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Entrevista a Miguel Dores

«Alcindo Monteiro é uma história que não podemos esquecer nem perdoar»

O filme Alcindo foi aplaudido de pé durante muitos minutos pela plateia que lotou a sua estreia no Doclisboa. Um murro no estômago para quem defende que existem racistas sem racismo. 

Imagens de manifestação anti-racista no documentário «Alcindo».
Imagens de manifestação anti-racista no documentário «Alcindo».Créditos

Miguel Dores é estudante de mestrado em Antropologia. O trabalho final é uma tese sobre o caso Alcindo Monteiro. Uma tese que tem um filme. A realização deste filme foi possível com o apoio de muitas centenas de pessoas. «Alcindo» convoca uma memória que alguns querem enterrar, para não ver de frente o racismo estrutural que permitiu este crime.

A tese do filme é que a responsabilidade pelo assassínio de Alcindo Monteiro vai muito para além dos seus autores materiais. Até onde vão essas responsabilidades?

Desde logo, é devido à forma como Portugal trabalha a sua memória colonial e a responsabilidade contra-revolucionária que permitiu – anos depois do 25 de Abril de 1974 – a reconstrução de um discurso salazarista sobre o império. Isto faz com que a responsabilidade da sociedade e dos políticos seja muito vasta em relação ao crime. É esta a tese do filme. Se as pessoas estão à espera que o filme acuse 17 jovens neonazis, vão encontrar isso, mas também vão encontrar um plano mais geral sobre Portugal e sobre a forma como naquela época e momento se constrói a memória colonial e a ideia de império.

No filme fala-se no regresso das comemorações do 10 de Junho, antigo Dia da Raça, três anos depois da Revolução de Abril, e como isso ajuda a fazer o caldo cultural que levou a que em 10 de Junho fosse assassinado Alcindo Monteiro. Temos só um problema de memória histórica não resolvido ou também uma não assunção reiterada de que há racismo?

O filme tenta dizer que precisamos de ter uma compreensão estrutural do racismo, mas precisamos de perceber que o racismo tem agendas políticas e interesses por de trás. As forma como se constroem os discursos e as políticas públicas, que têm um impacto nas construção de tensões e ódios raciais que geram linchamentos: a ideia que o racismo mata. Precisamos de compreender que há fenómenos interpessoais, que são gerados por estruturas sociais, que são muito mais latas que esse momento e essa explosão.

Durante o documentário, a certa altura, aparece Salazar, depois Eanes e finalmente Soares. Eles não dizem o mesmo, mas de alguma forma são acusados de permitirem que o discurso racista, com a ideia da excepcionalidade do colonialismo português, seria geneticamente multicultural. Mas há diferenças entre essas pessoas.

Sim, eu não estou a equiparar o pensamento político dessas pessoas, mas estou a fazer uma leitura de como é reinterpretado o mito do excepcionalismo do colonialismo português e do luso-tropicalismo. O que eu faço é perceber como há uma reconstrução histórica dos mitos do luso-tropicalismo que permeia toda a construção de políticas públicas de memória. Lembro que a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] foi criada em 1996, quando Portugal estava a preparar a Expo 98. Aquele era um momento de afirmação deste mito reconstruído pós-colonial que vai resgatar o Império. A criatura salazarista tem muito mais ramificações no presente do que nós julgamos. Todos nós temos elementos desta estrutura. Há uma peça de arquivo da RTP interessantíssima, que não está no filme: Mário Soares, no Brasil, a cumprimentar pessoalmente Gilberto Freire, em Pernambuco, numas comemorações que se fizeram lá.

«A criatura salazarista tem muito mais ramificações no presente do que nós julgamos.»

Soares diz-lhe que os democratas portugueses, tal como o Estado Novo, acreditavam no luso-tropicalismo e respeitavam o legado histórico que Gilberto Freire trouxe para Portugal. Ou seja, um discurso de continuidade, dentro do quadro criado por Salazar. É preciso ver que as independências das colónias africanas de outros países da Europa foram mais cedo que das portuguesas. O discurso luso-tropicalismo era usado para justificar que as colónias portuguesas estavam bem como estavam porque eram, alegadamente, diferentes. A manutenção da ideia que Portugal não se esgotaria neste canto e estendia-se pelo mundo. Através desse discurso queria-se, como efeito político, justificar a continuidade da ocupação portuguesa desses países.

Até a esquerda não minimiza por vezes a luta anti-racista?

No mapa das ideologias contemporâneas verifica-se uma tendência, desde os anos 70, de extrair os movimentos feministas e anti-racistas da sua ligação histórica aos movimentos socialistas e comunistas, nos quais sempre estiveram e, dentro disto, constrói-se um discurso liberal e identitário. É também por isso que vemos partidos de esquerda a serem reactivos a estas questões. Mas é um erro. É um erro de memória, é um erro táctico, é um erro no mais amplo sentido. Existe também uma compreensão parca de como todos estes problemas estão inter-relacionados e afectam a classe trabalhadora. Acho que deve haver uma compreensão de como são importantes estes problemas para os trabalhadores, mas isso parte da compreensão que a vida dos trabalhadores é atravessada por muitas questões que às vezes extrapolam o âmbito do trabalho, e que temos de colocar o racismo na agenda dos trabalhadores.

A criação do caldo que levou ao assassinato do Alcindo começou com a criação de um clima mediático e policial que construiu uma agenda de medo da existência da suposta ameaça de gangs de negros. Essa agenda nunca desapareceu, ainda hoje na banca dos jornais fala-se que a polícia vigia 30 gangs de jovens. A que é que se deve a permanência desse discurso?

Analisando o que aconteceu em Portugal, penso que essa agenda está muito ligada à criação das televisões privadas. Cria-se uma nova ideia de comunicação social em que se aposta nos escândalos maniqueístas. A questão dos gangs é um tema muito rentável para esses meios. A ideia da criminalidade e a existência de «inimigos públicos» são muito vendáveis para esse tipo de meios de media. Embora isso seja por vezes contraditório: a melhor peça jornalística que há sobre o caso Alcindo Monteiro foi publicada no Observador, em contrapé com muitos conteúdos nesse site. No geral, naturalizam-se estas abordagens sensacionalistas, mas depois há algumas peças a dar «o outro lado». Acho que isto também se coloca no terreno de políticas globais de construção de uma suposta ameaça dos imigrantes, que na verdade é uma agenda que começa na viragem do milénio e que produz imensas vítimas no mundo inteiro. O que eu tento fazer no filme é perceber o que aconteceu ao Alcindo no contexto da época.

Quais são as reacções que tem tido [a entrevista foi feita antes da estreia]?

Eu já fiz cinco cortes do filme [montagens], fui mostrando à família e a pessoas que foram dando dicas. Para já, a reacção é que acham o filme muito capaz de articular a noite em que tudo se passou com o resto. Como aconteceu e o que é que está por detrás dela. O caso Alcindo Monteiro está muito ligado ao nascimento de uma agenda anti-racista em Portugal, nem tudo nasceu a partir deste caso, mas muitas das suas actuais formas e causas começaram aí, nomeadamente a capacidade de intervenção do espaço público.

Pensa voltar a fazer filmes?

Pode ser que seja um filme único. Começo este filme por razões militantes e específicas: eu queria falar deste caso e convocar esta memória, não por me considerar um realizador. Claro que eu gostava de continuar a produzir filmes, mas não sei se o vou conseguir.

É interessante que a voz da narração seja a sua. Torna-se mais um factor de humanização que se vai confrontando com a situação.

Tenho duas grandes referências para construção desse voz-off. Ele era para ser apenas um voz-off guia, para perceber o que íamos fazer com a montagem. Depois viu-se que devia ser o voz-off final, que nem era para ser inicialmente com a minha voz. Depois viu-se que a voz que reflectia sobre o processo de filmagem e o encontro da informação fazia sentido que fosse a minha. As minhas grande referência, para isso, são o Cabra Marcado Para Morrer e o I Am Not a Negro sobre a história de James Baldwin. A ideia era ter um voz-off que fosse uma pessoa, uma personagem de um filme tal como as outras. Não uma voz sociológica que está explicar o filme. Mas sim, uma pessoa que está ali para suscitar reflexões e denunciar hipocrisias.

Como é que chegou ao caso, como é que ele ganhou importância sobre si?

Eu sou da Amadora, e para mim foi uma escola de vida. Comecei a ser socializado no mundo, enquanto português, num cenário em que a maior parte dos meus colegas eram negros. E comecei a minha actividade política nas escolas da Amadora, em que a minha realidade era marcada pelo rap, o kizomba e a dança do kuduro. Sempre recusei a ideia tradicional do que é Portugal e do que é ser português. Havia uma desigualdade que eu não compreendia: existiam muitos estudantes negros que não conseguiam frequentar o ensino secundário e a universidade. Lembro-me muito de amigos revoltados com a própria estrutura racista da escola. Sentia todas essas incompreensões, ainda mais tendo uma família que me ajudou a compreender as matrizes de classe da opressão. Todas essas compreensões marcaram muito o meu terreno e percurso académico. Compreender esta realidade sempre foi o meu maior motor.

«Sempre recusei a ideia tradicional do que é Portugal e do que é ser português. Havia uma desigualdade que eu não compreendia: existiam muitos estudantes negros que não conseguiam frequentar o ensino secundário e a universidade.»

Para além disso, vivi no Brasil durante cinco anos, que é um país onde a questão racial está muito presente e em que é difícil compreender estas questões sem analisar a herança colonial que ainda está muito viva. Eu também participei no movimento punk e no seio dele não esquecemos o caso Alcindo Monteiro. Recordo-me da primeira vez que fui ao Bairro Alto, tinha 14 anos, com amigos mais velhos, todos antifascistas, e de me terem contado aquela história. Apontando o dedo, lembravam-se de tudo o que tinha acontecido rua a rua. Lembro-me de ficar muito impactado, e pensar que era uma história que não devíamos esquecer nem perdoar. E ter a consciência que era uma contra-memória e que nada disto era oficial. E que apesar dos governantes terem reagido ao assassinato e ido ao funeral, o Estado português nunca assumiu uma memória sobre este caso. Exemplo disso, é terem comemorado, em 2019, o Dia de Portugal em Cabo Verde e Alcindo Monteiro nem sequer ter sido referido.

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