Pode-se dizer que 2019 começou mal. Pelo menos no Brasil. Bolsonaro tomou posse como presidente, num país dividido, com medo, sem a presença de deputados e ex-presidentes da oposição.
Como pontapé de partida, o «restabelecer a ordem» promulgando uma lei que facilita o uso e porte de arma. «Bandido bom é bandido morto». Bandido de assalto, bandido dos Sem-Terra, bandido indígena, bandido refugiado, bandido gay ou bandido vermelho, tanto dá, caso esteja a jeito. E o regresso da pena de morte «clássica», nos tribunais.
«Há que apoiar os policiais quando matam bandidos». Uma resposta à violência estabelecendo a lei da selva, quando a polícia faz parte dela e prima pela corrupção. «Socorro! Chame o ladrão!...», diz a canção, porque no «país abençoado por deus e bonito por natureza», mesmo a tragédia é música e humor, mostrando a confiança que existe na autoridade policial.
No Brasil há uma guerra interna por resolver. 62 mil mortos por agressão (cerca de 80% de raça negra) em 2016. Percebe-se o desespero causado pela insegurança quotidiana. Mas a experiência norte-americana, onde as mortes por armas de fogo são muito mais frequentes do que na Europa e se multiplicam os massacres causados por jovens desequilibrados, mostra o resultado que isso dá. Trump aconselhou os professores irem de pistola para as escolas, numa forma estranha de ensino da cidadania. A tiro. Como diria o presidente Marcelo (que está sempre a dizer coisas), essa «não lembra ao careca». A solução é política e social, com educação e justiça económica. Mais democracia e menos armas. Com Bolsonaro vai ser tudo ao contrário.
Se se encarar o advento fascizante apenas sob a óptica dos padrões morais, a pergunta surge, com naturalidade: como pode um homem tosco e violento ser eleito como presidente do Brasil, tendo o apoio de dezenas de milhões de brasileiros, quando louva a tortura e a memória da ditadura militar – «um tempo glorioso» –, apregoando ir dar cabo da «pretalhada» e expulsar «os vermelhos», ameaçando homossexuais, mulheres e adversários políticos?
«A questão pode, pois, colocar-se de outra forma: havendo, em todas as sociedades, personalidades desviantes «que não regulam bem», porque razão e em que circunstâncias elas saem do justo isolamento da sua pregação aos peixinhos, e assumem as mais altas responsabilidades políticas e de Estado, arrastando atrás de si multidões enganadas que caminham para o desastre como se seguissem o flautista de Hamelin, da conhecida história dos irmãos Grimm?»
Como podem, milhões de brasileiros eleger um deputado medíocre que, na sessão do Congresso que decidiu a admissão do escandaloso processo de impugnação da Presidente Dilma Roussef, teve a suprema baixeza de dedicar o seu voto à memória do coronel Carlos Brilhante Ustra, o facínora que a torturou? Não há limites?
Trafulhice, falta de escrúpulos e manipulação é o mínimo que se pode dizer do processo eleitoral que levou Bolsonaro à presidência.
Do golpe de impeachment de Dilma Roussef (não acusada de corrupção e substituída por Temer, um dos mais notórios corruptos), à anulação da candidatura, favorita, de Lula da Silva, oportunamente preso por corrupção pelo juiz Sérgio Moro que, dizendo abjurar a política, passou a Ministro da Justiça de Bolsonaro, tudo valeu.
A própria candidatura de Bolsonaro, há 27 anos deputado federal menor e trauliteiro, apresentado como o «novo» paladino livre de suspeitas, cujo património pessoal cresceu 150% entre 2010 e 2014 (segundo a declaração oficial), tendo, neste curto período, adquirido imóveis no valor de oito milhões de reais, com rendimentos mensais de cerca de 30 mil, causa espanto.
Eleito por um painel da TSF e pela RTP, como «figura do ano» (por diversas e contraditórias razões), a boçalidade do novo presidente do Brasil começa, de forma talvez inconsciente, a ser «normalizada».
Também em Itália se passou caso similar com o exibicionista, «mulherengo» (e latino, diriam os nórdicos) Berlusconi, grande corruptor e corrupto eleito para combater a corrupção, coisa que ainda hoje, com populistas semelhantes no governo, parece uma piada de mau gosto.
De resto, o processo de «normalização» de ideias e líderes extremistas e ultra reaccionários sempre tem acontecido, mesmo quando o «novo» (por vezes já muito rodado) protagonista, pela instabilidade do comportamento ou pelo ego demasiado arrogante, passa por «não regular bem», na expressão de Pacheco Pereira usada em relação a Trump (Público, 29 de Dezembro de 2018).
De facto, uma boa parte dos pequenos e grandes fuhrer’s da extrema-direita são aparentemente personalidades anormais, com características como as de Bolsonaro que, como afirmou Pedro Aires de Oliveira, da Universidade Nova de Lisboa (um dos membros do painel da TSF que o escolheu como figura do ano), «é figura estranha a qualquer noção de bem comum».
Na reportagem de Joana Gorjão Henriques, no Público de 30 de Dezembro de 2018, sobre o novo presidente brasileiro, «uma estudante de Engenharia de Alimentos, lembra-se de ver a cara de Bolsonaro a circular na internet há uns anos, mas como motivo de gozo entre os seus amigos. De repente o gozo tornou-se realidade».
A questão pode, pois, colocar-se de outra forma: havendo, em todas as sociedades, personalidades desviantes «que não regulam bem», porque razão e em que circunstâncias elas saem do justo isolamento da sua pregação aos peixinhos, e assumem as mais altas responsabilidades políticas e de Estado, arrastando atrás de si multidões enganadas que caminham para o desastre como se seguissem o flautista de Hamelin, da conhecida história dos irmãos Grimm?
Uma sociedade segmentada por questões «fracturantes» de raça, religião, género, opções sexuais, direitos dos animais ou outras e pulverizada em seitas e religiões, secundarizando os problemas mais nucleares do trabalho, dos salários e pensões que afectam transversalmente a maioria, certamente que ajuda.
Mas foi principalmente a insegurança do quotidiano (o Brasil é um dos países com mais assaltos e homicídios do mundo) e a revolta contra a corrupção tentacular da «classe política» no poder que, para além da desigualdade social e dos elevados níveis de miséria, mais incendiaram a revolta das pessoas, buscando em Bolsonaro uma resposta de mudança.
Uma intensa campanha de intoxicação que demonizou vítimas e branqueou culpados, com mobilização das igrejas evangélicas e utilizando os tradicionais meios de comunicação e as novas redes sociais do facebook ao what’s up para divulgar massivamente fake news sem contraditório, possibilitou às forças de direita criarem uma imagem falseada dos candidatos e dos seus programas, explorando o medo e a revolta.
Num quadro de crise económica e de descredibilização das instituições democráticas a que se juntou uma enviesada politização da justiça, tudo contribui para votos suicidários tão cheios de esperança como de irracionalidade. E as galinhas acabaram por escolher a raposa para guardar a capoeira.
Segundo o elogio de John Bolton (Conselheiro da Segurança Nacional dos USA e ex-embaixador na ONU no mandato de George W. Bush), Bolsonaro tem, com Trump, «uma mentalidade semelhante» e a sua eleição será «um sinal positivo» para a América Latina. Como o novo presidente do Brasil é um apoiante dos «20 anos de Ordem e Progresso» da ditadura brasileira e confesso admirador de Pinochet, percebemos a que isso pode levar.
«Não há fascismo, por haver gente que «não regula bem». Essa é uma explicação simplista e desculpabilizadora dos crimes da classe dominante. Há fascismo como uma forma do capitalismo resolver as suas crises reprimindo pela força todos os que se opõem aos seus objectivos de rapina»
A já anunciada deslocação da embaixada do Brasil para Jerusalém, violando decisões da ONU e ofendendo os direitos do povo palestiniano, é também uma prova dessa «mentalidade semelhante» que dá para a provocação e para a asneira, para júbilo de Netanyahu, primeiro ministro de Israel, outro extremista xenófobo presente da tomada de posse de Bolsonaro, ao lado do fascista Viktor Orbán, da Hungria. Em Brasília, «les beaux âmes se rencontrent.
E se George W. Bush, que Bolton assessorou, já na altura não era considerado um exemplo de inteligência, o seu actual patrão consegue ultrapassá-lo em muitos aspectos. Donald Trump parece reunir o consenso dos pensadores da direita «civilizada», que o consideram um bruto inculto, egocêntrico e irresponsável, que toma decisões irreflectidas e inaceitáveis (excepto quando bombardeia a Síria ou ameaça e estrangula a Venezuela).
Trump é, de facto, outro exemplo de personalidade que «não regula bem», mas que acaba por ser aceite como fazendo parte do sistema, mesmo quando exacerba uma certa crítica a muitas das suas acções (ingerências, sanções, bombardeamentos, assassinatos com drones), objectivamente semelhantes às dos seus antecessores que as fizeram com mais descrição e estilo.
Voltemos, pois, a Pacheco Pereira, um espírito mais lúcido da direita social-democrata portuguesa, admirador da política norte-americana «clássica», no seu artigo «Prendam Trump! E não faltam motivos para isso» (Público, idem):
«Para se perceber Trump é obrigatório ler os seus tweets, com as suas obsessões à flor da pele, os seus erros de ortografia, as suas frases incompreensíveis, as suas calúnias e insultos, a chantagem directa a pessoas, instituições e países, o estilo autocrata e vaidoso – tudo o que ele faz é o melhor do mundo –, a ignorância, a incompetência e a profunda e explicita violência do homem. Em Portugal podia ser ditador de um pequeno café ou dirigente desportivo, para já. Mas no Brasil já poderia ser Presidente. O “para já” não me conforta».
Como já há muito se percebeu e o articulista refere, o homem parece que «não regula bem». embora os verdadeiros diabos continuem a ser Putin, Assad e Maduro, para não falar de Cuba e da Coreia do Norte, que perdeu 20% da população devido à agressão norte-americana nos anos cinquenta, que aí despejou mais bombas que em toda a Segunda Guerra Mundial. Mas, Pacheco Pereira, mais culto e arguto do que maioria dos nossos comentadores, acrescenta:
«Claro que ele (Trump) representa muitos interesses económicos, financeiros, americanos e internacionais, como nos lembram os marxistas…».
É verdade. Como nos lembram os marxistas, esta gente «com pancada», Trump, como Hitler, Mussolini, Pinochet, Berlusconi ou Bolsonaro, representa interesses. E não são os da maioria que trabalha (que, às vezes é enganada e neles vota). São sempre os do grande capital. Puro e duro. Os donos dos principais meios de produção e mestres da grande especulação financeira. É por isso que são as organizações operárias (sindicatos e partidos) as primeiras a serem perseguidas pela extrema-direita fascista ou fascizante, e as que mais persistentemente e com maiores sacrifícios lhe resistem. Assim aconteceu na Alemanha e em Itália durante o advento do nazi-fascismo nos anos trinta (com a morte de milhares de resistentes comunistas nas prisões e campos de concentração) e durante a Segunda Guerra Mundial, na URSS, na Jugoslávia, na Grécia, em França, e como aconteceu na Espanha e cá, com Salazar e Caetano.
Não há fascismo, por haver gente que «não regula bem». Essa é uma explicação simplista e desculpabilizadora dos crimes da classe dominante. Há fascismo como uma forma do capitalismo resolver as suas crises reprimindo pela força todos os que se opõem aos seus objectivos de rapina.
Não há nazismo alemão sem o grande capital do Reich. Não há fascismo em Itália sem o grande capital italiano. Não há colaboracionismo de Vichy sem o apoio da grande burguesia francesa. Não há Pinochet, sem o grande capital chileno e norte-americano. Não há ditaduras militares na Argentina, Brasil e em outros países da América Latina, sem o grande capital nacional e internacional que as impuseram. Não há Bolsonaro, sem a ajuda dos grandes interesses latifundiários e da indústria.
«É esse poder antigo e exclusivo, só parcialmente distendido durante o período dos governos da esquerda descafeínada do PT de Lula e de Dilma Rousseff (que desenvolveram uma política assistencial sem beliscaram os seus interesses e tolerando-lhe os piores vícios), que agora volta mais violento e ameaçador»
E eles lá estão por trás e à frente das palavras e dos discursos. No programa do novo governo «técnico» e sem o «viés da ideologia» do Brasil. No novo ministro das Finanças, Paulo Guedes, expoente do ultraliberalismo económico da escola de Chicago (esteve no Chile com os Chicago Boys durante a ditadura de Pinochet), campeão das privatizações, que logo anunciou mais «austeridade» – diminuiu já o valor do aumento previsto para o salário mínimo que é baixíssimo, embora a maioria dos nossos noticiários dêem a ideia que foi ele que o aumentou, o que não deixa de ser significativo –, sempre com o velho jargão do «menos estado, melhor estado» que também por cá se usa.
Tudo o que é público e dá lucro está na calha para ser privatizado. A delapidação da imensa riqueza do Brasil. O ataque à floresta amazónica. O assalto, também já decretado, aos territórios índios. Mesmo a gigante petrolífera Petrobras, que tanta tinta fez correr sobre a corrupção, mas que se tem mantido no sector público.
Para provar que o que foi afirmado não são meras palavras de campanha, como alguns comentadores têm dito para amaciar a violência da mensagem, o novo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou a decisão, do primeiro Conselho de Ministros, de demitir funcionários públicos que defendam ideias «comunistas». E três centenas, com contratos no executivo, vão já ser demitidos (DN, 3 de Janeiro de 2019).
Como em outros países da América Latina, ainda hoje considerados pelos USA como um seu jardim das traseiras, toda esta onda fascizante e neoliberal, agora pintada com as hipócritas cores do combate à corrupção pelos que a implantaram como tentacular sistema de estado, é alimentada pelo capital monopolista e latifundiário numa aliança representada pelos três «B» – «Boi» (fazendeiros), «Bala» (violência) e «Bíblia» (igrejas) –, com «o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!», o novo slogan agora sempre repetido.
É esse poder antigo e exclusivo, só parcialmente distendido durante o período dos governos da esquerda descafeínada do PT de Lula e de Dilma Rousseff (que desenvolveram uma política assistencial sem beliscaram os seus interesses e tolerando-lhe os piores vícios), que agora volta mais violento e ameaçador, semeando o medo sob a palavra de ordem de «Reconstruir o Brasil». «Sem Socialismo». «Sem ideologia». Só com Deus e o grande capital.
Como diria Chico Buarque: «A coisa aqui está preta…»
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