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«Harlan County U.S.A.»: Os Mineiros Estarão Sempre em Luta (II)

As mulheres foram fundamentais na luta dos mineiros de Harlan. Ser companheira de um mineiro é quase um trabalho em si. Elas acompanham o cansaço dos maridos e filhos, por vezes a sua doença e morte.

Fotograma do documentário «Harlan County, U.S.A.» (1976), que retrata a greve dos mineiros de Brookside, Pensilvânia, EUA, entre 1973 e 1974
Fotograma do documentário «Harlan County, U.S.A.» (1976), que retrata a greve dos mineiros de Brookside, Pensilvânia, EUA, entre 1973 e 1974 Créditos / Janus Films

A pouco e pouco, a Greve de Brookside começou a receber apoios de trabalhadores sindicalizados de outras regiões. Isso justificou a presença da direcção nacional do sindicato numa grande marcha de protesto pelas ruas de Harlan. A situação de conflito agravou-se quando o patronato percebeu que não conseguia acabar com uma greve tão apoiada. Lawrence Jones, um dos jovens mineiros, activista sindical, foi baleado na cabeça e acabou por morrer.

«A fotografia granulosa em 16mm, não polida, está em sintonia com o tom imediato e a dureza da filmagem. As sequências escolhidas para integrarem a montagem final, que demorou nove meses, foram cuidadosamente seleccionadas para transmitir o impacto dos eventos»

Harlan County U.S.A. mostra que a família de Jones tinha admiração por ele, pelo que ele fez, em particular a mãe e a esposa. Tinha morrido a defender o seu direito, e o dos colegas, a uma vida digna. O homem que o matou, Bill Bruner, foi ilibado pelo juiz Hogg. Como diz um dos operários, se tivesse sido ao contrário — um mineiro a matar um aliado do patronato — seria condenado a pelo menos 25 anos de prisão. A justiça não é cega. Esta morte acelerou as negociações entre o sindicato e os patrões e o contrato colectivo de trabalho é aceite pelas partes. Um dos mineiros alertava que era preciso continuar a lutar, não baixar os braços depois desta vitória em 1974.

Três meses depois da assinatura do contrato local, o contrato nacional de minas expirou. Pela primeira vez, os associados do sindicato tinham o direito de o ratificar. A Associação de Operadores de Carvão Betuminoso (Bituminous Coal Operators Association ou BCOA) e o UMWA não chegaram a acordo e em 12 de Novembro de 1974 os 120 mil mineiros do sindicato entraram em greve por todo o país. A luta de massas foi tão enérgica que criou a expectativa de que resultaria em importantes conquistas para os trabalhadores. Depois de três semanas de paralisação, as duas organizações chegaram a um possível entendimento.

O acordo limitava o direito à greve das organizações locais do sindicato e teve a intervenção do Secretário do Tesouro da administração Nixon, William Simon. Uma greve só podia ser declarada pela direcção nacional. (A greve nacional seguinte, que decorreu entre 1977 e 1978, foi em grande parte sobre a alteração deste ponto, depois da erupção de muitas greves sem enquadramento sindical que não cumpriam a lei em vigor.) Além desta cedência inaceitável, alguns trabalhadores sentiram-se traídos porque consideravam que se podia ter ido mais longe. Para eles bastava olhar para o lucros das gigantes da indústria mineira: a Consolidated Coal, por exemplo, tinha tido lucros de 181%, é lembrado por eles.

Seja como for, o acordo terá sido um avanço para muitos trabalhadores, mas não correspondeu às expectativas dos mais antigos. Como diz um dos mais experientes e avisados: «Era uma luta antes e ainda é uma luta. Era uma luta antes de termos um sindicato e ainda lutamos». «O mineiro de carvão estará sempre em luta», conclui ele. O filme ainda recorda que, entre Julho e Agosto de 1975, 100 mil mineiros fizeram greve para protestar contra o assédio generalizado do patronato quando era confrontado com procedimentos de reclamação formal por parte dos trabalhadores.

Barbara Kopple durante as filmagens de «Harlan County, U.S.A.» (1976), documentário sobre a greve dos mineiros de Brookside, Pensilvânia, EUA, entre 1973 e 1974 Créditos

Quando Harlan County U.S.A. foi lançado, Kopple disse que era uma política, primeiro, e só depois uma cineasta. Isso é visível nas estratégias de representação que escolhe, por exemplo, puxando as mulheres para o primeiro plano para que o filme fizesse justiça ao seu papel. A verdade é que as mulheres foram fundamentais na luta dos mineiros de Harlan. Ser companheira de um mineiro é quase um trabalho em si. Estas mulheres vêem a sua vida afectada. Acompanham o cansaço dos maridos e filhos, por vezes a sua doença e morte. Por conseguinte, o combate por segurança no trabalho, aumentos salariais, e serviços médicos não podia deixar de ser familiar. As mulheres organizam-se e juntam-se aos piquetes de greve. São presas com os homens. Denunciam no tribunal, perante toda a comunidade, que as leis do país não estão feitas para quem defende os trabalhadores: servem os mais poderosos, como Carl Horn, presidente da Duke Power Company.

Num documentário sobre o documentário, The Making of Harlan County U.S.A. (2006), a realizadora Anne Lewis sublinha este aspecto e descreve Lois Scott como uma activista pela emancipação das mulheres. Lois destacou-se pela determinação inquebrável e pela capacidade de galvanizar as pessoas no apoio à greve. O protagonismo dado às mulheres no filme não pode ser desligado do facto de Kopple também ser mulher. Na rodagem, facilmente se criaram afinidades e até cumplicidades entre ela e os grupos femininos, não só na contenda em Harlan, mas também no rescaldo do desastre em Farmington.


Esta camaradagem entre quem filmava e quem era filmado foi mais alargada. No já referido making of, Jerry Johnson, um dos mineiros em greve, confessa: «As câmaras provavelmente salvaram um monte de gente dos disparos. Não acho que teríamos vencido sem a equipa de filmagem. Se a equipa de filmagem não tivesse simpatizado com a nossa causa, teríamos perdido. Graças a Deus por eles; graças a Deus eles estavam do nosso lado». A cineasta e os técnicos foram percebendo que a sua presença funcionava como um elemento dissuasor de alguns actos violentos.

A tensão está inscrita de forma poderosa e expressiva em Harlan County U.S.A. Numa cena climática, quando a violência já anda à solta, a câmara é subitamente abalroada. A equipa foi atacada com uma força brutal e teve de ser ajudada pelo grupo de mineiros que estava por perto. Estes episódios ficaram materialmente registados na imagem e no som do filme. A dificuldade em captar o que estava a acontecer era recorrente. A fotografia granulosa em 16mm, não polida, está em sintonia com o tom imediato e a dureza da filmagem. As sequências escolhidas para integrarem a montagem final, que demorou nove meses, foram cuidadosamente seleccionadas para transmitir o impacto dos eventos.

«Numa cena climática, quando a violência já anda à solta, a câmara é subitamente abalroada. A equipa foi atacada com uma força brutal e teve de ser ajudada pelo grupo de mineiros que estava por perto. Estes episódios ficaram materialmente registados na imagem e no som do filme»

Em vez de utilizar um dispositivo de narração para explicar o que vai acontecendo, o filme deixa as acções das pessoas falarem por si próprias. Aparecem apenas algumas linhas de texto em dois momentos para contextualizarem os acontecimentos. A presença da câmara é, em muitas ocasiões, denunciada pelos protagonistas, nomeadamente pela polícia, que age repetidamente ao serviço da empresa, e pelos homens armados que defendem o patronato. Olham directamente para a objectiva como que a reconhecer que estão a ser observados e a pesar os seus gestos.

Desde os primeiros minutos que a música tem um papel essencial. O primeiro velho mineiro que fala sobre a sua vida, começa por cantar sobre os joelhos desgraçados e outras maleitas. A vida do operariado mineiro era muito dura. Chegavam a fazer 18 horas num dia, a roupa molhada e rija colada ao corpo. Eram trabalhados como animais de carga, mas as mulas que carregavam o carvão eram mais bem tratadas do que eles. O documentário usa a música tradicional do povo de Harlan como elemento vivo da cultura mineira para transformar estas experiências em canções.

Ao longo do filme, ouvem-se canções que expressam as dificuldades e as lutas dos mineiros e das suas famílias. As letras assemelham-se a notas para memória futura e a palavras de ordem. São estas as cantigas, pela ordem em que surgem em Harlan County U.S.A.: «Dark as a Dungeon», «Forty-Two Years», «Come All You Coal Miners», «Mannington», «Black Lung», «Cold Blooded Murder», «Miners Life», «Which Side Are You On», «This Little Light of Mine», «Coal Tattoo», «Trouble Between Yearlings», «Lone Prairie», e «They’ll Never Keep Us Down», interpretadas por artistas lendários da música country bluegrass como Hazel Dickens, Merle Travis, Sarah Gunning, e Florence Reece, alguns deles com raízes familiares na labuta mineira.

«As câmaras provavelmente salvaram um monte de gente dos disparos. Não acho que teríamos vencido sem a equipa de filmagem. Se a equipa de filmagem não tivesse simpatizado com a nossa causa, teríamos perdido. Graças a Deus por eles; graças a Deus eles estavam do nosso lado, Jerry Johnson, mineiro»

Como se percebe apenas pela leitura dos títulos, são composições que conservam feitos, reflectem acontecimentos, encorajam a luta, contam histórias de vida. A música é utilizada em simultâneo pelo seu valor cultural, que o filme integra, e pelo seu carácter narrativo, que o filme potencia. Leia-se a letra de «They’ll Never Keep Us Down» e ouça-se a canção que fecha esta marcante obra documental: «Unidos resistimos, divididos caímos / Para cada centavo que eles nos dão, uma batalha tem de ser travada / Assim os trabalhadores usam o seu poder, a chave para a liberdade» («United we stand, divided we fall / For every dime they give us a battle must be fought / So working people use your power the key to liberty»).

Harlan County U.S.A. foi lançado numa época em que poucos documentários chegavam a muitas salas ou tinham uma distribuição alargada. O filme transcendeu o circuito limitado no qual o cinema documental tinha sido encerrado. A sua importância histórica é indissociável do modo como deu visibilidade à arte do documentário cinematográfico nos EUA e noutros países, incluindo em Portugal, onde foi mostrado no Festival da Figueira da Foz em 1977.

Estreou no Festival de Cinema de Nova Iorque a 15 de Outubro de 1976. Ganhou o Óscar de Melhor Documentário nos 49.º Prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA. Foi escolhido para preservação no arquivo fílmico da Academia, em conjunto com a associação Mulheres de Nova Iorque no Cinema e Televisão (New York Women in Film & Television), em 2004. Em 1990, passou a integrar o Registo Nacional de Filmes dos Estados Unidos na Biblioteca do Congresso, em reconhecimento do seu significado cultural, histórico, e estético.


Sérgio Dias Branco escreve para o AbrilAbril na terceira semana de cada mês. Esta é a segunda e conclusiva parte de um artigo cuja primeira parte foi publicada no passado mês de Janeiro.

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