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Um crime que seja nosso

Há características tão específicas de determinadas populações, que se torna perigoso mimetizar as suas inquietações e necessidades, na medida em que nos alienamos das nossas próprias inquietações e necessidades.

Créditos / n-tv.de

Não sabemos o que nasceu primeiro, se o fascínio pelo modelo de entretenimento true crime (casos reais sobre crimes) ou o próprio modelo. Um dos chavões mais frequentes ouvidos nas últimas décadas em palestras e seminários destinados a aspirantes a empreendedores foi, e é, a «criação da necessidade». A ideia de que o público-alvo não sabe que tem uma necessidade até o empreendedor a mostrar é fundamental para compreender o modelo económico, social e cultural em que vivemos – a ideia de sociedade de consumo.

É difícil perceber se o fascínio pelo true crime é natural, tal como o fascínio por acidentes na estrada, que faz oito em cada dez pessoas criar o caos em plena autoestrada. Mas sabemos que ele já lá estava noutros produtos, como os policiais, na sua aproximação ao real ou ao «caso verídico». Tudo começou numa tarde de verão, no Missouri, quando dois amigos, sentados a ver uma perseguição policial em Jefferson City pensaram «quem é que precisa de ficção quando no nosso país a realidade é ainda mais entusiasmante?!» E assim nasceu Cops, a série mais vista de toda a televisão na terra da libertinagem de mercado ao longo das últimas três décadas. Ao início, imagino que tenha sido um bocado como o Big Brother: as pessoas começaram a ver por curiosidade mórbida, até se tornar num elemento introdutório de toda a análise social. Até aparecer, ninguém sabia que estava viciado.

Hoje, quando ligamos a televisão ou abrimos plataformas como a Netflix ou a HBO, são dezenas, senão centenas, de séries e filmes documentais cuja temática é o crime real e que começa a assumir uma posição destacada no segmento de policiais, séries de advogados e thrillers sobre a maldade encarnada num criminoso ou homem poderoso. Nos últimos anos, a explosão de produtos de entretenimento sobre true crime conseguiu tornar quase invisíveis outras obras e forçar criadores e produtores a escolher a sua linha de trabalho segundo o critério comercial.

São documentários sobre este e aquele assassino, sobre indivíduos inocentes presos há um ror de anos e a estrutura sufocante ou libertadora do sistema judicial (umas vezes a procuradoria é má, outras vezes é boa). Nada de novo. Mas com este fenómeno, que com as plataformas de streaming e podcasts tem crescido significativamente, fica mais exposto um modelo de negócio que estrangula a criação e produção artística e gera uma espécie de monocultura que nem sempre é representativa das nossas próprias vivências.

Com o true crime torna-se ainda mais claro que a agenda política objetiva por vezes já nem existe e é só uma proliferação de produtos num mercado que, a certa altura, fica saturado e precisa de se expandir. E expande-se para onde já existe uma certa permeabilidade e uma tendência para o consumo de produtos do mesmo segmento, onde o sucesso dos CSI ou de Casos Arquivados sugere que há clientes suficientes. A procura é tanta que chega a um ponto em que já nos oferecem canais anteriormente pagos ou meses de subscrição grátis de plataformas de streaming. Parecem os anos 90 após a entrada na CEE e que é tudo feito a pensar em nós.

Uma das formas para detetar a expansão económica e política de uma potência mundial é a sua capacidade de entrar pelas nossas casas sem nos apercebermos. De repente, habituados ao consumo de um determinado tipo de produto, já não conseguimos perceber muito bem se os produtos de entretenimento resultam de uma autoria voluntária ou de um modelo de negócio forçado, se há uma agenda política por detrás daquele produto ou até se aquele produto é representativo de uma determinada realidade ou não. É como se houvesse ali uma espécie de ingerência cultural com o simples motivo de resolver um problema de acumulação e necessidade de escoar.

«Mas com este fenómeno, que com as plataformas de streaming e podcasts tem crescido significativamente, fica mais exposto um modelo de negócio que estrangula a criação e produção artística e gera uma espécie de monocultura que nem sempre é representativa das nossas próprias vivências.»

Para nós, habituados ao longo dos anos a comprar estes pacotes de entretenimento, já tudo parece normal, até pela familiaridade das coisas. Já compreendemos aquela realidade, de tanto que ela nos entra pela televisão adentro, e gera-se uma certa confusão na conceção de ideias e identificação de circunstâncias que nada têm de semelhante.

Assumimos, por exemplo, que uma série ou um filme sobre justiça dá-nos conhecimento sobre a Justiça e que o sistema judicial, bem ou mal, funciona assim, que a polícia tem aquele comportamento, que os tribunais funcionam daquela forma e que quando as pessoas são presas em Portugal também lhes leem os Miranda Rights (aquela lengalenga que a polícia diz sempre quando prende alguém nos filmes). Sem acesso a um modelo de ensino cujo programa inclua, por exemplo, o conhecimento da Constituição, ficamos reféns de uma ideia trazida de uma outra realidade e a possibilidade de formularmos hipóteses de realidade a partir dali é muito elevada. Os produtos de true crime levam esta problemática para um patamar ainda mais avançado de confusão, porquanto a sua natureza de «caso real» constitui uma camada adicional de ilusão de realidade. E ficamos reféns porque não há alternativas de entretenimento.

Será com alguma dificuldade que consideraremos parte integrante da nossa realidade a história de um assassino no Missouri que se debate com as teias do Case Law (o sistema judicial estado-unidense) depois de ter sido acusado de massacrar uma escola inteira e, com isso, gerar uma discussão sobre a política de uso e posse de armas e a influência de seitas religiosas na mente dos missourianos. Mas por qualquer razão inexplicável, a massificação deste produto chegou até nós, como uma necessidade de entretenimento que nem sabíamos que lá estava. Bom, explicação há: chama-se monopólio cultural.

Em época de «cancelamentos» – de resto, uma importação que cada vez mais vai tendo um certo impacto na nossa relação mediática –, talvez seja importante referir que nada disto quer dizer que a influência de outras culturas nas nossas vivências não seja aceitável e que desatemos a rejeitar toda a cultura anglo-saxónica. A cultura anglo-saxónica, como todas as outras, enriquece a nossa mundividência e influencia, inevitavelmente, as nossas vivências. E certamente que haverá inúmeros pontos em comum entre a realidade de outros países com a nossa, nas suas várias dimensões. Mas há características tão específicas de determinadas populações, que se torna perigoso mimetizar as suas inquietações e necessidades, na medida em que nos alienamos das nossas próprias inquietações e necessidades.

Há ainda uma segunda problemática à volta deste assunto e que se prende com a forma como a produção nacional e os empresários do audiovisual vão encarar estes movimentos. As produtoras portuguesas começam, hoje, a tentar apanhar o comboio do sucesso ficcional ou documental (haveremos de lá chegar, não deve faltar muito), prevendo até uma morte lenta da telenovela. As tentativas de séries policiais, à exceção de Polícias (Francisco Moita Flores e Luís Filipe Costa, 1996), tiveram um sucesso residual. O que vemos hoje no que respeita a séries de países que não os EUA na Netflix, por exemplo, são produções ou encomendas da própria Netflix nesses países, que se tentam adaptar às narrativas e técnicas daquela plataforma. Tivemos, recentemente, uma série que tentou trazer para a nossa história contemporânea dinâmicas de espionagem da Guerra Fria, criando uma narrativa com pretensões de factualidade histórica. Dir-se-á que é apenas ficção. Mas nada é apenas ficção quando lidamos com hipóteses forjadas de realidade. O true crime só vem baralhar ainda mais esta confusão entre realidade e entretenimento.

Em Portugal, não serão muitas as produtoras que terão condições para dar resposta a esta imposição comercial. As que têm essas condições farão um esforço significativo para agradar ao acionista e nada de bom alguma vez veio daí, seja no resultado do produto, seja até nas relações laborais provocadas por essa urgência. E enquanto se deterioram os mecanismos de autonomia criativa e autossuficiência, os grandes grupos económicos do audiovisual, mal sintam que estamos a exagerar na apropriação do seu mercado, engolem-nos.

«Em Portugal, não serão muitas as produtoras que terão condições para dar resposta a esta imposição comercial. As que têm essas condições farão um esforço significativo para agradar ao acionista e nada de bom alguma vez veio daí (...)»

A força desta realidade é tal que a crença na inexistência de alternativa consome todas as possibilidades de imaginar um modelo de produção cultura diferente, no qual possamos reproduzir hipóteses de realidade que nos são comuns, possíveis e visíveis; nas quais nos possamos rever e reconhecer e das quais possamos retirar elementos importantes para uma interpretação diversificada das dinâmicas sociais.

Sem uma política cultural que estimule a criação artística e a produção a partir da nossa própria realidade cultural, o monopólio do entretenimento terá tendência para se agravar e as escolhas que julgamos ter quando passamos pelas centenas de opções que deslizam nos nossos ecrãs não serão escolhas, serão imposições. Por muito bons que sejam esses produtos de entretimento ou por muito que gostemos de ver séries e filmes de produção anglo-saxónicos, é importante, ao mesmo tempo, estarmos despertos para a necessidade de um verdadeiro investimento na Cultura, que permita a criação artística e a produção audiovisual estarem livres de um compromisso com uma realidade que não é a nossa.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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