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«Harlan County U.S.A.»: Os Mineiros Estarão Sempre em Luta (I)

O filme da realizadora Barbara Kopple mostra que a luta de classes não dá tréguas aos trabalhadores nos Estados Unidos. O olhar da obra é inabalável e comprometido, sem rodeios nem subterfúgios.

Fotograma do documentário «Harlan County, U.S.A.» (1976), realizado por Barbara Kopple (n. 1946). O filme retrata a greve dos mineiros de Brookside, Pensilvânia, EUA, entre 1973 e 1974
Créditos / Janus Films

O título diz quase tudo. Menciona o condado de Harlan, no sudeste do estado americano do Kentucky, mas também o país, os Estados Unidos da América. Ou seja, o retrato vivo que Harlan County U.S.A. (1976)1 apresenta é tão específico como geral. O filme documenta a chamada Greve de Brookside, que durou 13 meses, entre 1973 e 1974. Ao mesmo tempo, mostra que a luta de classes não dá tréguas aos trabalhadores nos Estados Unidos. O olhar da obra é inabalável e comprometido, sem rodeios nem subterfúgios.

«Antes de Harlan County U.S.A., a realizadora Barbara Kopple integrou o grupo de cineastas responsável por Winter Soldier (1972), um importante documento na história social do conflito militar entre os EUA e o Vietname»

A greve desenvolvida em Brookside, cidade mineira de Harlan, juntou 180 operários de carvão e as suas famílias. Lutavam por condições de trabalho mais seguras, por práticas laborais mais justas, e por ordenados mais dignos. A mina onde trabalhavam era propriedade da Eastover Coal Company, subsidiária da Duke Power Company na região sul do país. A empresa nacional tinha no início da década de 1970 aumentos de lucros anuais de cerca de 170%. Em simultâneo, as famílias dos mineiros viviam na miséria. Muitas das habitações da empresa não tinham água canalizada nem condições mínimas de salubridade. Os trabalhadores tinham finalmente conquistado um aumento salarial de 4% quando o custo de vida tinha aumentado 7%.

Antes de Harlan County U.S.A., a realizadora Barbara Kopple integrou o grupo de cineastas responsável por Winter Soldier (1972), um importante documento na história social do conflito militar entre os EUA e o Vietname. Esta obra colectiva é um registo da conferência organizada pelos activistas Veteranos do Vietname Contra a Guerra (Vietnam Veterans Against the War), com militares envolvidos em atrocidades cometidas nessa guerra imperialista. É também um inquérito feito a esses homens para desvendar as razões dessas confissões.

Kopple cresceu numa quinta cooperativa perto de Scarsdale, Nova Iorque. Foi aí que aprendeu os valores da entreajuda e solidariedade na vida em comum. Quando estudava na Universidade do Nordeste, em Boston, contactou pela primeira vez com o movimento pela paz no contexto dos protestos contra a guerra no Vietname. Esse foi o seu primeiro passo no activismo político. Elegeu o Hospital Estatal de Medfield e os seus pacientes psiquiátricos como tema inaugural de filmagem, ainda em 8mm. Utilizou esse material para concluir um projecto-tese em forma de filme para a licenciatura em psicologia clínica. Na cidade de Nova Iorque, trabalhou com vários documentaristas para adquirir conhecimento e experiência, incluindo com os irmãos Albert e David Maysles, autores de Salesman (1969) e Gimme Shelter (1970).

A ideia inicial de Kopple era fazer um filme sobre a campanha de 1972 de Arnold Miller para suceder a Tony Boyle como presidente do sindicato Trabalhadores Mineiros da América Unidos (United Mine Workers of America ou UMWA). Esta disputa interna apoiou-se no movimento Mineiros pela Democracia e seguiu-se ao assassinato do dirigente sindical Joseph Yablonski, que mais tarde se provou ter sido planeado por Boyle e levado a cabo por um conjunto de cúmplices seus. Quando a greve de Brookside começou, a documentarista decidiu mudar o foco. Abriu-se uma oportunidade para acompanhar e filmar directamente o duro processo de luta que estava a decorrer. Com a mudança do assunto principal da obra, a campanha e o assassinato não foram abandonados, mas tornaram-se tópicos secundários.

Muitos homens morreram para produzir a energia a partir do carvão mineral que alimentou, e ainda alimenta, muita da actividade económica e social nos EUA. Talvez outros cidadãos estadounidenses desconheçam isso, mas os mineiros querem que se saiba e que não se esqueça. Eis um dos exemplos referidos no documentário. As minas da Consolidation Coal Company em Farmington e Mannington, na Virgínia Ocidental, foram inspeccionadas 16 vezes pelo Departamento de Minas dos EUA em 1968. Foram concedidas extensões das licenças depois de todas as inspecções. Em 20 de Novembro do mesmo ano, uma das minas explodiu. 99 mineiros estavam a trabalhar lá dentro. 21 conseguiram sair, mas os restantes 78 ficaram presos e morreram.

«Muitos homens morreram para produzir a energia a partir do carvão mineral que alimentou, e ainda alimenta, muita da actividade económica e social nos EUA. Talvez outros cidadãos estadounidenses desconheçam isso, mas os mineiros querem que se saiba e que não se esqueça»

Dantes, nos anos 1930, os mineiros tinham de enfrentar a opressão diária em jornadas de trabalho com o mínimo de 10 horas. Faziam greve para exigir aumentos e condições decentes de laboração. A violência intensificava-se e os trabalhadores respondiam como se fossem guerrilheiros. O sindicato e alguns padres católicos aconselhavam-os a pararem. Apesar dos apelos para que não se derramasse mais sangue, eles não se rendiam, mesmo com os mortos a acumularem-se do seu lado. A zona ficou conhecida como Harlan Sangrento (Bloody Harlan) por causa dessas batalhas. Na década de 1970, a situação era diferente, mas não completamente.

No verão de 1973, os trabalhadores da mina de Brookside e da fábrica de mineração da Eastover votaram pela adesão ao UMWA. A administração da empresa recusou-se a assinar o contrato proposto pela organização sindical e os mineiros entraram em greve. A empresa tentou trazer trabalhadores não sindicalizados para substituir os grevistas, rompendo a barreira do piquete de greve e criando momentos de grande tensão e intimidação que haviam de explodir em violência física. Durante uma parte significativa da greve, as esposas e os descendentes dos mineiros juntaram-se a eles no piquete e foram vítimas de agressão e alvo de prisão. O juiz local F. Byrd Hogg estava ele próprio ligado à indústria do carvão e decidiu de forma consistente contra os trabalhadores e a favor do patronato.


O UMWA foi essencial na organização da greve, mas a sua história foi acidentada, manchada pelo oportunismo, pelo crime, e por uma concepção dos sindicatos como meros intermediários legais entre o capital e o trabalho. Um dos mais famosos discursos de John L. Lewis, o respeitado nono presidente do sindicato, surge no filme num dos segmentos com imagens de arquivo: «Sem organização dos trabalhadores, é cada homem por si, sem entreajuda nem capacidade para reivindicar a resolução de problemas e melhores condições de trabalho. Não há forma de evitar que os patrões explorem e façam dinheiro com a miséria dos trabalhadores».

Depois da direcção presidida por Lewis, seguido por Thomas Kennedy durante três breves anos, o UMWA tornou-se um aliado dos patrões nas mãos de Boyle e dos seus seguidores. Os trabalhadores e as suas famílias sabiam isso e sentiam-no todos os dias. Em vez de ser uma organização ao serviço da classe operária que trabalhava nas minas, construída e dinamizada por ela, o sindicato tinha-se convertido num meio de conciliação com os interesses dos grandes industriais do sector mineiro. Quem desafiou esse estado de coisas foi morto. Aqui, como noutros casos nos EUA, era preciso limpar o sindicato e recuperar o seu prestígio junto dos mineiros. Arnold Miller foi o homem que se seguiu, conseguindo alguns avanços, democratizando as estruturas e as decisões, e mantendo a reputação de homem honesto. No entanto, foi acusado de não ser tão decidido e determinado como se exigia, enfrentando mais tarde forte contestação.

«A cor negra e o odor sulfuroso do carvão faziam parte da vida destas famílias. Os pais de algumas mulheres sempre lhes falaram no sindicato e na exploração dos patrões. Muitos morreram com antracose, uma lesão pulmonar caracterizada pela pigmentação provocada por partículas de carvão, muito comum em mineiros. É uma doença profissional que os patrões negavam que fosse tão comum e tão fatal»

Kopple e as três pessoas que trabalharam com ela — Kevin Keating e Hart Perry na câmara e Anne Lewis como assistente — passaram anos com as famílias dos mineiros. Registaram as provações por que passavam, especialmente as graves doenças de pulmão que os afectavam. Esta proximidade fez com que tivessem que enfrentar os mesmos ataques a que esta comunidade foi sujeita durante a greve. Numa entrevista de 2015 para a revista Variety, Kopple foi questionada sobre se sentiu que estava em perigo. Segundo ela, o líder dos fura-greves, Basil Collins, quis contratar alguém para disparar contra ela.

Os conflitos mais intensos que se vêem no filme são entre os fura-greves mandatados pelo patronato e os trabalhadores no piquete de greve, inicialmente envolvendo armas de fogo do lado mais forte e paus e facas do lado mais fraco. Rapidamente começaram a aparecer pistolas e espingardas no campo dos trabalhadores para sua protecção. De acordo com a documentarista na entrevista já citada, os proprietários da mina contratavam «prisioneiros locais para espancar pessoas, disparar contra as casas. As pessoas tinham que forrar as paredes com colchões».

«Sem organização dos trabalhadores, é cada homem por si, sem entreajuda nem capacidade para reivindicar a resolução de problemas e melhores condições de trabalho. Não há forma de evitar que os patrões explorem e façam dinheiro com a miséria dos trabalhadores»

John Lewis, sindicalista da  UMWA

Antes deste conflito, o nível de sindicalização era baixo, cerca de 10%. Os patrões queriam que tudo ficasse na mesma porque se os trabalhadores se organizassem, se percebessem a força que têm quando se unem, a relação de forças mudaria. Seja como for, não era fácil manter o piquete e continuar a luta. Foi preciso coragem e firmeza. Como Harlan County U.S.A.1 mostra, houve conflitos internos, dificuldades de organização, vontades em choque, entre as mulheres e entre os homens. No entanto, o caminho foi-se fazendo. A cor negra e o odor sulfuroso do carvão faziam parte da vida destas famílias. Os pais de algumas mulheres sempre lhes falaram no sindicato e na exploração dos patrões. Muitos morreram com antracose, uma lesão pulmonar caracterizada pela pigmentação provocada por partículas de carvão, muito comum em mineiros. É uma doença profissional que os patrões negavam que fosse tão comum e tão fatal, embora alguns dos maiores países produtores de carvão, como a Austrália, já estivessem muito avançados na protecção dos trabalhadores da inalação do pó nas minas e nas fábricas.


Sérgio Dias Branco escreve para o AbrilAbril na terceira semana de cada mês. Esta é a primeira parte de um artigo cuja segunda e conclusiva parte será publicada no próximo mês de Fevereiro.

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