Só os mais ingénuos esperariam um programa diferente. Durante a campanha, a AD disse ao que vinha e o Programa de Governo espelha exactamente aquilo que estava contido no seu programa eleitoral - a linha de continuidade do governo PSD/CDS-PP/Troika.
Nas várias áreas, fica patente o retrocesso e a satisfação das vontades dos grandes grupos económicos. Naturalmente que a avaliação deve ser mais aprofundada, mas uma análise preliminar consegue logo identificar as opções contidas num programa assente no ataque aos direitos do povo e dos trabalhadores e nos benefícios dados ao grande capital.
Trabalho
O ponto sobre os salários e o trabalho é onde se torna mais claro a quem serve o Governo. O grande capital revanchista, não satisfeito com tudo o que o governo de maioria absoluta do PS lhe dava, viu neste novo Governo a maneira de ver vingadas todas as suas pretensões.
O Governo liderado por Luís Montenegro, ao longo do documento, sempre que aborda aumentos de salários (tanto do mínimo, como do médio) opta por alimentar a narrativa falaciosa da produtividade, dando a entender que os rendimentos só podem ser aumentados se esta última aumentar. A realidade desmente essa narrativa, até porque é facil comprovar que a produtividade tem aumentado e os salários não têm acompanhado esse mesmo ritmo.
Assim como o PS, o Governo compromete-se com um Salário Mínimo Nacional de 1000 euros em 2028. Ou seja, colocar daqui a quatro anos o mesmo valor que actualmente é já praticado em Espanha. É por via do SMN que o Governo instrumentaliza a aproximação ao Salário Médio como se tal não fosse culpa dos ataques à legislação laboral e da caducidade da contratação colectiva.
É neste sentido que o Governo é mais vocal na satisfação dos interesses do grande capital. Pegando nos baixos salários, instrumentalizando as reivindicações dos trabalhadores, e conjugando estes elementos com a composição do tecido empresarial português (constatando que as micro-empresas representam 90% do mesmo), o Governo abre a porta à revisão da legislação laboral.
Diz o Programa de Governo que o tecido empresarial «está fortemente dependente das convenções coletivas de âmbito profissional e de sector de actividade» e que «a legislação laboral continua firmemente ancorada nos modelos tradicionais de trabalho, tendo dificuldade em enfrentar os desafios do trabalho na era digital». A vontade é evidente.
A questão vai mais longe. O Programa de Governo diz que «a Concertação Social, parceiro imprescindível de qualquer acção governativa na área social e laboral, não tem sido adequadamente valorizada nos últimos anos», não diz é para quem.
Fica tudo claro quando o Governo apresenta uma proposta desenhada pela CIP: «Aumentar a produtividade com medidas como a isenção de contribuições e impostos sobre prémios de produtividade por desempenho no valor de até 6% da remuneração base anual (correspondendo, dessa forma, a um 15º mês, quando aplicado), até à diminuição da carga fiscal sobre as empresas».
Importa recordar que esta foi a proposta apresentada pelo patronato aquando da renegociação do Acordo de Rendimentos no passado ano. O Governo assume assim que é um mero fantoche do patronato e está pronto para fazer tudo o que for necessário para intensificar a exploração de depauperar o Estado com os benefícios fiscais às grandes empresas.
Habitação
Mais uma vez, o Governo diz ao que vem. Certo é que o programa «Mais Habitação» não dava as respostas necessárias ao problema em questão, mas o revanchismo do Governo fica bem espelhado neste campo.
«A aposta ideológica em medidas restritivas que limitam e colidem com o direito de propriedade, que colocam uns contra outros, que limitam a iniciativa económica privada, que reduzem o investimento privado e cooperativo, e que apostam em exclusivo em promessas falhadas de Habitação Pública, deixam o Estado sozinho e incapaz de garantir um impulso ao mercado de habitação que garanta o acesso para todos», pode ler-se no Programa, sobre o «Mais Habitação». Nunca é dito que satisfazia grande parte das reivindicações dos grandes proprietários.
Se relativamente ao Turismo, o Governo diz que irá «eliminar de imediato a Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local, a caducidade das licenças anteriores ao programa Mais Habitação, e revendo simultaneamente as limitações legais impostas pelo Governo socialista», sobre a Habitação é prometida uma «injecção no mercado, quase-automática, dos imóveis e solos públicos devolutos ou subutilizados; a criação de um «regime Excepcional e temporário de eliminação ou Redução dos Custos Tributários em obras de construção ou reabilitação em imóveis destinados a habitação permanente»; e a criação de uma «programa de Parcerias Público-Privadas para a construção e reabilitação em larga escala».
O Governo procura mais uma vez satisfazer os interesses dos grupos económicos, colocando o Estado a oferecer tudo e mais alguma coisa. A solução da direita passa por borlas fiscais, subsidiar com dinheiros públicos os interesses privados e oferecer tudo o que possa oferecer para agradar os interesses grandes interesses do sector imobiliário. Não deixa de ser curioso que as palavras «especulação imobiliária» nunca aparecem no documento.
Educação
Aquando da apresentação da composição do Governo e da sua urgência, ficou patente o desrespeito pelo sector da Educação, acabando com o Ministérios da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, integrando-o no Ministério da Educação, Ciência e Inovação, e nem lhe conferindo uma Secretaria de Estado.
Ao ler o Programa de Governo entende-se que o foco passará por reduzir o financiamento público às Instituições de Ensino Superior: «A estratégia de diferenciação do sistema de ensino superior deve ser aprofundada através do reforço da sua autonomia e da diversificação das fontes de financiamento».
Naturalmente que transferindo a sua responsabilidade para os grandes grupos económicos não é necessário nem um ministério nem uma secretaria de Estado. A visão de mercantilização do Ensino Superior é bastante óbvia. Prevê o Governo «encorajar a participação de representantes do setor empresarial nos conselhos consultivos das instituições de Ensino Superior e de Investigação»; «avaliar o reforço dos incentivos fiscais para empresas que investem em programas de I&D em parceria com instituições de Ensino Superior»; «potenciar o regime de mecenato às instituições de ensino superior públicas; e «fomentar a criação de cátedras de índole empresarial que promovam uma forte ligação entre a Instituição de Ensino Superior e de Investigação e as empresas».
Ainda na área da Educação, mas na questão da Escola Pública, o desrespeito pelos docentes é notória. Se por um lado há a promessa da «recuperação integral do tempo de serviço perdido dos professores, a ser implementada ao longo da Legislatura, à razão de 20% ao ano», em nenhum ponto há uma promessa clara de melhoria dos rendimentos dos mesmos.
A AD promete sim, instrumentalizado as revindicações dos docentes, «criar uma dedução em sede de IRS das despesas de alojamento dos professores que se encontrem deslocados a mais de 70 km da sua área de residência» e criar um «programa de emergência para atrair novos Professores» que passa por «promover as horas extra dos professores, de forma temporária e facultativa».
Saúde
Mais uma vez nada de novo já que o que se encontra no Programa do Governo já se encontrava no programa eleitoral da AD. Ardilosamente, várias são as referência a um «Sistema Nacional de Saúde», uma forma de esvaziar o Serviço Nacional de Saúde e integrar os grupos de saúde privados na definição de políticas públicas.
Nunca surge um compromisso com a real resolução do Serviço Nacional de Saúde, mas é dito que só «uma a articulação entre toda a capacidade instalada no Sistema de Saúde conseguirá responder às necessidades em saúde de forma eficaz, eficiente, previsível e sustentável». A tal articulação passará por manter os problemas estruturais do SNS enquanto os negócios privados da doença recebem subsídios para realizar aquilo que poderia ser realizado pelo Público.
Neste sector o Governo foge a medidas concretas de resposta ao SNS e apresenta uma promessa abstrata: «Propor o Plano de Emergência do SNS e o seu modelo de implementação, nos primeiros 60 dias do mandato. Este plano de emergência visa garantir que os tempos máximos de resposta são garantidos, para consultas de especialidade, e cirurgias e meios complementares de diagnóstico e terapêutica».
Sobre as reivindicações dos profissionais, o Governo apenas promete «criar um Plano de Motivação dos Profissionais de Saúde, de forma a valorizar autonomamente todos os recursos humanos envolvidos na prestação dos cuidados de saúde às pessoas, em especial no SNS», mas nunca diz o que é esse Plano.
O Programa de Governo é um verbo de encher.
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