Num ano em que as principais empresas cotadas em bolsa atingiram lucros anuais históricos pelo quarto ano consecutivo e distribuíram 2,9 mil milhões de euros em dividendos aos accionistas, o Governo apresentou uma proposta de alteração à legislação laboral que representa uma transformação profunda no mercado de trabalho.
Esta iniciativa legislativa surge precisamente quando o PSI-20 alcançou um lucro conjunto de 6,1 mil milhões de euros, um crescimento significativo face ao ano anterior, que já fora considerado excepcional. Gigantes como a Galp, a EDP, o BCP e a Jerónimo Martins lideram esta fase de prosperidade financeira.
Ao serviço desses grandes grupos económicos, a proposta do Governo, composta por mais de uma centena de alterações, visa promover mudanças estruturais no Código do Trabalho. As medidas incluem o alargamento dos prazos e motivos para a celebração de contratos a termo, a introdução da possibilidade de pagamento dos subsídios de férias e de Natal em duodécimos, a facilitação de processos de despedimento, a desregulação dos horários de trabalho através da reposição do banco de horas individual, e alterações profundas na contratação colectiva e no exercício de direitos sindicais e de greve. O conjunto é justificado pela necessidade de introduzir «flexibilização» para tornar as empresas mais «competitivas» e enfrentar desafios económicos.
É aqui que, no entanto, existe uma contradição evidente entre o discurso oficial que sustenta o pacote laboral e a realidade financeira do tecido empresarial português ao qual o Governo serve. A justificação da necessidade premente de flexibilização para a sobrevivência e competitividade das empresas perde credibilidade quando confrontada com os indicadores de rentabilidade do principal índice bolsista nacional, que batem recordes sucessivos.
A alteração à legislação laboral surge, não num contexto de crise ou de dificuldades generalizadas das empresas, mas sim numa fase de lucros excepcionais e de distribuição generosa de dividendos. Esta conjuntura levanta a questão de saber se a «flexibilidade» é um instrumento necessário para salvar empresas ou, antes, uma ferramenta para aumentar ainda mais a rentabilidade do capital, já elevada, à custa da segurança e dos rendimentos dos trabalhadores.
O cerne do pacote parece ser uma transferência de poder das mãos dos trabalhadores para as mãos dos patrões. Ao mesmo tempo, os dados financeiros revelam uma transferência maciça de riqueza para os accionistas, descapitalizando as empresas e eliminando factores que aumentem a produtividade. O conjunto do pacote laboral não está destinado a criar uma nova riqueza num contexto adverso, mas sim a redistribuir a riqueza existente de forma ainda mais assimétrica: da força de trabalho, através da precarização e da estagnação salarial, para o capital, através da consolidação de lucros e dividendos recordes.
A proposta de alteração à legislação visa, assim, optimizar e intensificar o modelo de exploração, em vez de promover uma transição para um paradigma assente na inovação, na produtividade qualificada ou no investimento. Por outras palavras, o Governo e a patronato parecem estar a optar por reforçar um caminho de baixos salários que já beneficia claramente o capital, em detrimento de uma via alternativa que também pudesse beneficiar os trabalhadores com melhores salários e maior estabilidade.
Dada a evidência dos lucros excepcionais dos grandes grupos económicos, a justificação de que é preciso mais «flexibilidade laboral» para garantir a viabilidade das empresas surge como um pretexto. Uma apreciação crítica permite concluir que o pacote laboral representa um ataque desproporcional aos direitos dos trabalhadores e os seus objetivos parecem ser mais ideológicos e de redistribuição de poder do que económicos, visando aprofundar um desequilíbrio já existente entre os lucros do capital e os direitos dos trabalhadores.
A injustiça social subjacente torna-se flagrante: promove-se activamente a precarização do trabalho enquanto se celebram, em paralelo, lucros e distribuições de dividendos sem precedentes.
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