|Manuel Gouveia

Quem é o responsável pela ilegalidade que levou a indemnizar os tripulantes da TAP?

A resposta à pergunta acima colocada exige alguma introdução à matéria que está aqui a ser abordada.

CréditosJosé Coelho / Agência Lusa

Todos saberemos – porque o assunto tem sido destacado na comunicação social – que a TAP foi condenada a pagar 300 milhões aos seus tripulantes de cabine pois perdeu todos os recursos, incluindo no Tribunal Constitucional. Mas além da preocupação da dita Comunicação Social que isso possa prejudicar a privatização da TAP, pouco mais saberemos do tema. 

Antes de mais, a TAP não foi condenada a pagar 300 milhões, como têm titulado vários órgãos de comunicação social. A TAP perdeu um processo laboral cujo conjunto das indemnizações a pagar pode atingir os 300 milhões (vamos usar este número, apesar dele estar provavelmente empolado, como é normal nestas situações). A decisão judicial aborda dois temas, que se entrecruzam: a forma de contratação dos tripulantes de cabine desde 2006; os despedimentos realizados na TAP em 2020, primeiro por David Neeleman e depois pela UE e o Governo PS quando impuseram uma reestruturação da TAP para que esta pudesse receber os apoios covid.

A TAP, quer enquanto empresa pública, quer enquanto empresa privada, mantinha uma prática, errada e ilegal, de contratar os tripulantes através de contratos a termo, quando na realidade esses trabalhadores eram contratados para lugares no quadro de efectivos. Essa prática, ilegal como os Tribunais agora deixaram claro, acontece em muitas empresas, e funciona como um segundo período experimental. Durante anos tal não teve implicações muito grandes pois a prática era relativamente aceite, acabando por conduzir ao fim de uns anos à integração nos quadros da TAP, apesar de gerar um período de quebra de remuneração aos trabalhadores. Facilitou esse processo que a TAP tratasse a generalidade desses contratos a prazo como efectivos, não utilizando a precariedade do vínculo para promover despedimentos colectivos encapotados (e o facto de os Tribunais terem algumas vezes negado provimento às poucas mas justas reclamações entretanto apresentadas).

Só que quando a covid se abateu sobre a empresa (e todas as empresas do sector à escala mundial), a TAP (então sobre gestão privada) tirou as luvas e despediu todos esses trabalhadores (cerca de 700) que apesar de estarem a prazo viviam na convicção de serem tratados como efectivos. Despediu sem despedir: não renovou os contratos a prazo, apoiando-se na letra dos contratos, mas na realidade rompendo o compromisso com os trabalhadores. Não foi caso único, nem no sector público nem, principalmente, no sector privado. É esta decisão que vai originar o recurso massivo aos tribunais pelos tripulantes despedidos. Uma decisão da gestão privada da TAP (caucionada pelo Governo do PS), mas cujos custos não vão ser imputados a David Neeleman, mas sim ao povo português. 

«A TAP, quer enquanto empresa pública, quer enquanto empresa privada, mantinha uma prática, errada e ilegal, de contratar os tripulantes através de contratos a termo, quando na realidade esses trabalhadores eram contratados para lugares no quadro de efectivos.»

O facto de alguns trabalhadores terem ganho o processo, e ter ficado jurisprudência sobre a ilegalidade da actuação da TAP ao contratar estes trabalhadores a prazo, tem múltiplas implicações: se eram efectivos não podiam ser despedidos sem processo disciplinar ou despedimento colectivo, e como tal foram ilegalmente despedidos os 700 que viram os seus contratos a prazo não renovados, e podem agora exigir o regresso à empresa e a devida indemnização; todos os trabalhadores que passaram pela situação (o sindicato aponta para mais 2000) de serem contratados ilegalmente a prazo podem agora avançar com processos em tribunal para serem justamente indemnizados, pois durante o tempo em que estiveram falsamente contratados a prazo recebiam por uma categoria inferior à devida. 

Quando dizemos que a TAP vai pagar duas vezes esta decisão é porque o próprio despedimento não se justificava. E isso foi dito na altura. Foi dito na altura que o plano de reestruturação assentava em pressupostos errados, alarmistas, e que a recuperação da actividade era expectável acontecer muito antes do que estava a ser projectado. («É assim lícito esperar que nos próximos dois anos o sector possa recuperar, no essencial, os níveis de procura de 2019. Falamos da necessidade de um programa de apoios à TAP para 3 anos, incluindo o ano de 2020. Esta definição temporal é fundamental. São necessários, por isso, apoios para manter o nível de emprego e suportar os custos com a frota, por mais dois anos, num quadro de progressiva retoma da actividade da companhia.1») Tal como foi dito que a solução não era despedir trabalhadores que rapidamente fariam falta, mas sim encontrar mecanismos para fazer face a essa temporária redução da procura. («Manutenção da actual força de trabalho com os níveis de resposta operacional necessários num sector como o da aviação. O facto de o sector durante três anos ter uma produção inferior cria naturalmente a necessidade conjuntural de reduzir a utilização da força de trabalho (designadamente acabando com o trabalho extraordinário e reduzindo horários de trabalho)2».

E isso foi exactamente o que aconteceu. Com a retoma da procura, a TAP encontrava-se com trabalhadores a menos e com aviões a menos. E isso custou muitos milhões à TAP e criou o pandemónio que criou, em 2022. E o mais grave é que a redução de trabalhadores foi uma imposição  à TAP, não resultou de qualquer pedido desta. Uma imposição à TAP, que esta pagou quando ficou com trabalhadores a menos e que esta vai pagar quando tiver de pagar as justas indemnizações aos trabalhadores despedidos. E que vai pagar muito acima do que «poupou», pois vai pagar com juros, suportando custas judiciais, gastando milhões com gabinetes de advogados, pagando os salários não pagos e ainda as justas indemnizações aos trabalhadores.

Mas ainda há um terceiro factor a ter em conta nesta questão. A TAP já constituiu uma provisão de 47 milhões de euros nas contas de 2024 para fazer face a estes processos. Ora, uma provisão é como pôr de lado uma verba, que fica na companhia para fazer face a uma responsabilidade futura, mas é retirada ao resultado líquido. Ou seja, a TAP teve um lucro real de 100,7 milhões em 2024, mas anunciou 53,7 milhões porque já deixou de lado esses 47 milhões. 

«Tudo isto nos mostra o que sistematicamente está errado com a TAP: uma gestão que, quando pública, imita o pior da gestão privada»

Se o valor das indemnizações a pagar aos trabalhadores da TAP fosse de 300 milhões, o que faltaria retirar do activo já só seriam 253 milhões (e não 300 milhões). Aliás, é provável que este ano seja novamente colocada uma provisão similar ou mesmo maior, reduzindo o lucro real ou mesmo criando uma falsa situação de prejuízo nas contas de 2025. Quando na realidade a TAP está, mais uma vez, a pagar os custos de decisões políticas erradas tomadas por PS, PSD, CDS, IL e CH. Sim, porque quando o PCP apresentou o PJR já citado, foi chumbado por todos estes actores. Os mesmos que querem vender a TAP.

Tudo isto nos mostra o que sistematicamente está errado com a TAP: uma gestão que, quando pública, imita o pior da gestão privada (a ilegalidade de contratar a prazo trabalhadores para postos de trabalho efectivo é uma prática das piores empresas privadas que deveria ser, por acrescidas razões, banida do Sector Empresarial do Estado); uma gestão que enquanto privada cria os compromissos que o Estado terá um dia de pagar; uma tutela política ajoelhada perante os ditames da UE que há muito decidiu que o futuro da TAP é ser assimilada pelas multinacionais do sector ou destruída. É tempo de a TAP ter uma gestão pública democrática e transparente, tal como deveria acontecer com todo o SEE.

  • 1. PJR 837/XIV/2 do PCP, de 6 de Janeiro de 2021
  • 2. PJR 837/XIV/2 do PCP, de 6 de Janeiro de 2021

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