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Saúde privada: «Queres fiado? Toma!...»

Devemos considerar a recusa de tratamento da vítima de um acidente, acontecido no interior de um hospital privado, um acto desumano ou perverso dos agentes envolvidos?

CréditosInácio Rosa / Agência LUSA

O presente artigo não pretende fazer uma observação «macro» da Saúde em Portugal, mas antes uma análise «micro» de reacções individuais ou de grupo, reais ou fáceis de adivinhar, a propósito de um episódio em que os diversos agentes se movem no «ecossistema privado» que determina as suas regras e valores.

«o poder político das últimas décadas estendeu também esse ambiente [o «ecossistema privado»] a hospitais e unidades de saúde públicos onde, a cultura e objectivos «empresariais», foram sendo inoculados, afastando a lógica ligada aos direitos constitucionais de uma assistência universal e de qualidade prestada pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)»

Sublinhe-se que, quando falamos em «ecossistema privado», não nos referimos exclusivamente aos grandes grupos financeiros que dominam o mercado da prestação de cuidados de saúde.

Eles são, naturalmente, onde esses valores melhor se exprimem. Mas o poder político das últimas décadas estendeu também esse ambiente a hospitais e unidades de saúde públicos onde, a cultura e objectivos «empresariais», foram sendo inoculados, afastando a lógica ligada aos direitos constitucionais de uma assistência universal e de qualidade prestada pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Os factos (segundo a imprensa e a TV)

Uma mulher de 46 anos, que acompanhava um familiar, sofreu uma queda nas escadas rolantes de um hospital de um grande grupo privado do Norte (Trofa Saúde).

Segundo a descrição, a mulher «caiu de cabeça» tendo sofrido traumatismo craniano, lacerações profundas no nariz e na testa, e fractura de um punho.

«Provavelmente, mesmo um frio gestor do Grupo Trofa que encontrasse, na rua da sua aldeia, uma mulher a sangrar, faria tudo para lhe prestar assistência. Mas, no cargo que ocupa, a bondade desse gesto colide com os sacralizados valores de mercantilização da Saúde que a empresa lhe transmite»

Levada ao Serviço de Urgências desse mesmo hospital, a sinistrada foi aí observada por dois médicos que consideraram necessária a sutura das feridas, um exame radiológico do antebraço e uma TAC para excluir a existência de lesão intracraniana.

A conta foi avaliada em 600 euros, e, uma vez que a sinistrada não tinha seguro, foi comunicado a um familiar que ou pagava essa verba ou não havia tratamento para ninguém.

Como o familiar não quis ou não pôde pagar, a mulher ficou com as feridas abertas e o braço fracturado sem tratamento, a aguardar a ambulância que a «despejou» no Hospital de São João, do Porto (SNS), onde foi devidamente assistida.

O triste episódio, trouxe à memória cenas chocantes do filme Sicko de Michael Moore1, que retrata o desastre humanitário do «sistema» privado norte-americano:

Doentes envelhecidos e confusos, cobertos apenas com batas brancas – expulsos de um hospital privado por falta de financiamento – pairam, como fantasmas, numa rua frente a uma instituição de caridade, esperando que alguém os socorra.

É a lei do mercado, dirão alguns, convertidos à ideologia neoliberal do «cada um trata de si».

«O Grupo Trofa podia ter um seguro para cobrir acidentes nas suas instalações…»; «A queda foi dentro do hospital, mas é igual a ter acontecido na rua ou num shopping...» – foram alguns dos comentários, num chat das redes sociais só para médicos, mostrando a sua adaptação a uma medicina americanizada”, transformada em nova realidade.

Felizmente, a mulher que se feriu no hospital do Grupo Trofa estava em Portugal e tinha o SNS. Se não, teria de cozer as feridas em casa, com linha de costura, como mostram as imagens de abertura do Sicko, retratando o que se passa com os mais pobres na economia mais rica do mundo.

Ao contrário dos USA, onde a recusa de tratamento por falta de dinheiro é tão banal que não merece uma notícia, o episódio do hospital do Grupo Trofa deu origem a reacções de justificação e de crítica.

E são essas reacções que vale a pena analisar, já que definem uma visão preocupante das relações societárias que se querem estabelecer.

Insensibilidade individual ou uma questão de sistema?

Devemos considerar a recusa de tratamento da vítima de um acidente, acontecido no interior de um hospital privado, um acto desumano ou perverso dos agentes envolvidos?

Desumano, seguramente. Mas qual o grau de responsabilidade moral – individual ou colectiva – em causa?

Haverá uma incontornável degradação da alma, causada pelo desenvolvimento económico, tornando os profissionais de saúde menos sensíveis ao sofrimento humano, levando-os a afastarem-se da essência da sua profissão?

«Na medicina moderna, o médico passou a ser mais uma «peça» (qualificada) de uma engrenagem complexa e cara, onde, de forma directa ou indirecta – como nas formas de «uberização» do trabalho – funciona como um assalariado (mesmo que a recibo verde), que não controla as condições em que trata, quem trata e quanto cobra»

Os estudiosos do chamado «processo histórico», poderão dizer que, sobre o tema (conceitos, formas de produção e reflexos culturais), «está tudo dito» pelos que usaram o materialismo dialéctico na análise do desenvolvimento da sociedade humana em geral e a da produção (e moral) na sociedade capitalista, em particular.

Existe, de facto, um conhecimento adquirido da relação da infraestrutura produtiva e da maneira como esta condiciona a superestrutura cultural e as reacções individuais e colectivas num determinado momento histórico.

Talvez possamos, por isso, encontrar traços desses velhos ensinamentos na diminuição da empatia pelo «outro», fruto de um individualismo exacerbado pela forma de produção «empresarial» dos cuidados de Saúde.

É esse desvio comportamental, ligado aos valores morais desse sistema, que aflora no caso da mulher abandonada sem tratamento pelos diversos protagonistas do episódio do hospital do Grupo Trofa.

Voltemos, pois, a esse facto-pretexto: como e quem, nos diversos níveis da cadeia organizativa de um grande hospital privado, assumiu a recusa de tratamento à cidadã ferida nas suas instalações, por não ter pago, à cabeça, os 600 euros exigidos?

A primeira barreira poderia ter surgido na admissão à Urgência, vendo fechar-se, logo aí, o acesso ao tratamento, por falta de seguro ou de pagamento prévio, como garantia.

Mas poder-se-á condenar o funcionário do balcão, por desumanidade ou desprezo pela mulher ferida?

Na realidade, como empregado de um hospital privado, ele não se pode dar ao luxo de ser solidário com o seu semelhante sem pôr em risco o próprio emprego. As regras da empresa onde trabalha e as «leis do mercado» assim o obrigam.

É verdade que a frieza moral do «negócio é negócio» pode contaminar a consciência do modesto funcionário, interiorizando-o como se fosse um grande accionista.

Podemos encontrar quem use o pequeno poder do humilde lugar que ocupa, com a mesma arrogância de um mau patrão, agindo como um escravo que mimetiza as atitudes do seu senhor.

Esse paradoxo, tão típico dos dilemas da pequena burguesia, trespassa estratos e profissões, onde também se integram médicos, enfermeiros e administradores hospitalares, que vestem a camisola da «empresarialização» como se fossem os verdadeiros donos da empresa.

Certamente que, na consciência dos clínicos do hospital do Grupo Trofa, se debateu a vocação e obrigação, (com Juramento de Hipócrates e tudo…) de tratar a mulher ferida, e a impossibilidade de o fazer, por falta de poder e autonomia, devido às mesmas regras a que o funcionário do balcão está vinculado.

Também eles, provavelmente, não deixariam de assistir a ferida, se estivessem num pequeno consultório exercendo uma prática liberal cada vez mais esmagada pelas leis do «mercado» e pela evolução da medicina, que exige multidisciplinaridade e grandes investimentos.

Foi essa mudança da posse dos «meios de produção», ligada ao desenvolvimento (histórico e incontornável) da profissão, que determinou a marginalização do médico como profissional liberal – isolado, patrão de si próprio, dono dos instrumentos e das instalações, definindo as regras e a tabela remuneratória –, que ainda existe com uma expressão residual.

Na medicina moderna, o médico passou a ser mais uma «peça» (qualificada) de uma engrenagem complexa e cara, onde, de forma directa ou indirecta – como nas formas de «uberização» do trabalho – funciona como um assalariado (mesmo que a recibo verde), que não controla as condições em que trata, quem trata e quanto cobra.

É a progressiva «proletarização», num ecossistema «de empresa», que o sujeita à mesma lógica que o capital sempre usou com os verdadeiros proletários: cada vez maior exploração com maximização do lucro e diminuição dos direitos.

E foi nesse enquadramento que, segundo as notícias, a infeliz sinistrada foi atendida por médicos que, sem autonomia para lhe suturarem as feridas ou obterem os exames necessários, acabaram, mesmo que contra vontade, por deixar sem tratamento a mulher ferida.

Imaginando que foi perguntado à administração se a poderiam assistir pro bono, calcula-se que esta terá reagido como está habituada (e treinada) a reagir: também no business da Saúde não há almoços grátis para ninguém.

Seria aconselhável colocar nos gabinetes das administrações dos grandes grupos privados, o Zé Povinho de Bordalo Pinheiro com o lusitano manguito e o «Se queres fiado, toma!».

Uma «nova» hierarquia virada para a gestão

«Se queres conhecer o vilão, dá-lhe um bastão!», diz também o povo, retratando a mesquinha afirmação de poder dos que, mais próximos da base do que do topo, invejam e copiam os hábitos dos que verdadeiramente mandam.

«os médicos [...] viram o seu poder (por vezes abusivo e autoritário) diminuir com a menorização dos objectivos clínicos, enquanto se multiplicavam administradores cheios de superioridade moral, formatados com uma ilusória noção de «produção» e de «lucro», tendo no bolso o cartão do partido no poder»

Nem todos os administradores hospitalares seguem esse esdrúxulo caminho. Individualmente, são numerosas e notáveis as excepções. Conheci muitas, na minha carreira profissional. Que este juízo crítico a alguns não seja interpretado como uma visão sectária ou corporativa, porque o fenómeno é tão transversal que também não poupa, naturalmente, os médicos. Mas estes viram o seu poder (por vezes abusivo e autoritário) diminuir com a menorização dos objectivos clínicos, enquanto se multiplicavam administradores cheios de superioridade moral, formatados com uma ilusória noção de «produção» e de «lucro», tendo no bolso o cartão do partido no poder.

Nessa «ascensão social», promovida pelos ideólogos do «mercado» e do «empreendorismo», os administradores hospitalares – principal alvo da crítica de médicos e outros profissonais que, erradamente, os confundem com o verdadeiro poder – são apenas «eles e a sua circunstância», como diria Ortega y Gasset.

Com os novos galões nos ombros, aceitaram, acriticamente, a agressão de políticas «austeritárias», como as dos governos do «arco do poder» e da troika, gerindo-as com zelo, sem reagirem aos ataques ao SNS, quando, pelo lugar que ocupam, tinham particulares responsabilidades de o fazer.

Claro que, quando se analisa a postura individual de cada profissional, há de tudo, como na farmácia.

As entorses comportamentais com maior expressão colectiva, são, por isso, problemas «ambientais» (como também se diz na ciência médica), sofrendo mutações por influência do caldo de cultura ideológica em que estão submersas.

Provavelmente, mesmo um frio gestor do Grupo Trofa que encontrasse, na rua da sua aldeia, uma mulher a sangrar, faria tudo para lhe prestar assistência. Mas, no cargo que ocupa, a bondade desse gesto colide com os sacralizados valores de mercantilização da Saúde que a empresa lhe transmite.

É essa a lógica natural do «sistema», que se repete em situações mais gravosas (pouco publicitadas), como a interrupção do tratamento de doentes cancerosos, quando o custo atinge o tecto assegurado.

Na realidade, só não existem os fantasmas do Sicko em Portugal, porque a Constituição e o SNS tomam conta de todos, mesmo que não tenham seguro nem dinheiro.

E é esse papel que a direita quer reservar para o serviço público. Tratar dos pobres. Os outros que se amanhem com dinheiro próprio ou (principalmente) com os fundos retirados ao SNS para sustentar os grupos financeiros que investem na Saúde atirando fora a gente que não lhes convém.

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