Annette, Epopeia de uma Heroína é um livro da escritora Anne Weber sobre a resistente e activista Anne Beaumanoir. Uma mulher que atravessou o século XX e os seus combates, participando na resistência comunista francesa, desde os 16 anos de idade, e colaborando com as redes de apoio à resistência argelina, da Frente de Libertação Nacional (FLN), durante a guerra entre a França e a Argélia. Foi uma mulher que sempre lutou e nunca desistiu. Nunca colheu a totalidade dos frutos do seu combate. Até porque, no seu entender, nunca conseguiu conquistar aquilo que pretendia: uma vitória irreversível contra a injustiça. Aquilo que a levou para a refrega foi essa impossibilidade de aceitar as injustiças e, infelizmente, mesmo quando liquidamos uma, elas tendem a voltar, mesmo que diferentes, pela janela.
O livro de Anne Weber, escritora alemã que escreve em francês e alemão, é um objecto de uma beleza estranha. Vivemos Annette e as suas circunstâncias, como se estivéssemos presentes nos dias de fogo e nos dias de chumbo, mas não é um romance histórico. É, de alguma forma, a verdade de Anne Weber sobre Annete. Uma biografia é sempre um olhar de quem a escreve.
No nosso século XXI, as lutas e as injustiças não faltam, e fazem-nos falta pessoas e forjas que temperaram o aço das Annetes que derrubaram tantas injustiças.
Uma pessoa como Annete seria hoje possível ou é alguém que só foi capaz de existir num outro tempo, numa outra galáxia, em que havia outros valores e ideias?
Penso que ela seria possível nos dias hoje. Para além de tudo, ela não se via como alguém de excepcional. Tinha um agudo sentido da injustiça e percebia as desigualdades do seu tempo. Neste sentido, continuam a existir pessoas que actuam como Annete. Era uma pessoa impressionante, que mesmo no presente continuava activa e preocupada com as injustiças. Há três anos ainda falávamos muito por email, e ela discutia comigo as manifestações na Argélia.
Li numa entevista, que Annete leu inicialmente só as primeiras páginas do seu manuscrito, depois preferiu ler apenas quando foi publicado, tendo dito que tinha gostado muito, mas não se reconhecia nas páginas. Como reagiu a isso, e quais são, no seu entender, as razões dessa dissonância?
Na altura, esse comentário perturbou-me muito. Eu não queria fazer um romance histórico, mas contar aquilo que tinha acontecido. Não queria ficcionar. O livro não tem sequer um diálogo. Eu acreditava estar a contar, e contei, os factos e acontecimentos da sua história. Mas apercebi-me que a partir do momento que um biografo conta uma história, ele pode enumerar as datas, mas a partir daí não pode deixar de lado a imaginação: é-se sempre obrigado, mesmo ao fazer uma biografia, a imaginar para poder contar. De qualquer forma, eu apoiei-me muito nas suas próprias memórias. Vou também buscar muita coisa às entrevistas e conversas que tive com ela, mas não deixa de ser o meu ponto de vista sobre a sua vida. Isso acontece porque não há só uma história de factos e a sucessão de como eles se desenrolaram, mas há também os meus pensamentos, questões e dúvidas, que estão naturalmente presentes quando escrevo. É a história dela, contada por mim, tendo em conta as minhas próprias preocupações e pontos de vista.
Normalmente, diz-se que quando alguém faz uma biografia acaba por fazer um pouco a sua própria biografia. Annete milita no Partido Comunista Francês, uma militância em tempos de resistência que exige muita disciplina. No entanto, ela quebra duas vezes as regras por questões políticas e humanitárias. A primeira vez, para salvar uns jovens judeus que iam ser apanhados pelos nazis, e depois da guerra ao decidir integrar as redes de apoio à FLN. Acha que as suas memórias são fiéis à sua evolução política, ou podem de alguma maneira estar contaminadas pelas suas mudanças de posição política?
Tenho impressão que ela teve sempre muito carácter e que isso manifestou-se sempre, mesmo na sua militância. Mas pode acontecer que a sua mudança de militância possa ter alterado a forma como via algumas coisas do passado. Mas não creio que isso tenha sucedido de forma a tornar essas recordações menos verdadeiras. Apoiei-me muito nas suas memórias, escritas nos anos 80, e quando ela evoca aquilo que aconteceu na resistência já se trata de algo muito longínquo. Já passaram mais de 40 anos. Não se pode voltar atrás décadas e regressar àquilo que fomos no nosso estado de espírito actual. Há sempre uma tentativa de recriar qualquer coisa, mas nunca será a verdade como ela foi vivida.
Foi fácil para si entrar na alma e no corpo de alguém completamente diferente?
Isso faz-me rir, até porque eu tenho duas vezes a altura de Annete. E ela era francesa resistente e eu alemã, com dois avôs nazis. Tornam difícil incorporar-me nela. Mas muito da minha afeição por ela, advém mesmo de eu ser alemã.
Pensa que existe uma culpabilidade colectiva dos alemães?
Não acredito nisso, mas penso num fardo colectivo. Quando eu era jovem, na minha terra não havia judeus e eu dava por mim a pensar que os tínhamos mortos todos. E quando pensava «que os tínhamos mortos todos», sabia que não tinha sido eu, mas intuía que tínhamos, nós os alemães, a responsabilidade desses crimes. Não era eu, mas eram os meus antepassados e o meu país. Era como se fossem os filhos de um serial killer. Não era que o tivesse feito, mas isso não me era indiferente.
Há um problema quando se analisa o nazismo como se fosse uma anormalidade, como se ele não tivesse sido feito por pessoas normais, fosse levado à prática por monstros não racionais. Como se aquilo que aconteceu no nazismo não fosse repetível, logo não seja necessário ser pensado, nem analisado.
Não tenho explicações. Certamente economistas e historiadores investigaram as razões que podem ter levado a uma tal situação. Mas mesmo assim, eu não consigo arranjar uma explicação. Isto continuará sempre a ser incompreensível.
Essa incapacidade de pensar as condições que promovem o horror, não nos pode levar a repetir esse mesmo horror?
O que vivemos na Europa e no mundo são formas de imperialismo e de tentativas de submeterem povos. Há certas coisas que se repetem, mesmo que não seja a mesma coisa.
Annete lia A Condição Humana e A Esperança, de Malraux. Viviam-se tempos difíceis, mas acreditava-se poder mudar a adversidade. Vivemos tempos difíceis, temos acesso à mesma esperança?
Talvez não. Até porque a ameaça ecológica é tão grave, que mesmo que seja possível tornar o planeta mais belo e justo, ele arrisca-se a não sobreviver.
Não acredita que se possa derrotar a crise ambiental?
Não sei. São questões que me ultrapassam. Mas aquilo que me surpreende em Annete, e que me fascina, é que ela guardou as suas esperanças de sempre. As desilusões e derrotas não a levaram nem à capitulação, nem ao cinismo. Acreditou até à morte na possibilidade de fazer as coisas e de fazer um mundo melhor. Muitos anos depois de ter fugido da Argélia, depois do golpe de Estado que retirou Ben Bella do poder, acompanhava as manifestações de milhões de argelinos à sexta-feira para exigir um poder mais democrático. Tinha ainda amigas na Argélia com que comentava por e-mail, e seguia apaixonadamente os factos que elas lhe relatavam. Mesmo na política, era extraordinariamente interessada e completamente anti-Macron.
Há muitos militantes que ganham um certo cinismo como mecanismo de protecção. Ela parecia completamente intocada por esse sentimento.
Tenho a impressão que o cinismo nunca a tocou. Muitas vezes cega, mas cínica, nunca.
O que poderia fazer uma outra Annete hoje?
Não sei. Até porque morreu há apenas há meses. Viveu até agora. Disse-me uma vez – ela que era médica - que tinha, não sei se isso existe, o síndroma do envelhecimento conseguido. Esteve em forma e activa até ao fim da sua vida. E, de certa maneira, fez sempre tudo com o mesmo empenhamento até ao fim. A sua vida é de certa maneira uma resposta que é possível esse tipo de empenhamento até nos dias de hoje.
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