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Neom ou a «solução final» palestiniana

A operação para impor uma «solução final» do problema palestiniano dirigida pelos EUA, Israel e Arábia Saudita está a adquirir uma envergadura que escapa à comunicação mainstream e também às mais importantes instâncias internacionais. 

Donald Trump e Benjamim Netanyahu
Donald Trump e Benjamim NetanyahuCréditosDebbie Hill Pool/EPA / Agência Lusa

A operação para impor uma «solução final» do problema palestiniano dirigida pelos EUA, Israel e Arábia Saudita está a adquirir uma envergadura que escapa à comunicação mainstream – o que não acontece por acaso – e também às mais importantes instâncias internacionais, sobretudo à ONU. 

Mais alguns passos foram dados em dias recentes, agora que faltam duas semanas para a «conferência de paz» de Manamá (Bahrein), iniciativa que os organizadores pretendem transformar no início de um caminho irreversível – e fatal para os direitos dos palestinianos.

Um dos passos com enorme significado, porque traduz uma alteração de forças com peso na cena internacional, é a mudança de posição da Índia na ONU. Confortado com o reforço da sua vasta maioria nacionalista e populista, o primeiro-ministro Narendra Modi transformou a sua relação com Israel, que já era especial porque sustentada na esfera militar, num apoio internacional aos desígnios do Estado sionista e na ruptura com as estruturas que representam os palestinianos. Motivo alegado: a gestão da Faixa de Gaza pelo Hamas, um grupo «terrorista».

Um pretexto que dá para tudo e, sobretudo, carregado de coerência porque é invocado por alguém que tem vindo a reforçar posições políticas internas recorrendo ao terrorismo contra os opositores.

Outro passo dado, embora num contexto mais geral cujos contornos são ainda difusos, foi o encontro secreto realizado em Israel entre os conselheiros de segurança dos Estados Unidos, John Bolton, da Rússia, Nikolai Patruchev, e do Estado sionista, Meir Ben-Shabbat. Diz-se que a Síria e o Irão foram os temas centrais da reunião, mas não é possível abordar estes assuntos fora de um contexto regional onde se encontra, em destaque, a questão palestiniana.

A Rússia anunciou que não participará na «cimeira» de Manamá e que defende o direito internacional; mas também se vem percebendo que existe pouca vontade de Moscovo para confrontar Israel com as suas constantes violações do mesmo direito internacional.

O «direito de anexação»

Outro passo, este com uma repercussão mais imediata, é a luz verde dada pelos Estados Unidos à anexação do território da Cisjordânia por Israel. Não há outra leitura a fazer da entrevista concedida ao The New York Times pelo embaixador norte-americano em Israel, David Freeman, um dos autores do chamado «Acordo do Século», a solução da questão palestiniana que os Estados Unidos e Israel pretendem impor.

Freeman deu a entrevista como «embaixador», pelo que as suas palavras não podem ser interpretadas a título pessoal. E o diplomata, ex-advogado do grupo do grande empresário Donald Trump, declarou textualmente que Israel «tem o direito» de anexar os territórios da Cisjordânia, ainda que «não todos».

«Todos eles são judeus ortodoxos, sionistas, politicamente ligados à extrema-direita israelita chefiada pelo Partido Likud de Benjamin Netanyahu. Conclui-se facilmente que o «Acordo do Século» foi redigido a rogo do presidente dos Estados Unidos, dos lobbies sionistas mundiais e do primeiro-ministro em exercício de Israel.»

Estas palavras devem então ser interpretadas no contexto em que foram proferidas para que se entendam todos os mecanismos em desenvolvimento através de uma operação montada de maneira integrada.

O «Acordo do Século», ainda não divulgado oficialmente, parece ser apenas parte de uma engrenagem com impacto regional e global onde se jogam interesses transnacionais de biliões de dólares; e onde os palestinianos entram, no final, como uma parcela de mão-de-obra barata ou mesmo escrava. Business as usual.

O «Acordo do Século» foi redigido por quatro pessoas: Jared Kushner, genro e conselheiro do presidente Donald Trump para o Médio Oriente; Jason Greenblatt, ex-advogado do grupo Trump e enviado especial do presidente norte-americano para negociações internacionais; David Freeman, ex-advogado do grupo Trump e embaixador dos Estados Unidos em Israel; e Avi Berkowitz, chefe de gabinete de Kushner.

Todos eles são judeus ortodoxos, sionistas, politicamente ligados à extrema-direita israelita chefiada pelo Partido Likud de Benjamin Netanyahu. Conclui-se facilmente que o «Acordo do Século» foi redigido a rogo do presidente dos Estados Unidos, dos lobbies sionistas mundiais e do primeiro-ministro em exercício de Israel. Eles definem portanto as normas às quais os palestinianos terão de dar o seu «acordo».

Obviamente, e por muito que o império distribua arbitrariedade pelo planeta, as coisas ainda não funcionam assim.

Dinheiro, muito dinheiro…

Por isso o «acordo» contempla «incentivos», modernices de encher o olho, promessas que poderão parecer irrecusáveis e dinheiro a jorrar sem conta.
É aí que entram, com parte de leão, a Arábia Saudita e os seus satélites da península do petróleo, embora estejam igualmente presentes no pilar político da mistificação. Também Marrocos é chamado a integrar este grupo.

Parte dos fundos disponibilizados por estes e outros países interessados em investir nesta aventura de mil e uma noites destina-se, como já é sabido, a financiar as nações de acolhimento da diáspora palestiniana em troca da «nacionalização» dessas comunidades, isto é, integrando os refugiados como cidadãos naturalizados.

Apagar-se-iam do mapa mais de cinco milhões de refugiados palestinianos, a quem o direito internacional garante o direito de regresso à Palestina de onde eles e respectivas famílias têm sido expulsos ao longo de mais de setenta anos.

Também já são conhecidas as intenções de criar um grande polo económico, industrial e tecnológico na costa mediterrânica da Península do Sinai, em torno da cidade egípcia de El-Arish, para onde seria canalizada a população da Faixa de Gaza – segundo os planos dos autores do «Acordo do Século».

Outra fatia do bolo destinar-se-ia a comprar terras e estruturas da Cisjordânia, de modo a proceder ao «desenvolvimento e modernização» do território.

Em termos crus e directos, trata-se de tentar expulsar a maioria dos habitantes da Cisjordânia comprando-lhes as casas e as terras para instalar novas vagas de colonos oriundos de Israel e, sobretudo, do exterior. Seria uma espécie de anexação «benévola», em paralelo com a força bruta, para tentar amenizar a ocupação definitiva.

Neom, a escravatura «futurista»

A operação, porém, tem mais requinte: os novos exilados palestinianos, já de si recompensados por deixarem a pátria, ainda contariam com a vantagem suplementar de terem para onde ir, já não qualquer país árabe vizinho mergulhado em dificuldades mas sim para um verdadeiro sétimo céu ou oitava maravilha do mundo: a Cidade-Estado de Neom, onde poderão adquirir uma nova nacionalidade.

Neom será o diamante do «Acordo do Século», uma mega e robotizada cidade nascida de raiz no deserto das arábias confinando com o Mar Vermelho, em redor da cidade saudita de Tabuk no noroeste do país; uma nova cidade para funcionar em regime e território verdadeiramente multinacionais e independentes.

«As Nações Unidas têm nas suas mãos a sobrevivência, os direitos e dignidade de um povo – e também os mecanismos para cumprir as tarefas que lhe competem nesta matéria. E se a ONU não tentar por certo nada irá conseguir, pregando mais um prego no próprio caixão.»

A ideia saiu da cabeça sobredotada do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Sultan, a mesma de onde brotaram os métodos para fazer desaparecer o jornalista Jamal Kashoggi, no consulado saudita de Istambul.

O plano geral da cidade de Neom – «Neo», prefixo latino para «novo» e M da palavra árabe «Mostaqbal» (futuro), portanto «Novo Futuro» – foi apresentado pelo próprio Bin Salman há dois anos num solene evento em Riade; entretanto ganhou contornos que o adaptam ao «Acordo do Século».

Será um grande polo tecnológico, industrial, de inteligência artificial e turístico com uma área semelhante à da Bélgica, que incluirá território saudita, jordano e egípcio ligado por uma ponte sobre o Golfo de Aqaba. Do lado egípcio ficará sensivelmente a meio da Península do Sinai e a pouco mais de 200 quilómetros a sul do novo polo económico de El-Arish.

Neom, cidade saída da banda desenhada de ficção científica, terá um governo autónomo, sistema judicial independente e leis próprias, sobretudo laborais, prevendo, por certo, medidas de escravatura dourada para acolher imigrantes de todo o mundo, sobretudo os novos exilados da Cisjordânia. Base de investimento: 500 mil milhões de dólares.

A gestão do nascimento da urbe foi atribuída a Klaus Kleinfeld, cidadão alemão, presidente da Alcoa, ex-presidente da Siemens e muito bem visto pelos círculos sionistas dominantes. Como se perceberá em qualquer mapa, embora a Cidade-Estado não tenha ainda fronteiras definidas – tal como o Estado sionista – poderá confinar com Israel.

Final feliz e em «paz»

Tudo parece, pois, encaixar-se, na direcção de um final muito feliz para o problema dos palestinianos, que assim deixariam quase completamente de existir. Estaria feita a «paz» prevista no «Acordo do Século».

É certo que tanta perfeição gerou já os seus cépticos, mesmo entre os apoiantes. Um deles é o secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, que se declarou «não optimista» e acabou por ser convidado pelo presidente e respectivo genro a não repetir tal estado de espírito.

O direito internacional, esse não passa por aqui. A operação em movimento viola, ponto por ponto, tudo quanto as Nações Unidas têm estabelecido desde 1947 em relação ao problema israelo-palestiniano.

«Neom, cidade saída da banda desenhada de ficção científica, terá um governo autónomo, sistema judicial independente e leis próprias, sobretudo laborais, prevendo, por certo, medidas de escravatura dourada para acolher imigrantes de todo o mundo»

As normas previstas ridicularizam qualquer conceito de negociação, pretendem extinguir um povo da face da Terra, promovem limpezas étnicas, espezinham os direitos humanos, obedecem a uma ideia única: o dinheiro e a força tudo conseguem.

Nada do que está previsto é oficial, portando o direito internacional continua a existir e, formalmente, a prevalecer. Coisas deste género, embora não por estas palavras, costumam ser ditas pelo secretário-geral das Nações Unidas à medida que o presidente dos Estados Unidos vai mudando a embaixada de Telavive para Jerusalém ocupada, reconhece a anexação dos Montes Golã e o embaixador dos Estados Unidos em Israel diz que este país tem «o direito» de anexar a Cisjordânia.

Talvez fosse altura de o eng. António Guterres abandonar o estado contemplativo enquanto tudo vai acontecendo em seu redor. É inegável que nada do que foi planeado em Washington e Telavive altera o direito internacional; mas mina-o, enfraquece-o, «desactualiza-o» perante tanta «modernidade», tanta «inovação», tanta «conciliação».

As Nações Unidas têm nas suas mãos a sobrevivência, os direitos e dignidade de um povo – e também os mecanismos para cumprir as tarefas que lhe competem nesta matéria. E se a ONU não tentar por certo nada irá conseguir, pregando mais um prego no próprio caixão.   

O pior caminho é fazer de conta que nada está a acontecer. Está tudo a acontecer, a operação é avassaladora, tem por detrás os interesses que mandam efectivamente no mundo. À ONU cabe travá-los.

Os palestinianos e todos quantos os apoiam solidariamente através do mundo vão continuar a resistir, porém cada vez mais isolados e carentes de meios institucionais. É um combate de David contra um Golias rico, bem armado, robotizado e, até ver, absolutamente impune.

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