enviar de volta aos seus países os terroristas jihadistas que passaram a estar detidos sob sua responsabilidade.
O governo sírio anunciou que vai reagir contra a ofensiva; tudo indica, porém, que isso só acontecerá em termos de confronto directo se a Turquia extravasar as operações para o exterior da faixa fronteiriça ou tentar travar as acções que conduzam à libertação de Idlib. Até ao momento da aceitação de um cessar-fogo pela parte turca, a Síria tinha aproveitado as novas circunstâncias proporcionadas para libertar territórios tanto em Idlib como, sobretudo, no espaço ocupado pelo Rojava.
A Rússia colocou como uma das exigências a Ancara – presumivelmente na cimeira de Setembro com o Irão e a Turquia – o regresso aos seus lares e propriedades das populações árabes e cristãs forçadas a abandonar o Nordeste da Síria devido à limpeza étnica executada pelas FDS com a cobertura dos Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido, entre outros membros da chamada «Coligação Internacional». Tropas russas apropriaram-se das instalações que foram usadas pelos ocupantes norte-americanos e participam activamente nas operações contra a al-Qaeda na província de Idlib.
Os Estados Unidos conseguiram já a garantia da Turquia de que cortará a estrada que liga o Líbano ao Irão. Na posição norte-americana estará implícita a hipótese de Israel ter obtido garantias de «segurança« em relação ao futuro da Síria, uma vez que até agora tem apostado fortemente no desmantelamento deste país e na criação de entidades «curdas» (no Iraque e na Síria) que funcionassem como territórios de interposição. O clã Barzani, que domina o Curdistão iraquiano, tal como os dirigentes fundadores do Rojava, estão absolutamente sob controlo de Israel e respectivos serviços secretos.
O Irão reprovou abertamente a ofensiva turca mas, por outro lado, não mostrou preocupação de maior com o destino do Rojava. A disponibilidade iraniana para actuar está associada, implicitamente, a uma eventual necessidade de defender comunidades xiitas, incluindo as alauitas.
No espaço sírio jogam-se, pois, várias partidas de xadrez simultâneas. Os grandes pontos de interrogação que se colocam são: estando a Turquia em vantagem em vários tabuleiros, será que a euforia nacionalista daí decorrente levará Ancara a ir além dos limites invocados, designadamente a faixa de 32 quilómetros de profundidade no norte da Síria? Ou o anúncio de um cessar-fogo será o sinal de que foram atingidos os objectivos declarados por Erdogan, a saber, «defender-se do terrorismo»?
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