O Governo anunciou o quarto processo de privatização da TAP. Rapidamente, um senhor chamado Camilo Lourenço veio mandar o soundbite que importa colocar em cada tasca, e nele formar cada doutor desse verdadeiro templo da ignorância que é qualquer escola onde o Camilo ensine: «Vender ontem já era tarde».
Esqueceu-se o Camilo que a TAP já foi vendida ontem. Pois. Há muitos ontens, aliás. Foi vendida em 1998 à Swissair. Que abriu falência. E ia levando a TAP consigo. Foi por um pêlo (daqueles que abundam na cabeça dos camelos).
Esqueceu-se ainda o Camilo, ou melhor, quis que nós nos esquecêssemos, que a TAP também já foi vendida noutro ontem, em 2015. Que foi vendida a um espertalhaço que a comprou com o pêlo do próprio cão, como ficou exposto perante todo o país na CPI [comissão parlamentar de inquérito] à gestão política da TAP em 20231. Um espertalhaço que, depois de ganhar umas centenas de milhões de euros, se pôs ao fresco deixando a companhia falida aquando da crise no sector aéreo provocada pela pandemia.
Quer o Camilo que nos esqueçamos que, das duas vezes que foi vendida, a TAP foi destruída e teve de ser salva pelo Estado. Ou seja, o que o Camilo acha é que não devia existir uma TAP. E é esta a douta ignorância que o Camilo vende, porque o Camilo é esperto e sabe que esta é a ignorância que serve a quem (lhe) paga bem.
A ignorância que o Camilo vende é aquela que não quer saber que a TAP SA é lucrativa ao longo de todo este século, que deu lucro quase todos os anos, e que os maiores prejuízos aconteceram... no período em que esteve privatizada. Como pode ser comprovado por quem quiser nos Relatórios e Contas da TAP SA, que são públicos. Claro que lá na tasca, um doutor da mula russa, se calhar a esta hora já deputado do Chega, armado em Camelo diria imediatamente «Relatórios e Contas? Livros? Propaganda! Fake news! Deixem-se de mentiras, o povo não lê Relatórios e Contas! Toda a gente sabe que a TAP dá prejuízo!».
«Quer o Camilo que nos esqueçamos que, das duas vezes que foi vendida, a TAP foi destruída e teve de ser salva pelo Estado. Ou seja, o que o Camilo acha é que não devia existir uma TAP. E é esta a douta ignorância que o Camilo vende, porque o Camilo é esperto e sabe que esta é a ignorância que serve a quem (lhe) paga bem.»
O Camilo também vende aquela ignorância que diz que é indiferente a TAP ser pública ou privada, nacional ou estrangeira. Virgens de todo o conhecimento científico, recusam-se a tomar conhecimento das estatísticas da Segurança Social, que nos informam que a TAP pagou 1,4 mil milhões de euros à Segurança Social portuguesa nos mesmos dez anos em que a Ryanair (com o mesmo volume de passageiros transportados) pagou 40 milhões. Educados na capacidade de reduzir a actividade cerebral à de uma rocha, professor e alunos chegam ao doutoramento sem reflectir sobre a importância para o país de 4% do seu PIB, do seu maior exportador de serviços, da dinâmica criada por uma empresa desta dimensão, da riqueza criada pelos 600 milhões de salários directos pagos, pelos 20 000 postos de trabalho gerados, etc. Avessos à matemática e incapazes de usar um simples ábaco, recusam-se a fazer as contas de quanto teria custado ao país deixar falir a TAP, e repetem o seu mantra «recuperar o dinheiro dos contribuintes», quando o dinheiro dos contribuintes é recuperado cada dia em que a TAP pública opera, e dá lucro, e paga impostos, e cria riqueza em Portugal.
Sacerdote no maior templo à ignorância, Camilo sabe que pelos buracos das agulhas não passam nem ricos nem camilos. Mas está do lado que paga bem... Porque a ideologia neoliberal não resolve um problema ao país, mas ajuda os muitos ricos a viver muito melhor e a serem muito mais ricos. E há quem viva para ver a felicidade do dono.
«Já ontem era tarde!», é uma frase que vale para muita coisa. Por exemplo, para um não menos exasperado «Deixem a TAP em paz, já ontem era tarde!», que teria muito mais validade, pois desde há 30 anos que o único projecto dos sucessivos governos para a TAP é... privatizá-la. Foi esse o projecto de Guterres em 1998, de Sócrates nos PEC, de Passos Coelho em 2012 e 2015, de António Costa assim que se sentiu à vontade para tal, e agora de Luís Montenegro. E detrás destes nomes, o PS, o PSD, o CDS, a IL e o CH.
Que agora já começaram a simular uma severa discussão entre eles, sobre se estão a vender a TAP toda já, ou toda mas por partes ou só uma parte de cada vez. Como se fosse diferente! Quando no fundo estão todos de acordo, sem o PS ou o CH a TAP não estaria toda a ser privatizada como está, e todos se submetem à ideologia neoliberal, na sua versão de esquerda, de direita, queque ou grunha: e todos repetem «a TAP só sobrevive se for privatizada».
Quando bastava ter estado cá nos últimos 30 anos para perceber que a TAP só sobrevive enquanto pública. Mas aquela cáfila neoliberal na Assembleia da República não quer perceber!
- 1. Para quem já esqueceu, a TAP foi «comprada» com o dinheiro que a Airbus ofereceu a David Neeleman de comissão pelos aviões que a TAP iria comprar depois de David Neeleman comprar a TAP. Comissão que a TAP pagou e continua a pagar.
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