|Jorge C.

A subversão de Lampedusa no Estádio da Luz

Nos clubes de futebol, como no resto da vida, o situacionismo normaliza-se através de instrumentos como o medo da perda de estabilidade, medo da falência de um modelo que aparenta ser estruturado. Qualquer alternativa exterior a este modelo é uma ameaça a essa estabilidade.

CréditosDiogo Faria Reis / Agência Lusa

Não deixando de ser preocupante o crescimento dos projetos reacionários em Portugal e um pouco por todo o mundo, é ainda mais surpreendente o apoio massificado aos que continuam a ser responsáveis pela degradação da vida económica e política do país. Seria de perguntar como é possível que, confrontados com a mais do que evidente política de empobrecimento aplicada por governos PS e PSD, se continue a dar um voto de confiança a estes detentores do status quo. Mais do que procurar respostas nas estatísticas, na propaganda ou na seleção editorial dos grupos de comunicação, talvez seja importante procurar em todas as outras esferas da nossa vida a linha de raciocínio que leva a esta espécie de entropia crítica.  

Um bom exemplo desta entropia chegou-nos por estes dias com a atenção mediática dada às eleições num dos maiores clubes portugueses de futebol – o Sport Lisboa e Benfica. Para além do já excessivo tempo de antena de que beneficiam diariamente, as eleições nestes grandes clubes ocupam o espaço informativo – entre entrevistas, debates, comentário e reportagens – que sequestra, condiciona e determina a opinião pública. No meio desta avalanche de entretenimento, não podiam faltar as entrevistas de rua, junto do estádio, para ver o que dizem as massas. 

Alguns dos sócios entrevistados garantiam, então, ser necessária uma mudança na gestão do clube, presidido até ao momento pelo ex-jogador e internacional português Rui Costa. Quem seria, então, o candidato que preconizaria essa mudança? Para estes sócios a resposta era evidente: o mesmo Rui Costa. No final desse dia, Rui Costa seria reconduzido como presidente do Benfica com uma vitória expressiva. 

Poucas horas depois, começavam a circular vídeos com estas entrevistas, caricaturando a contradição. Ao deparar-me com elas, pensei em Lampedusa e no seu O Leopardo, nessa ideia de que é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. Este foi, aliás, o guião para muitas dinâmicas eleitorais nos nossos 50 anos de democracia. Mas o que estava ali a ser sugerido era que para que algo mude, tudo tem de ficar na mesma. A brilhante reflexão de Lampedusa era, assim, subvertida involuntariamente, dando-nos uma pista fundamental para compreendermos o nosso tempo.

Motivados pelos resultados «desportivos», pela capacidade competitiva do futebol dos seus clubes, muitos destes sócios chegam a estes momentos eleitorais para participar num referendo à responsabilidade sobre os resultados imediatos. Se este é um critério precipitado e um pouco inconsequente, também não deixa de ser válido. O objetivo dos clubes é competir para alcançar vitórias. Quando isto não acontece, alguma coisa tem de ser feita, dir-se-ia. Tudo isto seria indiscutível se estivéssemos a falar de um modelo desportivo anterior ao que hoje temos, muito mais sujeito às dinâmicas económico-financeiras e à hegemonia de uma única modalidade, cuja massificação movimenta milhares de milhões de euros. 

Geridas como grandes empresas, as sociedades desportivas que controlam os clubes representam cada vez menos os interesses dos sócios e cada vez mais os interesses dos grupos económicos, promovendo as suas políticas e as narrativas que lhes são mais convenientes. Não é, porém, uma alternativa a este modelo hegemónico que é colocada à discussão dos sócios e adeptos. O que lhes é dado a escolher é a personalidade que fará a melhor gestão do negócio do futebol. 

«Se em "O Leopardo" a ideia é que, havendo um desgaste acentuado dos quadros dirigentes, é necessário mudar de protagonistas, e até de símbolo, para que o sistema das elites rejuvenesça, nesta tragicomédia que é o espetáculo mediático contemporâneo, a ideia dos situacionistas passou a ser ainda mais absurda: da manutenção dos mesmos protagonistas resultará uma mudança.»

Dificilmente encontraremos um paradigma tão perfeito das relações políticas que se estabeleceram gradualmente na sociedade neoliberal. A alternativa – a mudança – é sempre uma escolha condicionada, um jogo viciado. Mas a necessidade de mudança revela-se sempre como um imperativo, dada a falta de correspondência entre o sentimento de pertença a um símbolo e a direção do seu destino. Cria-se, então, a falsa ideia de que algo poderá mudar, mesmo insistindo em que tudo fique na mesma, na firme convicção de que a estabilidade do sistema é a solução para resolver os problemas criados pelo próprio sistema. Resta decidir quem escolher para alcançar essa estabilidade. Se em O Leopardo a ideia é que, havendo um desgaste acentuado dos quadros dirigentes, é necessário mudar de protagonistas, e até de símbolo, para que o sistema das elites rejuvenesça, nesta tragicomédia que é o espetáculo mediático contemporâneo, a ideia dos situacionistas passou a ser ainda mais absurda: da manutenção dos mesmos protagonistas resultará uma mudança. 

Nos clubes de futebol, como no resto da vida, o situacionismo normaliza-se através de instrumentos como o medo da perda de estabilidade, medo da falência de um modelo que aparenta ser estruturado. Qualquer alternativa exterior a este modelo é uma ameaça a essa estabilidade e para o demonstrar aí estão os projetos populistas e os aventureirismos que no passado quase nos levaram à ruína e que recrudescem sempre nos momentos mais críticos. Reforçam o medo e destroem a possibilidade de uma verdadeira mudança, contribuindo para a cristalização do status quo. Os perigos desta estratégia são conhecidos. Quando as crises do sistema se acumulam e provocam ondas de descontentamento esvaziadas de sentido crítico e alimentadas por emoções, logo surge o homem providencial, independente e justiceiro, que nos vai salvar a todos e que no fim de contas garante apenas a estabilidade das elites económicas. 

Não deixa de se poder fazer um paralelismo entre estas eleições para um clube de futebol com o que se está a perspetivar para as eleições presidenciais, sendo que para a Presidência da República existe de facto uma alternativa, fora das candidaturas que se limitam a concorrer para garantir a estabilidade das grandes elites. É que mesmo sem a possibilidade de recandidatura do atual Presidente da República, as propostas de continuidade são muitas e certamente que haverá um grande esforço para garantir que tudo fique na mesma para que algo, miraculosamente, mude. É a subversão da ideia de Lampedusa para inviabilizar uma ideia de alternativa e nos transformar em meros espectadores numa caverna sem luz. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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