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|Reino Unido

O Labour encostado à direita, a esquerda britânica na encruzilhada

Jeremy Corbyn foi impedido de se candidatar pelos trabalhistas nas próximas eleições. Com o Labour cada vez mais encostado à direita, e milhões de trabalhadores nas ruas, o que é que a esquerda britânica vai fazer?

Jeremy Corbyn participa numa manifestação com centenas de milhares de docentes em dia de greve dos professores em Londres, Inglaterra, a 1 de Fevereiro de 2023. A actual direcção do Labour (que impediu Corbyn de concorrer às próximas eleições), liderada por Keir Stammer, tem assumido uma postura abertamente anti-sindical, criticando as greves e proibindo os seus dirigentes de participarem em piquetes (ou de participarem em manifestações pela paz na Ucrânia, contra o armamento). 
Jeremy Corbyn participa numa manifestação com centenas de milhares de docentes em dia de greve dos professores em Londres, Inglaterra, a 1 de Fevereiro de 2023. A actual direcção do Labour (que impediu Corbyn de concorrer às próximas eleições), liderada por Keir Stammer, tem assumido uma postura abertamente anti-sindical, criticando as greves e proibindo os seus dirigentes de participarem em piquetes (ou de participarem em manifestações pela paz na Ucrânia, contra o armamento). CréditosJordan Pettit / PA

As sondagens não deixam mentir: a vitória do Labour nas próximas eleições legislativas no Reino Unido (antecipadas ou, se de prazo cumprido, em Janeiro de 2025) está praticamente garantida, com uma (aparente) maioria absoluta.

Ainda falta muito tempo e há que encarar estes inquéritos com «uma pitada  de sal», como dizem os ingleses. Mas a Yougov reportava em meados de Fevereiro que o Labour venceria 543 lugares na Câmara dos Comuns (mais 341 dos que hoje tem e 217 acima do limite da maioria). Há muitos, muitos anos que não se via o mapa assim pintado de vermelho, incluindo partes da Escócia, onde a saída de Nicola Sturgeon da liderança do SNP irá, certamente, transferir muitos votos para os Trabalhistas.

Isto deveriam ser notícias animadoras para os trabalhadores e para a esquerda britânica. E, até, europeia. Mas não são. O Labour está numa encruzilhada ideológica que é muito sintomática de grande parte dos partidos sociais-democratas europeus – isto para os que ainda vêem no Labour (ou no PS, no PSOE ou PS francês) algum resto de esquerda.

Purgas internas da ala mais à esquerda; hesitações na defesa do direito à greve; ausências conspícuas nos piquetes; silêncios sobre mobilização de milhões de trabalhadores em tantos sectores em todo o país; respostas ambíguas sobre austeridade ou a necessidade de salvar o Serviço Nacional de Saúde (NHS); encolher de ombros sobre o aumento geral dos salários; opiniões dispersas sobre nacionalizações (da ferrovia, da energia); nem uma palavra sobre impostos sobre milionários ou propinas universitárias; aplausos rotundos à NATO; muito uso de retórica de segurança nacional para discutir imigração: eis o retrato do Labour, que em nada parece distinguir-se do partido Conservador, excepto na cor da gravata.

O fantasma do anti-semitismo

A 15 de Fevereiro, o líder do Labour, Keir Starmer, apresentou numa conferência de imprensa os resultados do processo de monitorização da Comissão de Igualdade e Direitos Humanos (EHRC), na sequência do relatório de Outubro de 2020, que denunciava práticas de anti-semitismo durante a liderança de Jeremy Corbyn. Em 2020, após o relatório, o Labour suspendeu Corbyn, tendo-o entretanto reabilitado (é deputado nos Comuns). O partido ficou sob monitorização e a EHRC reconheceu agora que o Labour tinha, de forma satisfatória, passado o seu período de observação.

Os escândalos de anti-semitismo no Labour explodiram durante a liderança de Corbyn (2015-2020). Como os Labour Files (Ficheiros do Labour), investigação da televisão Al Jazeera, revelaram em Setembro, as denúncias sobre opiniões anti-semitas de militantes do Labour aumentaram após a revelação do manifesto de Corbyn em que afirmava, caso fosse eleito primeiro-ministro, que reconheceria o Estado da Palestina.

Isto aconteceu num momento de crescimento do número de militantes do Labour, sobretudo de jovens, que denunciavam abertamente os crimes de Israel nos territórios ocupados e a expansão dos colonatos, ao ponto de muitas das acusações a militantes do Labour confundirem anti-semitismo com críticas a Israel ou com a defesa da causa palestiniana. Mesmo assim, Corbyn nomeou uma série de organismos para regular e fiscalizar práticas anti-semitas dentro do partido. Não foi suficiente para calar a campanha (grandemente instigada pelos media, mesmo os tendencialmente de esquerda, como o Guardian) que destruiu a sua liderança.

Dentro do Labour, como revela a Al Jazeera, uma série de sabotagens, interferências (da Embaixada de Israel), alianças (até com a extrema-direita) e boatos sobre anti-semitismo em bastiões Labour de classe operária (como Liverpool), ou de esquerda mais liberal (como Brighton and Hove), deram origem a perseguições dentro do partido a militantes pró-Palestina. Estas perseguições e purgas incluíram judeus, como muitos dos membros pró-Corbyn no grupo Jewish Voice for Labour, que contestou os resultados apresentados pela EHRC. A discussão sobre anti-semitismo no Labour não parece estar encerrada, até porque vários membros judeus do partido continuam a ser perseguidos: mais de 60 foram suspensos ou expulsos.

Corbyn bloqueado

Foi nas perguntas com os jornalistas que Keir Starmer anunciou que não permitiria que Jeremy Corbyn concorresse ao seu lugar de deputado nos Comuns por Islington North, um distrito no Norte de Londres, onde Corbyn vence as eleições desde 1983. Há 40 anos que representa aquele distrito: «Dia após dia, estou concentrado nos problemas mais importantes que as pessoas de Islington North sofrem: pobreza, aumento das rendas, a crise na saúde, a segurança dos refugiados e o futuro do nosso planeta”, reagiu Corbyn».

«A actual discussão sobre o Labour parece dizer-nos que a única saída política para a crise económica e social do Reino Unido é a vitória confortável e silenciosa de Keir Starmer. Se ela trai o movimento sindical nas ruas, se ela trai milhões de trabalhadores em luta, se ela trai os britânicos à espera de uma mudança de política face aos Conservadores – é já irrelevante: sabemos que trai»

Devem ser os militantes e os seus eleitores locais a decidir por quem querem ser representados, disse Corbyn, e impedi-lo de se candidatar é um «ataque flagrante» que deverá ser combatido por «qualquer pessoa que acredita no valor da democracia». O Guardian deixou no ar a hipótese de Corbyn se candidatar pelo Labour na pré-selecção em Islington North, o que obrigaria o partido a tomar a decisão, pela Comissão Executiva, de o bloquear ou suspender formalmente.

Mas o Guardian também deixou no ar a hipótese de Corbyn concorrer como independente. Apressando-se a ir a Islington, ouviu Corbynistas convictos dizer que apoiariam um Corbyn independente: «Entrei para o Partido Trabalhista para lutar contra os Conservadores e não importa a cor da roseta que eles usem, fico feliz em lutar contra os Conservadores dentro e fora». E ouviu outros, tristes com «a polarização», que reconhecem Corbyn como um «ícone da comunidade» mas compreendem a decisão de Pago as quotas de militante e quero o Labour no poder».

Um dia depois de boicotar Jeremy Corbyn, Keir Starmer foi pela primeira vez a Kiev visitar o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. No passado fim-de-semana, Corbyn esteve presente, junto com outros militantes do Labour e sindicalistas, na marcha pela paz, contra a NATO, contra o armamento nuclear, contra a guerra na Ucrânia, em Londres. Mais um exemplo da enorme divisão dentro do Labour, entre os que aprovam o envio de armas para a Ucrânia e os que se lhe opõem.

Interessa pouco o caminho tomado por parte da esquerda britânica nas discussões sobre o carácter ou a honestidade de Keir Starmer, se quer trair Corbyn, se tem medo da ala esquerda. Ao assumir a liderança em 2020, parecia óbvio que Starmer quisesse mitigar divisões internas e afirmasse: «A todos os nossos militantes, apoiantes e amigos: digo isto. Quer tenham votado em mim ou não, eu represento-vos». Mas na conferência de imprensa em que bloqueou Corbyn, Starmer ameaçou: «Se não gostam das mudanças que instituí, a porta está aberta e podem ir-se embora».

É bastante claro que o objectivo de Starmer é purgar o que resta da tendência Momentum no Labour, um movimento de base popular que nasceu na altura da liderança de Jeremy Corbyn, e através do qual o Labour conseguiu entre 20 a 30 mil novos militantes. Em Novembro, o Guardian noticiava que o Momentum estava em enormes dificuldades financeiras. Ser membro do Labour é um requisito para se pertencer ao Momentum, que depende de contribuições individuais, e que viu «milhares de militantes de esquerda abandonarem o movimento, sob a liderança de Keir Starmer». Para onde foram, não sabemos. A purga de militantes está a acontecer um pouco por todo o país a potenciais candidatos que sejam apoiados por sindicatos ou que tenham proximidade com Corbyn.

Em simultâneo, Financial Times recomenda a Starmer que não seja «audaz» nas suas políticas: «Os eleitores querem que um líder tenha resoluções, sim, mas principalmente negativas. Não vou aumentar impostos sobre o rendimento. Não vou pedir emprestado para gastar. Não vou reabrir o processo do Brexit. (…) Uma visão positiva não é o que garante eleições. É a ausência de um susto. Em 1997, Blair era considerado vago e hesitante. Teve que se contentar com apenas a maioria de 179 lugares no parlamento. Seja menos corajoso, Starmer. Limite a sua imaginação política».

Se até o Financial Times dá Starmer garantido como primeiro-ministro mas recomenda-lhe comedimento nas políticas (que não seja demasiado radical, portanto), está aberta a frente organizada do capital britânico para que os Trabalhistas sucedam aos Conservadores sem grandes convulsões, sem grande ruído, com a naturalidade da alternância política democrática, reflectidos num espelho cada vez mais iguais entre si e a servir os interesses da burguesia britânica.

Hoje, contudo, a situação económica, social, e até geopolítica, do Reino Unido é muito diferente de quando o Labour estava no poder. E o país está numa conjuntura extraordinária, porque rara, de grandes convulsões sociais e de mobilização de milhões de trabalhadores. Isto acontece também num momento em que é cada vez mais evidente o afastamento de inúmeros sindicatos do Labour.

O boicote à participação de membros do governo sombra de Starmer nos piquetes das greves, desde o Verão passado, caiu muito mal junto dos sindicatos e de militantes mais à esquerda (alguns até impedidos de se solidarizarem com os trabalhadores). A líder de uma das maiores centrais sindicais do Reino Unido, a UNITE, Sharon Graham, disse então: «O Labour precisa ganhar espinha dorsal e apoiar os trabalhadores».

«Não é função dos parlamentares do Labour impedir as pessoas de ir trabalhar, mas é função dos parlamentares do Labour mostrar às pessoas de que lado estamos. Deveríamos ter trabalhado de forma clara, com mais antecedência, sobre como o Labour demonstraria esse apoio, sem necessariamente fazer piquetes», disse um militante fiel à liderança de Starmer. Não é função de militantes do Labour apoiar trabalhadores em greve, estar ao lado de trabalhadores em piquetes. Chegámos a 2023 para isto ser a realidade de um partido criado, ironicamente, pelo movimento sindical.

Estas declarações surgiram na altura da Convenção anual do Labour, em Setembro de 2022. Convenção essa de que a líder da UNITE esteve ausente pelo segundo ano consecutivo. Em entrevista à BBC, Graham disse que este era a oportunidade de Starmer «ser audaz» e estar do lado dos trabalhadores: «É tempo de apresentar uma alternativa, tempo de conduzir a mudança», disse. Como vimos, o Financial Times discordou. E ditou o caminho deste Labour.

E a esquerda britânica?

Isto acontece num momento em que milhões de trabalhadores britânicos estão nas ruas, em greves, mobilizados por sindicatos afectos ao Labour ou independentes do Partido Trabalhista. Segundo a New Statesman, «a escala da actual onda de disputas ainda está muito aquém das décadas de 1980 ou 1970, mas é já é um factor material que impacta o PIB britânico pela primeira vez em quase três décadas».

Este movimento de trabalhadores no Reino Unido não tem precedentes nas últimas décadas. Os números revelam que o número de trabalhadores sindicalizados tem vindo a aumentar: 1%, isto é, um em cada 10 trabalhadores no Reino Unido é sindicalizado, num total de 6,7 milhões (dados do período 2019-2021). Verdade, nada comparado com os 13 milhões dos governos de Margaret Thatcher. Mas aguardemos pelos dados de 2022 porque deverão ser surpreendentes.

Algumas das greves dos últimos meses são históricas: quer em número de trabalhadores envolvidos, quer em sectores que o fazem pela primeira vez. Dia 1 de Fevereiro, mais de 500 mil estiveram na rua numa mini greve geral concertada entre vários sectores. Todo o mês de Fevereiro estiveram em greve professores do básico, secundário e universitário, trabalhadores da ferrovia e dos transportes urbanos, enfermeiros e correios. Até, pela primeira vez, armazéns de distribuição da Amazon. E os médicos anunciaram três dias de greve em Março avisando que o NHS está «em ruptura».

Enquanto os protestos tomam as ruas, o Governo britânico prepara-se para introduzir legislação por serviços mínimos que restringe o direito à greve – já contestada em carta assinada por várias confederações sindicais europeias, como a espanhola CCOO, a francesa CGT e a alemã DGB, entre outras –, a somar à lei anti-protesto aprovada ainda durante a legislatura de Boris Johnson, e uma nova lei sobre o direito ao voto que obriga a novas formas de identificação.

É, aliás, a estas leis que Jeremy Corbyn se refere na sua coluna no Tribune, o primeiro depoimento mais longo desde que foi boicotado pelo Labour. Corbyn insiste: no custo de vida, na inflação, nos lucros das grandes empresas, no colapso ecológico, na luta dos trabalhadores. Diz que o Labour está a fazer uma purga de militantes de esquerda. E conclui: «No mínimo, a democracia consiste em dar às pessoas espaço para lutar pela redistribuição sem medo de reprovação. É por isso que continuarei a lutar pelos direitos dos membros locais em Islington North e pelos direitos dos trabalhadores nos piquetes. Aqueles que estão no caminho da mudança transformadora querem retirar-nos os nossos direitos democráticos, porque sabem que quando nos unimos, podemos vencer. O maior medo deles é a democracia, porque a democracia é a nossa maior força».

E o que é que Corbyn vai fazer? Terá espaço para avançar a solo? Quererá fazê-lo, rompendo com o Labour, partido onde está desde sempre? Ou quer apenas ser a voz da razão à esquerda manietado por forças internas do partido? Reduzir-se-á a uma espécie de Manuel Alegre a quem ninguém cala, denunciando os desvios ideológicos dos Trabalhistas, aqui e ali, em artigos que, então, até o Guardian quererá publicar em nome da pluralidade?

As sondagens mais recentes da Yougov revelam um apoio inegável da população às greves. «O apoio à greve está fortemente correlacionado com a contribuição percebida dos trabalhadores para a sociedade e se estes são mal pagos, mas não com a perturbação causada pela greve». A maioria apoia sem hesitações a greve dos enfermeiros, dos condutores de ambulância, dos bombeiros, dos professores e dos trabalhadores dos correios. Mas as opiniões dividem-se com os ferroviários, os trabalhadores do metro, os trabalhadores do handling de aeroporto, entre outros. Ainda assim, sempre em disputas cerradas entre aprovação e condenação, e mesmo com a bateria de comentariado mediático contra algumas dessas greves, nomeadamente na ferrovia. É consensual entre os inquiridos que todos estes trabalhadores são mal pagos ou têm salários abaixo do que deveriam receber.

A actual discussão sobre o Labour parece dizer-nos que a única saída política para a crise económica e social do Reino Unido é a vitória confortável e silenciosa de Keir Starmer. Se ela trai o movimento sindical nas ruas, se ela trai milhões de trabalhadores em luta, se ela trai os britânicos à espera de uma mudança de política face aos Conservadores – é já irrelevante: sabemos que trai.

Mas com uma população que apoia maioritariamente as greves e os protestos; que sente hoje, na pele, depois de todos os sacrifícios, e em todas as frentes dos serviços sociais e da economia, o resultado de mais de 13 anos de políticas de austeridade e de mais de 20 anos de privatização dos serviços públicos; uma população farta do status quo e pronta a mobilizar politicamente, sem uma organização que potencie essa luta contra a desigualdade, por direitos e pela justiça social – importa saber o que fará disto a esquerda britânica.

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