Um dermatologista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, terá recebido 400 mil euros em dez sábados de trabalho suplementar em 2024. Por um único dia de trabalho, esse médico terá sido remunerado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) com mais de 50 mil euros.
A esta notícia na comunicação social, em 23/05/2025, seguiram-se depois outras dando conta de situações idênticas que se terão verificado noutras unidades de saúde do país.
Responsáveis do hospital e do Governo vieram de seguida a público esclarecer que essa situação ocorreu no contexto de um processo organizacional de recuperação de atrasos na realização de cirurgias denominado Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), vulgarmente designado como «produção adicional» de cirurgias no SNS, processo esse em que são pagos incentivos aos profissionais de saúde (em regra, uma equipa cirúrgica) para, em trabalho suplementar (fora do horário normal de trabalho), realizarem (mais) cirurgias, de forma a ser diminuída a lista de espera de doentes inscritos para esse acto médico.
Considerando que o regime em causa tem um suporte legal e regulamentar, após denunciadas publicamente tais situações pela comunicação social como indiciando eventuais fraudes, sendo lesado o SNS, o Governo e as próprias administrações dos hospitais garantiram já terem desencadeado inerentes auditorias, inspecções (por parte da Inspecção-Geral das Actividades de Saúde – IGAS). O próprio Ministério Público já informou ter aberto um processo inquérito-crime.
Mas, se é certo que ainda nada se sabe sobre as conclusões dessas auditorias, inspecções e inquéritos, resta desde já na opinião pública uma sombra de desconceituação ética sobre os profissionais de saúde e de desconceituação de gestão (des)organizacional do SNS ou, pelo menos, de algumas das suas unidades.
O título deste texto procura sintetizar precisamente este último aspecto.
«As empresas são os trabalhadores que as fazem».
Não é raro podermos ler no hall de entrada de algumas empresas de uma certa dimensão um cartaz com esta frase. Uma frase cujo sentido parece óbvio e elementar mas que pode ter várias leituras e reflexões que estas suscitam.
Desde logo a de que a sua aplicabilidade não se restringe às empresas, estritamente consideradas, mas a qualquer organização em que é realizado trabalho, inclusive a qualquer organização da administração pública e, neste caso, a qualquer serviço público.
Depois, por exemplo, quanto à situação que é mote factual deste texto, o raciocínio em que se poderá acabar por cair no caso de se concluir ter havido fraude é, de certo modo, um desvio do sentido literal dessa frase, visto que assim, considerando o prejuízo objectivo e subjectivo (a desconceituação) para o SNS que tal implicará, alguém poderá argumentar que, afinal, as organizações são os trabalhadores que as «desfazem».
É claro que tal eventual raciocínio sempre pecará por primário, na medida em que é descontextualizado do quotidiano trabalho empenhado, de qualidade e ética e deontologicamente irrepreensível de quase 150 000 profissionais de saúde, sendo médicos mais de, pelo menos, 50 000.
De qualquer modo, algo há a reflectir (e agir) sobre este risco e sua perspectiva.
No trabalho há sempre, para o bem e para o mal, uma íntima relação entre as condições (materiais, sociais, organizacionais) do exercício de qualquer profissão, a natureza (qualidade, prontidão, ética e deontologia profissional) desse exercício profissional e o resultado social que o trabalho nessa profissão visou.
Desde logo, o resultado perante colegas de local de trabalho ou mesmo, em geral, de profissão, visto que trabalhar é sempre «viver com os outros»**(havendo até quem, por concluir que já não pode trabalhar com os outros, deixa de lhe interessar viver), quer do ponto de vista organizacional e funcional, quer mesmo do ponto de vista relacional e social.
«No trabalho há sempre, para o bem e para o mal, uma íntima relação entre as condições (materiais, sociais, organizacionais) do exercício de qualquer profissão, a natureza (qualidade, prontidão, ética e deontologia profissional) desse exercício profissional e o resultado social que o trabalho nessa profissão visou.»
Depois, o resultado perante terceiros, em geral perante a sociedade, na medida em que da acção ou omissão no trabalho de cada um dessas componentes objectivas e subjectivas da natureza exigível desse trabalho (qualidade, prontidão, ética e deontologia profissional, repete-se), seja ele mais complexo ou menos complexo, mais qualificado ou menos qualificado, por mais individual e organizacionalmente individualizado que esse trabalho seja, há sempre, directa ou indirectamente, imediata ou diferidamente, consequências (boas ou más) para os destinatários do resultado desse trabalho, para os cidadãos em geral.
E isto é ainda mais evidente quando essa profissão se insere no âmbito de um serviço público (Saúde, Educação, Justiça, etc.), como é o caso do SNS, em que os cidadãos, as pessoas, para além destas condições, detêm também as de utentes/doentes e contribuintes.
De modo que na apresentação e debate público sobre o exercício de qualquer profissão, inclusive sobre as condições de trabalho nessa profissão (e no caso dos profissionais de saúde são publicamente conhecidas e reconhecidas as legítimas reivindicações profissionais sobre a valorização concreta da sua profissão, bem como sobre a melhoria das condições de trabalho), mormente se uma profissão associada a qualquer Serviço Público, é imprescindível que na forma e conteúdo dessa apresentação e debate seja clara a preponderância da íntima relação entre as condições (ou falta delas) de exercício desse trabalho com a natureza desse exercício e seu resultado para a sociedade.
Dito de outro modo, é imprescindível que nesse debate público também seja evidente a relação da natureza e qualidade (técnica, mas também ético-deontológica) do exercício dessa profissão com a garantia da essência da missão do serviço público em causa. Ou seja, da prossecução do interesse público. Público e não somente profissional (corporativo?), muito menos meramente pessoal.
A pertinência desta reflexão é acrescida quando a propósito de uma profissão tão humana e socialmente importante e responsabilizante como é a dos profissionais de saúde e, por esta, a propósito de um serviço público que é o principal esteio do Estado Social e, daí, da democracia: o Serviço Nacional de Saúde.
Pertinência, em especial, para os respectivos sindicatos e ordem profissional, dado que se assim não for, não é só a própria profissão que corre o risco de perder a ancoragem e suporte social (que esta, e em princípio qualquer outra, profissão merece) mas, mais grave do que isso, o próprio SNS.
Mas será que logo que haja conclusões definitivas sobre eventuais violações da ética médica ou deontológica, infracções disciplinares no trabalho ou mesmo prática de crime na situação em causa, virá a propósito, ainda que com base neste caso como excepcional, a conclusão de que as organizações (no caso, o SNS), se «são os trabalhadores que as fazem», também são os trabalhadores que as podem «desfazer»?
«É imprescindível que nesse debate público também seja evidente a relação da natureza e qualidade (técnica, mas também ético-deontológica) do exercício dessa profissão com a garantia da essência da missão do serviço público em causa.»
É possível. Mas tal também depende de até que ponto nesta situação e outras idênticas não houve, por acção ou omissão, falhas ou erros de organização, administração ou gestão que, de algum modo, (também) foram causa da emergência ou alimentação destas situações.
Causas estruturais, visto que, sendo certo que não se pode deixar de ponderar o facto de o SNS atravessar sérias dificuldades para dar resposta com qualidade e prontidão aos cuidados de saúde que lhe são solicitados, desde logo o facto de um serviço público carecer de trabalho suplementar por sistema para dar resposta aos direitos dos seus utentes é disso indício. Não apenas de um ponto de vista de Economia da Saúde mas, sobretudo, como já se escreveu noutro local, pelo prisma de que a sobre-intensificação do trabalho (em ritmo ou duração), mormente em profissões tecnicamente complexas e de grande responsabilidade humana e social como é o caso dos profissionais de saúde (e mormente em actos médicos complexos como são as cirurgias) projecta não só riscos profissionais (para os próprios profissionais de saúde) mas também sociais, públicos (para os próprios utentes, quanto à qualidade e segurança do trabalho/acto médico a realizar).
Causas conjunturais, na medida em que, tendo como exemplo o caso factual em análise, não é possível escamotear o questionamento de ter sido, ou não, garantida a prontidão, permanência e adequabilidade da atenção e acção da administração/gestão dadas às condições da definição, colocação em prática, monitorização e controle da execução do processo de «produção adicional» de cirurgias.
Sim porque, neste sentido, parafraseando a tal frase do título, também «os trabalhadores são as organizações que os fazem». Ou desfazem…
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