Alcindo Monteiro, cidadão português de 27 anos e residente no Barreiro, viria a morrer no dia 12 de Junho, no seguimento das graves lesões decorrentes do espancamento de que ele, entre 11 outras vítimas, foram alvo em 1995.
Assinalava-se o Dia de Portugal quando Alcindo foi confrontado, na rua Garrett, por um grupo nacionalista que, nesse mesmo dia, tinha organizado um jantar comemorativo do «dia de Camões, Portugal e da raça» – epíteto acrescentado a esta data por Salazar, em 1944.
É através deste acontecimento que o documentário Alcindo, realizado por Miguel Dores e que se encontra actualmente em fase de pós-produção, explora o passado e o presente da violência racista em Portugal.
Este é um debate que desafia o momento político e social no qual o racismo e o anti-racismo têm ganho maior destaque no espaço público português mas que também poderá conter alguns equívocos. «A tradução tem cor?», pergunta-se a propósito da polémica internacional com a tradução da obra da poeta afroamericana Amanda Gorman lida na Casa Branca, na tomada de posse de Joe Biden. «A voz tem cor?», ouvimos ainda há pouco tempo a propósito da dobragem portuguesa do filme de animação Soul. «As exclusões em razão da etnia são óbvias e agridem o quotidiano de afrodescendentes, ciganos e migrantes nas escolas, no emprego, na habitação. São assunto sério que clama por transformação e políticas públicas concretas no sentido de uma maior justiça e afirmação dos grupos historicamente discriminados. As polémicas serão úteis na extensão em que sirvam para desocultar expressões de racismo e práticas discriminatórias» Este é um debate que desafia o momento político e social no qual o racismo e o anti-racismo têm ganho maior destaque no espaço público português mas que também poderá conter alguns equívocos. Uma discussão ao nível de «devem escritoras negras ser traduzidas por mulheres ou homens brancos?», ou «podem personagens de ficção negros ser dobrados por actores brancos?», é arriscar defender uma forma de ver o mundo em que se acredita que a semelhança só pode ser compreendida através de elementos como etnia, género, orientação sexual ou condição social. Isto tornar-nos-ia mais pobres, remetendo-nos para dentro de bolhas de identidade e para uma crise do «nós», inibindo a empatia em vez de expandi-la. O que seria em tudo contrário ao dom que a literatura, a arte e a cultura nos possibilitam. Coloca também em causa trabalhadores (os tradutores «banidos» como a holandesa Rijneveld ou o catalão Obiols e os actores portugueses brancos criticados por terem aceite um trabalho) quando as questões estruturais que oprimem permanecem inalteradas. A importância de perguntas como estas vai muito além de meras considerações sobre quem deve/pode traduzir ou dobrar. Por princípio, todos aqueles apetrechados, com talento, formação e competência para tal devem (poder) fazê-lo. A questão fundamental é de outra ordem e deve orientar-nos para as relações de poder e de exploração que importa realmente desafiar. Não nos percamos, por isso, na tradução. As exclusões em razão da etnia são óbvias e agridem o quotidiano de afrodescendentes, ciganos e migrantes nas escolas, no emprego, na habitação. São assunto sério que clama por transformação e políticas públicas concretas no sentido de uma maior justiça e afirmação dos grupos historicamente discriminados. As polémicas serão úteis na extensão em que sirvam para desocultar expressões de racismo e práticas discriminatórias. Numa recente reportagem do jornal Público a propósito da tradução do texto de Gorman, uma das entrevistadas, tradutora e professora de tradução literária, sublinhava que na universidade já tinha tido alunos negros mas não conhecia nenhum tradutor negro em Portugal. Onde estão eles?, indagava-se. Esta é uma das perguntas que importa. Vários relatórios, estudos académicos e observações empíricas permitem-nos saber que há discriminação no emprego da população negra e cigana, que os afrodescendentes estão sobre-representados em cargos de baixa qualificação, na construção civil e limpezas mas sub-representados em muitos outros sectores, mesmo quando obtiveram qualificações educacionais superiores, incluindo diplomas universitários. E estão também entre aqueles com os níveis mais altos de desemprego. Na escola portuguesa sabemos também que os alunos afrodescendentes têm taxas de retenção mais elevadas e maior probabilidade de serem encaminhados para cursos profissionais (80% dos alunos afrodescendentes acabam nos cursos profissionais1). Lembro-me de uma jovem afrodescendente de 15 anos, que conheci num projecto educativo e me confidenciou como acalentava o sonho de ser advogada até ao dia em que uma professora lhe sugeriu que talvez fosse mais acertado ir para um curso profissional na área da Hotelaria porque: «Direito é um curso difícil e no Turismo em Portugal haverá sempre trabalho». «Há jovens cujos sonhos são diminuídos e destruídos (por vezes, ironicamente, até com as melhores das intenções). E parte destes jovens – ou pelo menos parte dos tais 80% – têm cor. São negros. Mas que o racismo é o projecto económico de divisão do trabalho mais antigo do mundo já sabemos» A progressão académica aumenta a probabilidade de alunos acederem a empregos que não estiveram ao alcance dos seus pais, quebrando o ciclo da pobreza intergeracional, mas a escola opera, muitas vezes, como uma simples muleta do mercado de trabalho com o propósito de formar mão-de-obra imediata. Nestes casos, a escola vem – indirectamente – ensinar a estes alunos a forma como as relações sociais e a divisão do trabalho são produzidas e reproduzidas no sistema em que vivemos. Há jovens cujos sonhos são diminuídos e destruídos (por vezes, ironicamente, até com as melhores das intenções). E parte destes jovens – ou pelo menos parte dos tais 80% – têm cor. São negros. Mas que o racismo é o projecto económico de divisão do trabalho mais antigo do mundo já sabemos. No genial Astérix e o domínio dos deuses, de Goscinny e Uderzo, há uma parte da narrativa em que um senador romano fica deveras impressionado com a rapidez com que foi erguido um condomínio de luxo nos arredores da Aldeia Gaulesa com o objectivo de seduzir os teimosos e resistentes gauleses para o estilo de vida romano. Um dos capatazes imperiais explica que não foi tarefa fácil e que teve de dar alojamento aos escravos e prometer-lhes uma futura libertação, para que não se revoltassem e piassem mais fino, construindo o tal condomínio. O senador de Roma concede, então, aos escravos a prometida liberdade com a condição que devolvessem as chaves dos alojamentos onde estiveram a viver durante a empreitada. Como agora já eram homens livres, se quisessem lá continuar a morar teriam de pagar uma renda no valor de 15 sestércios (a moeda romana) por semana. A «boa notícia», acrescentava o senador, é que Roma iria abrir vagas de emprego para pedreiros e o salário era de, ó coincidência!, de 15 sestércios por semana. Entre a perplexidade da proposta de valores idênticos e o alívio de continuarem a ter um tecto, os escravos agora «libertados» aceitam e são «contratados». Esta história explica-nos como se tivéssemos seis anos de idade como o capitalismo opera e é hábil em manter a população escravizada mesmo após ter sido «liberta». Resume dezenas de livros e ensaios sobre a forma como o comércio transatlântico de escravos e o roubo das riquezas de várias terras foi um test drive do capitalismo dos nossos dias, que no fundo é uma reconversão da lógica de exploração de recursos naturais e do trabalho das pessoas. «A precariedade e a exploração laboral são transversais e não conhecem tons de pele, pode argumentar-se e bem, mas os dados disponíveis e avulsos mostram-nos que há um certo padrão, e ele tem cor» Quantos hoje em dia, em Portugal, vivem para trabalhar e poder pagar, à justa, renda da casa, alimentação, água e luz, passe de transporte para ir trabalhar e, mesmo trabalhando longas horas por dia, permanecem pobres num mercado que os oprime e extenua? A precariedade e a exploração laboral são transversais e não conhecem tons de pele, pode argumentar-se e bem, mas os dados disponíveis e avulsos mostram-nos que há um certo padrão, e ele tem cor. A população negra, enquanto grupo, nunca alcançará os objectivos históricos da sua longa luta dentro da política económica do capitalismo, defendia o norte-americano Manning Marable. Para o professor e biógrafo de Malcolm X, qualquer mudança irá requerer um movimento de resistência democrática ancorado nos trabalhadores e nos grupos minoritários discriminados. Por vezes, ficamos perdidos na tradução e no fogo fátuo das polémicas e esquecemos que certos debates só serão preciosos se fortalecerem a luta no sentido de uma vida e emprego com plenos direitos, possibilidades e realizações. De resto, querer lutar contra o racismo e não lutar contra a pobreza, a desigualdade e a exploração que destrói o nosso humanismo, é uma luta inglória onde a única coisa a ganhar será uma espécie de medalha de participação em jogos sem fronteiras. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. 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Racismo em Portugal: «perdidos na tradução»
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Com recurso a entrevistas com os vários intervenientes neste processo, desde familiares e amigos da vítima aos advogados que os acompanharam durante o julgamento, assim como a recortes de um artigo editado pela Frente Anti-Racista em 1998 e outros documentos, o realizador apresenta uma nova perspectiva sobre o crime, pelo qual foram condenados 14 elementos do grupo.
Para a conclusão do projecto foi lançada uma campanha de fundos que contou, entre outros, com a colaboração do artista urbano Vhils. Embora os autores do documentário, «filmado com muitas horas de trabalho, voluntário e colaborativo», tenham alcançado a meta de angariação originalmente proposta, procuram agora recolher os fundos necessários para divulgarem, a nível nacional, um filme que «procura antes de tudo ser uma homenagem àqueles que resistem e àqueles que caem».
O documentário tem data prevista de estreia para Outubro de 2021.
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