Nas últimas semanas, Washington intensificou as ameaças e hostilidades contra a Venezuela, e o presidente dos EUA, Donald Trump, confirmou abertamente que autorizou a CIA a realizar acções secretas contra o país. Essas acções são preocupantes e representam uma séria intensificação da campanha bélica contra o país caribenho, além de confirmarem o que muitos vêm dizendo há anos: os EUA têm grande interesse no que acontece na Venezuela e não hesitam em usar todas as ferramentas à sua disposição para impor seus interesses.
«Alguém realmente acredita que a CIA não esteja a operar na Venezuela, há 60 anos?», questionou o presidente venezuelano Nicolás Maduro, após Trump anunciar a autorização para actividades da CIA no seu país.
A resposta, quando analisada à luz do registo histórico de dois séculos, confirma um padrão de interferência contínua com o objectivo de afirmar a dominância dos EUA sobre todo o hemisfério. As crescentes ameaças de guerra emanadas do governo Trump contra Caracas não representam uma política nova, mas sim o culminar de um projecto de longa data de mudança de regime, que guarda profundas e perturbadoras semelhanças com a campanha pela guerra contra o Iraque durante o governo Bush.
Washington sempre viu a América Latina e o Caribe na ótica da Doutrina Monroe, reservando unilateralmente a região para a hegemonia geopolítica dos EUA. Os últimos 200 anos confirmam um padrão de intervenções repetidas e agressivas. Os exemplos recentes mais notórios, em que o envolvimento dos EUA abrangeu apoio político, operações de inteligência e intervenção militar directa, incluem o golpe de Estado de 1954 contra Jacobo Arbenz na Guatemala, a invasão da República Dominicana em 1965 que impediu o retorno de um governo progressista liderado por Juan Bosch, o golpe de Estado de 1973 que desmantelou o projecto socialista de Salvador Allende no Chile, a conspiração de 1983 para derrubar o governo de Maurice Bishop e a invasão de Granada, e as repetidas tentativas de golpe contra o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide, em 1991 e 2004. O golpe de Estado de 2009 nas Honduras contra o governo de Mel Zelaya deu continuidade a essa tradição.
«As crescentes ameaças de guerra emanadas do governo Trump contra Caracas não representam uma política nova, mas sim o culminar de um projecto de longa data de mudança de regime, que guarda profundas e perturbadoras semelhanças com a campanha pela guerra contra o Iraque durante o governo Bush.»
No entanto, a Venezuela tornou-se o alvo definitivo, enfrentando mais tentativas de mudança de regime apoiadas pelos EUA do que qualquer outro país latino-americano no último quarto de século. A obsessão em retomar o controlo do país começou logo após a eleição de Hugo Chávez em 1998, uma vitória que sinalizou uma mudança radical em relação às políticas neoliberais patrocinadas pelos EUA e o início de um período de grandes transformações, da redução da pobreza à integração regional, liderado por uma onda de governos de esquerda na América Latina. Washington apoiou activamente inúmeros esforços para depor Chávez, designadamente um golpe militar em 2002, que foi derrotado por uma revolta popular, e o devastador bloqueio do petróleo de 2002-2003, que visava interromper a fonte de receita mais importante do país.
Durante os governos de George W. Bush e Barack Obama, milhões de dólares foram canalizados para impulsionar grupos de extrema-direita na Venezuela, muitas vezes sem base social, a confrontarem directamente o governo venezuelano por meio de tácticas que variavam de planos de assassinato a acções terroristas. Esse fluxo de financiamento apoiou grupos e líderes, que, embora se apresentassem como oposição democrática ou organizações não governamentais, defendiam consistentemente a remoção violenta do governo democraticamente eleito do país. Uma notável beneficiária de fundos estadunidenses, María Corina Machado, líder de extrema-direita que recentemente recebeu o Prémio Nobel da Paz, construiu a sua carreira política em décadas de defesa da intervenção externa dos EUA e de Israel.
O padrão de apoio à mudança de regime continuou após a morte suspeita de Chávez, em 2013, o que levou muitos a questionarem uma conspiração da CIA. Após a eleição de Nicolás Maduro, o governo de Obama apoiou uma onda de protestos violentos em 2014, chamada de guarimbas, marcada por linchamentos racistas de apoiantes negros do governo por multidões de direita. Maduro enfrentou outro período prolongado de protestos violentos apoiados pelos EUA em 2017. Orlando Figuera, um afro-venezuelano de 21 anos, foi atacado e queimado vivo em Caracas por activistas da oposição em Maio de 2017.
O cerco económico intensificou-se
Em 2015, o presidente Obama intensificou a pressão retórica e económica ao declarar a Venezuela uma «ameaça extraordinária e incomum à segurança nacional dos EUA». Essa acusação foi amplamente reconhecida como infundada e inicialmente rejeitada, até mesmo por alguns líderes da oposição venezuelana. Contudo, a declaração forneceu o pretexto legal para a imposição de sanções, que desencadearam o colapso da indústria petrolífera e devastaram a economia venezuelana.
No primeiro ano do primeiro mandato de Trump, os EUA impuseram sanções ainda mais severas, visando directamente o sector petrolífero da Venezuela. Antes das sanções de 2017, a queda média mensal na produção de petróleo era de aproximadamente 1%. Após a ordem executiva de Agosto de 2017, que bloqueou o acesso da Venezuela aos mercados financeiros dos EUA, a taxa de declínio desabou, caindo mais de três vezes em relação à taxa anterior. As sanções de Agosto de 2019 criaram o quadro «legal» para confiscar milhares de milhões de dólares em activos estrangeiros da Venezuela, visando especificamente a estatal petrolífera PDVSA e proibindo as exportações para o mercado dos EUA. Anteriormente, este mercado absorvia mais de um terço do petróleo venezuelano e as sanções causaram um choque catastrófico.
O Gabinete de Washington para Assuntos Latino-Americanos (WOLA, na sigla em inglês) documentou que essas sanções causaram ao Estado venezuelanouma perda entre 17 e 31 mil milhões de dólares em receitas potenciais do petróleo. Essa perda de moeda forte reduziu a capacidade do Estado de importar alimentos, medicamentos e outros bens essenciais, resultando num aumento das taxas de mortalidade e numa verdadeira crise humanitária. A intensificação das sanções dos EUA, particularmente a partir de 2017, contribuiu para que a Venezuela sofresse a maior contracção económica da história registada na região, com o seu produto interno bruto (PIB) a encolher cerca de 74,3% entre 2014 e 2021.
O manual do Iraque, actualizado: sanções como guerra económica
O primeiro mandato de Trump aplicou uma política de «pressão máxima» para derrubar Maduro, formalizando o objectivo de mudança de regime com uma agressividade sem precedentes. Além da aplicação de sanções punutivas ao petróleo, isso levou ao reconhecimento ridículo da autoproclamação de Juan Guaidó como presidente, em Janeiro de 2019. Isto resultou no envio de navios de guerra dos EUA e na classificação do governo de Maduro como uma entidade «narcoterrorista», fazendo lembrar os pretextos para a invasão do Iraque, em 2003. E culminou no financiamento da Operação Gideon: uma invasão marítima desastrosa, realizada por mercenários apoiados pelos EUA em Maio de 2020, que agora é lembrada como a «baía dos leitões».
Os paralelos retóricos entre as duas campanhas são impressionantes. Em 2003, o governo Bush justificou a guerra com base em alegações fabricadas sobre a posse de «armas de destruição em massa» (ADM) por Saddam Hussein e supostos vínculos com o terrorismo. De forma semelhante, o governo Trump procurou justificar acções militares e secretas na Venezuela invocando a narrativa do «narcoterrorismo». Ambas foram tentativas de transformar um conflito político numa ameaça preventiva à segurança, exigindo uma resposta militar.
«Durante os governos de George W. Bush e Barack Obama, milhões de dólares foram canalizados para impulsionar grupos de extrema-direita na Venezuela, muitas vezes sem base social, a confrontarem directamente o governo venezuelano por meio de tácticas que variavam de planos de assassinato a acções terroristas.»
No entanto, a semelhança mais profunda reside na estratégia de estrangulamento económico utilizada contra ambas as nações. De 1990 até à invasão de 2003, sanções multilaterais abrangentes foram impostas ao Iraque, devastando a sua população civil sem, contudo, depor Saddam Hussein. Essas medidas impuseram severas restrições às exportações de petróleo iraquianas e controlaram rigorosamente a importação de mercadorias. O efeito foi uma catástrofe humanitária, com estudos que estimam que as sanções contribuíram para a morte de centenas de milhares de crianças menores de cinco anos devido à desnutrição e à falta de água potável e medicamentos. O ex-secretário-adjunto das Nações Unidas, Denis Halliday, que renunciou em protesto, classificou as sanções como «genocida». A brutalidade da política foi infamemente resumida pela então embaixadora dos EUA na ONU, Madeleine Albright, que, ao ser questionada sobre se a morte de meio milhão de crianças iraquianas «valia a pena», respondeu: «Achamos que o preço vale a pena».
As sanções contra a Venezuela, particularmente as impostas em 2019 contra a indústria petrolífera, replicaram essa estratégia de punição colectiva com uma severidade inicial ainda maior. Ao contrário do Iraque, que acabou recebendo algum alívio por via do programa Petróleo por Alimentos, administrado pela ONU (apesar dos esforços dos EUA e do Reino Unido para bloquear o fornecimento de ajuda humanitária vital sob a justificação da «dupla utilização»), o governo venezuelano foi imediatamente privado da sua principal fonte de divisas. O Centro de Investigação Económica e Política (CEPR) argumentou que a natureza abrangente das sanções de 2019 criou um embargo comercial quase total, possivelmente «mais draconiano» do que as sanções impostas ao Iraque antes da guerra, observando a ausência de qualquer mecanismo humanitário comparável para mitigar a perda de milhares de milhões em receitas do petróleo.
Hegemonia e o desafio ideológico
O interesse dos EUA na Venezuela vai além do simples controlo das maiores reservas de petróleo do mundo. O objectivo principal é ideológico e político: derrubar um governo independente na Venezuela que tem sido tanto uma fonte de apoio para outros governos progressistas quanto um obstáculo aos planos dos EUA de impor governos de extrema-direita na região. O governo venezuelano representa um núcleo de resistência, e o seu derrubamento bem-sucedido reafirmaria o domínio da política externa dos EUA na região, enviando uma mensagem clara a outras nações que consideram trilhar um caminho político e económico independente. A ameaça de intervenção, portanto, não se resume a questões económicas, mas também à defesa da integridade ideológica da Doutrina Monroe no século XXI.
«As sanções contra a Venezuela, particularmente as impostas em 2019 contra a indústria petrolífera, replicaram essa estratégia de punição colectiva com uma severidade inicial ainda maior.»
A mais recente escalada de hostilidades contra a Venezuela sob o governo Trump representa uma fase aguda e perigosa, marcada por recentes ataques extrajudiciais no Caribe e ameaças explícitas de ataques terrestres. Até agora, pelo menos 32 pessoas foram mortas em pelo menos sete ataques desse tipo, desde o início de setembro. Algumas das vítimas foram confirmadas como cidadãos da Colômbia e de Trinidad e Tobago. O governo acusou as vítimas de serem «narcoterroristas», sem apresentar provas concretas, com as suas famílias a afirmar que os mortos eram pescadores.
A campanha contra a Venezuela é, fundamentalmente, a continuação de um esforço de dois séculos para manter o controlo imperial da região. A louca e implacável campanha de Trump para derrubar Nicolás Maduro, como parte de uma compulsão histórica de afirmar o domínio, não só através de sanções e apoio à agitação interna, mas agora também através de execuções extrajudiciais no mar e ameaças de operações terrestres, colocou a região na iminência de um conflito massivo. Tal guerra não seria apenas um desastre que exigiria um vasto contingente de tropas, mas quase certamente desestabilizaria toda a América Latina e espalhar-se-ia muito para lá das fronteiras da Venezuela. No entanto, a maioria do povo americano demonstrou oposição ao uso da força militar para invadir a Venezuela, e uma resolução bipartidária foi apresentada pelo senador da Califórnia, Adam Schiff, e pelo senador do Kentucky, Rand Paul, para impedir Trump de usar a força contra a Venezuela. Contudo, o travão definitivo a essa perigosa aventura pode estar nas mãos do público americano, que deve exigir transparência e o fim imediato da marcha rumo a mais uma guerra desastrosa.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui

