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Ana Margarida de Carvalho: «a literatura é sempre uma forma de resistência»

Que Importa a Fúria do Mar, de Ana Margarida de Carvalho, Prémio APE, terá uma edição comemorativa nos 50 anos do 25 de Abril, apresentada no dia 24, por Valdemar Cruz, na Casa do Comum, às 18h. O AbrilAbril falou com a escritora.

Créditos / PCP

Uma edição comemorativa do cinquentenário do 25 de Abril de Que Importa a Fúria do Mar (Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB em 2013), da escritora e jornalista Ana Margarida de Carvalho, prefaciada por José Manuel de Vasconcelos e posfaciada por Afonso Cruz, será lançada na próximo dia 24 de Maio, no Centro Cultural Casa do Comum, na Rua da Rosa, em Lisboa, às 18h. A apresentação estará a cargo do jornalista e escritor Valdemar Cruz e excertos serão lidos por Edite Queirós.

O AbrilAbril falou com a Ana Margarida de Carvalho, candidata pela CDU às Eleições para o Parlamento Europeu de 2024, sobre a reedição de Que Importa a Fúria do Mar pouco mais de dez anos depois da sua publicação, desta vez na chancela da Relógio D'Água.

Na nova edição de Que Importa a Fúria do Mar comemora-se o cinquentenário do 25 de Abril mas também os 50 anos do fim do Campo de Concentração do Tarrafal…

Sim, justamente por isso será (re)lançado em Maio, data em que o campo do Tarrafal foi definitivamente encerrado [1 de Maio de 1974]. O campo teve duas fases: a primeira, desde 1936, para albergar os presos políticos, resistentes anti-fascistas, vindos da chamada metrópole, até 1949, muito depois do fim da segunda guerra mundial e de aniquilado, na Europa, o nazi-fascismo, que serviu de inspiração ao campo, a que o regime chamava colónia penal.

No entanto, foi reaberto na década de 60 para os presos das ex-colónias, que lutavam pela sua justa libertação e a independência dos seus países. Só foi encerrado definitivamente em Maio de 1974, há exactamente 50 anos. Mas este é apenas o pano de fundo histórico, político, social e geográfico do romance. Porque quase 89,9% da ficção são histórias de amor. Um amor impossível.

Até o Titanic deixou de ser a história do grande naufrágio do mais luxuoso e seguro navio do princípio do século passado para se tornar na história de amor proibido entre o Leonardo DiCaprio do porão e a Kate Winslet da primeira classe. 

Não é, então, um romance sobre o Campo de Concentração do Tarrafal?

Sim e não. Não faço romances históricos, é um género que não me interessa, enquanto escritora. Eventualmente sim, enquanto leitora. Gosto de fundear o plot [o enredo] numa âncora de factos reais, verídicos e que aconteceram mesmo e depois usar esse tabuleiro da realidade para fazer mover personagens ficcionais e histórias totalmente fantasiadas. E é nessa fusão do onírico, do imaginado, e até do esticar a corda da implausibilidade que costumo escrever.

Se por acaso a verdade não me for conveniente para a história, escolho a minha história. Já dizia Aristóteles, a verdade não serve o drama. Trata-se disso. 

Foi preciso visitar o Tarrafal para escrever o livro?

Não. Já fui ao Tarrafal duas vezes, mas após a escrita deste romance. Não faço parte daquele grupo de escritores que precisam de ir aos sítios para escrever sobre eles. Penso que, por vezes, até se pode tratar de um bom pretexto para viajar, para quem gosta de viajar, o que nem é o meu caso. Agora, se me perguntas se li tudo o que havia disponível sobre o campo do Tarrafal, isso sim, penso que me escapou pouca coisa. Aquele período está relativamente bem documentado, há muitos relatos, colectâneas de depoimentos, muitos livros, eu própria entrevistei ex-tarrafalistas…

De uma edição para outra passaram dez anos, o que é que mudou?

Mudou tudo. Mudou o mundo à nossa volta, mudei eu própria, mudou até a minha maneira de escrever, mudou a maneira de comunicarmos, a sociedade teve uma mudança aceleradíssima de paradigmas de comunicação, de interacção e de relação com a verdade e com a emoção. Mudou a tolerância que parece que, afinal, temos para com a violência e o ódio, a força com que eclodiram as ideias racistas, belicistas e misóginas, a forma como assistimos ao esmagamento dos mais fracos e desumanizamos o outro, como se as crianças, as mulheres, os velhos, os mais pobres e desprotegidos, os bebés fossem terroristas ou indesejados.

«O livro continua o mesmo. Um conjunto de fúrias. As fúrias colectivas dos que lutaram por um bocadinho mais de dignidade na vida, como na sublevação do 18 de Janeiro dos operários da Marinha Grande, em 1934, a revolta dos marinheiros, em 1936 (foram estes dois grupos de presos que inauguraram o campo de concentração do Tarrafal, em 1936).»

Mudou o apreço que agora assumimos pelo grotesco, pela ignorância e até pela iliteracia. O que dantes era uma piada tornou-se até em mais-valia eleitoral, como as teorias da conspiração, os movimentos anti-ciência, anti-racionalismo, anti-lucidez… A própria noção de tempo mudou.

Há uma voracidade que engole tudo, todos os minutos do presente tendem a ficar lá para trás, e andamos galopantemente atrás nem sabemos bem de quê. Só uma coisa não mudou, que foi o passado, mas, como sabemos, pode mudar a percepção que temos dele. Já que o jornalismo se confunde com “comentarismo” e quem tem diverge das teses dominantes parece estar a cometer um delito de opinião.

São tempos em que as pessoas não acreditam em nada ou acreditam em tudo – o que é igualmente tremendo. Podem arrasar com a memória deste país, negar que tantas atrocidades aconteceram, ignorar estas vítimas do fascismo, homens e mulheres muito jovens, mortos, torturados e sujeitos à repressão mais violenta do estado novo, por isso é bom que se larguem sementes de resistência por aí, para que possam voltar a germinar. E a literatura é sempre uma forma de resistência contra o obscurantismo e o retrocesso. Aliás, acredito que é no chão da literatura que ela melhor floresce. 

Precisaste de reescrever algumas partes do livro?

Não. Nem uma sílaba. Sendo eu outra pessoa, e o mundo também outro, seria doloroso sujeitar a isso o livro. Sujeitar-me a mim. O livro continua o mesmo. Um conjunto de fúrias. As fúrias colectivas dos que lutaram por um bocadinho mais de dignidade na vida, como na sublevação do 18 de Janeiro dos operários da Marinha Grande, em 1934, a revolta dos marinheiros, em 1936 (foram estes dois grupos de presos que inauguraram o campo de concentração do Tarrafal, em 1936). As fúrias dos que mesmo no campo da morte lenta não se deixaram vergar.

E depois as nossas fúrias domésticas, pessoais, laborais, conjugais. E no meio de tudo isto, a minha fúria literária.

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