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Se os neoliberais pudessem, já tinha acabado o sector aéreo à escala mundial?

O que melhor ilustra o carácter de classe da retórica neoliberal é que os neoliberais são os primeiros a defender que os recursos públicos devem ser usados para «estimular a iniciativa privada».

Já todos ouvimos a retórica hiper-neoliberal protagonizada agora pela IL (e antes, por gente de similar ideologia, como João Duque): se uma empresa dá prejuízo, encerre-se, venda-se, ofereça-se.

Essa retórica vai ganhando peso mediático à medida que vai aumentando o interesse de quem manda no espaço mediático – o grande capital – pela difusão dessa ideologia. Principalmente porque a retórica é dirigida contra as empresas públicas, contra a existência de propriedade social e de uma intervenção não mercantilizada nas sociedades.

Aplicada à TAP serviu para nos dizerem que mais valia ter fechado a TAP em 2015 ou em 2020. E serve agora para nos dizer que o que importa é vendê-la pelo melhor preço.

Essa retórica ignora uma questão central: a riqueza que uma empresa cria não é apenas a riqueza de que através dela os seus accionistas se conseguem apropriar. Uma empresa como a TAP gera uma riqueza imensa, facilmente mensurável, independentemente do seu resultado líquido anual, do seu lucro. Se paga 600 milhões de euros em salários em Portugal, e paga, isso tem um valor económico e social (e até financeiro, na pura óptica do deve e haver do Orçamento de Estado). Se paga 1,4 mil milhões para a Segurança Social em 10 anos, e a TAP pagou, isso tem uma importância para todos os que dependem e vão depender da Segurança Social para ter acesso a uma reforma. Etc.

«A retórica é dirigida contra as empresas públicas, contra a existência de propriedade social e de uma intervenção não mercantilizada nas sociedades.»

O que melhor ilustra o carácter de classe da retórica neoliberal é que os neoliberais são os primeiros a defender que os recursos públicos devem ser usados para «estimular a iniciativa privada». São os primeiros a defender, como já todos ouviram, que os mais de 16 mil milhões de euros do PRR (que é dinheiro público) sejam destinados às empresas e não «ao Estado», e não ao investimento público em infraestrutura, em meios de transporte, em habitação, em equipamento médico, etc. Porque, garantem eles, essa iniciativa privada cria empregos, gera receitas para a segurança social, etc. No fundo, se é dinheiro público para oferecer ao grande capital, é bom, se é dinheiro público para reforçar a intervenção das empresas públicas ou alargar as obras públicas, é mau.

Mostrando grande consequência, a IL defendeu na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP que os apoios à empresa deveriam ter sido dados1 ao privado sem condições em vez de entregues à Empresa como capitalização. E conseguiu manter essa posição – mais baixinho – mesmo depois de ter ficado evidente a forma como Neeleman comprou a TAP com o dinheiro da própria TAP.

Qual a realidade mundial do sector?

No caso do sector aéreo é possível fazer a demonstração da falsidade das posições neoliberais por absurdo. A insuspeita (de ideologia marxista, só disso) McKinsey concluiu num estudo2 para a IATA que «Antes da Covid-19, a cadeia de valor do transporte aéreo gerava uma perda económica de cerca de 5 mil milhões de dólares por ano». Isto para os anos 2012-2019, onde a média anual de perdas das companhias aéreas (17,9 mil milhões dólares) não era compensada pelos outros actores da dita cadeia de valor, todos com resultados positivos (Construtores de Avião 2,2; Leassors 0,2; Controlo Aéreo 1,0; Aeroportos 4,6; Catering 0,6; Assistência em Escala 1,5; Manutenção 0,3; Despachantes de carga 2,0; e Software 0,7). Apliquemos a fórmula que os neoliberais querem usar na TAP: encerre-se, venda-se, ofereça-se. Como estamos a falar do conjunto de todas as companhias aéreas do mundo, a solução será deixar de haver sector aéreo? Qual o impacto de 4,5 mil milhões de pessoas deixarem de ter aviões para se deslocar? E para o comércio e o correio mundial? E para o turismo? E as centenas de milhões de desempregados? Um absurdo, certo? Soava melhor quando a lógica se aplicava só a uma empresa? Pois soava...

Estes números da McKinsey alertam ainda para dimensão do processo TAP: A TAP SA (o transporte aéreo propriamente dito) tem tido lucros; e se excluirmos (como se deve excluir) os resultados da Manutenção e Engenharia Brasil (mil milhões de euros negativos desde que foi comprada em 2006), o próprio grupo TAP tem tido resultados líquidos positivos. Num sector com os maus resultados globais apontados pela McKinsey. Ao contrário do que afanosamente tentam convencer o povo português, a TAP é um caso de sucesso.

E no pós-Covid?

Esse mesmo estudo da McKinsey alerta para a variação nos ratings de crédito das diferentes companhias aéreas na sequência da pandemia. Em 2019, reflectindo o atrás exposto, o investimento em 72% das companhias era considerado «lixo», ou seja, a classificação atribuída era inferior ou igual a BB+. Em 2021 a classificação de 95% das companhias estava colocada abaixo de «lixo», e 29% abaixo de CCC+, ou seja, com alta expectativa de default.

Mais uma vez, como aplicar aqui as teses que os neoliberais querem aplicar à TAP? Vendia-se 95% do sector mundial ao outro 5%, os únicos onde valeria a pena investir? Eles não o dizem, mas sim, essa é a solução final dos liberais e do neoliberalismo – a concentração de capitais num número cada vez menor de multinacionais, seja em que sector for. Assim à bruta não soa bem, mas mais uma vez, aplicado caso a caso soa melhor. Mas só soa.

Ora, a maioria dos Estados não está disposto a abdicar de um instrumento como uma companhia aérea nacional, e fizeram o que tinha de ser feito: libertaram cerca de 250 mil milhões de dólares em apoios às companhias aéreas para a recuperação da pandemia, 140 mil milhões dos quais a fundo perdido. Tudo números oficiais da IATA. Se fizermos as contas, os 640 milhões3 recebidos pela TAP para enfrentar a Covid-19 são cerca de 0,25% dos apoios, sendo que a TAP representa 0,38% do total de passageiros transportados no mundo (números 2019).

Que os primeiros e maiores apoios a fundo perdido tenham sido atribuídos nos EUA, salvando as suas companhias aéreas de uma falência certa, deveria abrir um pouco a perspectiva dos neoliberais lusos. Mas estes também têm resposta para este facto: nos EUA está certo, o apoio foi a empresas privadas.

E no fundo é mesmo só isso. Assumam-no.

Se os neoliberais pudessem, já tinha acabado o sector aéreo mundial?

Claro que não. Mas a TAP e a maioria das companhias aéreas do mundo já teriam acabado, primeiro privatizadas, depois reestruturadas e consolidadas, e por fim eliminadas.

«Que os primeiros e maiores apoios a fundo perdido tenham sido atribuídos nos EUA, salvando as suas companhias aéreas de uma falência certa, deveria abrir um pouco a perspectiva dos neoliberais lusos.»

Por cá, são colonizados mentais, apregoando uma ideologia produzida nos centros imperialistas, mas que estes recusam aplicar às suas próprias empresas. Principalmente nos – cada vez mais – sectores considerados estratégicos.

Uma ideologia, diga-se de passagem, que não destruiu apenas as capacidades cognitivas dos queques da IL. É a submissão a essa mesma ideologia que explica o comportamento do Governo PS, que avança para a privatização da TAP contradizendo tudo o que afirmou noutra situação política e tudo o que prometeu a quem o elegeu. Mas agora já estamos a falar desta estranha forma de democracia onde as pessoas são eleitas prometendo o socialismo e se acham legitimadas para fazer o oposto.

  • 1. Emprestar 3,2 mil milhões a uma empresa, a Gateway, sem qualquer património além da própria TAP, é a mesma coisa que dar 3,2 mil milhões. As garantias de recuperação são zero.
  • 2. «Understanding the pandemic's impact on the aviation value chain», December 2022
  • 3. Estará naturalmente o leitor a pensar: mas os apoios à TAP foram de 3,2 mil milhões. O que é verdade, mas... É que esses 3,2 mil milhões são o apoio à reestruturação, que incluem os 640 milhões pelas perdas Covid-19, cerca de mil milhões para cobrir o prejuízo acumulado da aventura da Manutenção Brasil, cerca de 500 milhões para limpar o passivo gerado pelas privatizações anteriores e cerca de mil milhões de sobrecapitalização para serem «vendidos» ao próximo comprador da TAP. Diga-se de passagem que estes 640 milhões de euros são o número calculado pela Comissão Europeia, e calculado por baixo. Não temos dúvidas que o valor justo seria mais perto dos mil milhões, o que colocaria a empresa no mesmo percentil face a apoios e peso no tráfego mundial.

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