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|Educação

Para que serve a escola?

A escola não é, como muitas vezes se diz, uma mera preparação para a vida. Bastaria cada um recuar aos seus tempos de infância e adolescência para recordar que, nesses anos, a escola é, em si mesma, a própria vida. 

Créditos / essentialbaby

O regresso às aulas pós-confinamento, em Setembro, foi um marco importante no contexto da pandemia em que vivemos. Foi a superação de um período conturbado, um bálsamo para as famílias porque permitiu olhar para o futuro e o regresso a algum grau de «normalidade» ainda que assente numa nova percepção da vida e do mundo.

Para a reabertura do ano lectivo acontecer, falou-se muito de máscaras, de distanciamento social, de gestão de espaços, de orientações, de medidas sanitárias e regras. Falou-se sobretudo de «regras» e muito pouco de quem as tem que cumprir e fazer cumprir.

Falou-se pouco de como o confinamento conduziu a sentimentos de distanciamento da comunidade escolar e de como restabelecer o sentido de pertença dentro da escola pode levar tempo, tanto para alunos como para professores e funcionários.1

«A história conta-se rápido e passou-se numa escola de Rio de Mouro, em Sintra: um dos alunos suspensos justificou a partilha do lanche porque um colega "tinha fome e não comia nada desde manhã"»

Falou-se pouco da importância, a nível estratégico, de professores e assistentes operacionais das escolas se sentirem confiantes, preparados e apoiados pelas entidades competentes, mesmo que padeçam, como seria normal, de alguma ansiedade. Falou-se pouco do stress e das perdas (financeiras, sociais, emocionais) que atingiram inúmeras famílias e de como as questões do bem-estar pessoal e colectivo e das condições de trabalho são tão importantes quanto as regras sanitárias.

E desperdiçou-se a oportunidade para reflectir sobre valores, objectivos e colocar a pergunta que o confinamento e o ensino à distância fizeram emergir: afinal, para que serve a escola?

Um mês volvido desde a reabertura do ano lectivo surge a notícia de que a escola também serve para resignificar o verbo «partilhar», dar-lhe uma conotação negativa, e suspender um aluno de 12 anos (na verdade, foram 4 alunos) por ter partilhado o lanche com colegas.

A história conta-se rápido e passou-se numa escola de Rio de Mouro, em Sintra: um dos alunos suspensos justificou (através do encarregado de educação e, depois, publicamente) a partilha do lanche porque um colega «tinha fome e não comia nada desde manhã».

A directora da escola refutou que a partilha tenha sido um «acto de generosidade» e defendeu que foi uma acção motivada pelo facto do jovem ser repetente, dizendo: «Está numa turma onde não conhece ninguém, pelo que no intervalo procura a companhia de colegas de outras turmas, seus colegas do ano passado, algo que este ano tem que ser rigorosamente evitado, mas que ele já ignorou por diversas vezes e por diversas vezes foi alertado. Não mudou de atitude. Também foi já alertado para que quando comesse, sem máscara, claro, deveria afastar-se do grupo, algo que ele repetidamente ignora».

Independentemente das motivações para o lanche – solidariedade, solidão ou um misto de ambas –, suspender da escola alunos por partilharem comida será uma medida justa e proporcional? Será para punir desta forma que a escola serve?

«Enquanto os problemas verdadeiramente críticos não são atendidos, é fácil fugir do essencial e punir miúdos por partilharem comida»

Sabemos que vivemos sob a ameaça de um vírus que se pode propagar, também, na comunidade escolar. Sabemos que as escolas estão obrigadas a respeitar as directrizes que garantem a segurança dessa comunidade e sabemos também que, demasiadas vezes, não têm sequer os meios e os recursos mínimos para o fazer: vejam-se as escolas com alunos a mais, confinados em salas sobrelotadas, e professores e assistentes operacionais a menos, em stress, assoberbados de trabalho, sem condições de trabalho condignas.

Mas sabemos também que pequenos e (grandes) poderes estão a ser accionados no nosso quotidiano sob o falso pretexto da saúde pública e segurança sanitária. E enquanto os problemas verdadeiramente críticos não são atendidos, é fácil fugir do essencial e punir miúdos por partilharem comida.

Rio de Mouro não será caso único, é apenas exemplo da insanidade e do perigo daquilo que se anda a pedir a crianças e a jovens. Pede-se, no fundo, que sejam um pouco menos humanos, que abdiquem de elementos estruturantes daquilo que fomos construindo durante milénios e nos qualifica enquanto humanidade como a interacção social, a capacidade, a necessidade, o desejo de nos relacionarmos uns aos outros. Pede-se que não vivam a escola como o espaço de relações que é, e que pratiquem uma total inversão das relações humanas, não partilhando o que têm. Pede-se tudo isto e quando não acatam, pune-se.

Certamente que a directora procurou ser dissuasora da repetição daquele comportamento, mas a que preço, com que legitimidade, e com que eficácia? Para onde nos levam os caminhos construídos por uma escola assim?

A escola não é, como muitas vezes se diz, uma mera preparação para a vida. Bastaria cada um recuar aos seus tempos de infância e adolescência para recordar que, nesses anos, a escola é, em si mesma, a própria vida. Uma parte fulcral das referências e experiências de crianças e jovens está alojada naquele espaço – do qual por causa da pandemia estiveram ausentes durante meses e ao qual voltaram há um mês em condições muito diferentes das habituais.  

«Não haveria uma forma mais pedagógica de sensibilizar aqueles jovens para a importância de certos comportamentos? Não pode a escola ser capaz de oferecer mais?»

Várias recomendações de resposta aos desafios do regresso às aulas pós-confinamento apontam para que se possibilite que os alunos passem algum tempo em ambientes familiares para restabelecer o envolvimento com a escola e com a aprendizagem. A procura daquele aluno de Rio de Mouro pela sua «tribo» nos intervalos é uma tentativa intuitiva de retomar a sua normalidade. A escola não compreender esta necessidade e punir impedindo o jovem de entrar na escola, o seu lugar de pertença, é deprimente.

A desobediência daqueles jovens a uma norma que lhes é imposta e a qual têm dificuldade de acatar – porque é tão contra a sua/(nossa?) natureza – deixa vislumbrar um inspirador e esperançoso vestígio da humanidade que os «adultos na sala» estão a perder: quando diabolizamos (uso a terceira pessoal do plural para nos responsabilizar a todos) um comportamento natural, quando apontamos o dedo a miúdos de 12 anos que partilham comida e bebida, quando nos indignamos por jovens de 12 anos se comportarem como jovens de 12 anos, quando queremos que a escola deixe de ser um estabelecimento de ensino para assumir funções de estabelecimento penitenciário onde os alunos têm de cumprir regras por razões de saúde pública – que, em muitos casos, cessam logo que saem dos portões ao entrar nos transportes públicos onde não existe distanciamento, por exemplo.

Questiono se não haveria uma forma mais pedagógica de sensibilizar aqueles jovens para a importância de certos comportamentos sem ser com um subjacente «não podes ir lanchar com os únicos amigos que tens nesta escola!»? Têm 12 anos e estão há meses a ouvir tudo o que não podem fazer. Não pode a escola ser capaz de oferecer mais?2

Não haveria uma forma da escola permitir que o aluno que repetiu o ano pudesse ter alguns momentos de convívio e de lanche, de uma forma segura, com os outros colegas sem o obrigar a esgueirar-se à socapa nos intervalos?

Não haveria uma forma de construir uma solução conjunta que não tivesse que terminar numa medida disciplinar de suspensão quando as aulas tinham começado há menos de um mês?

Não se exigiria mais empatia da parte da direcção da escola para com um aluno que também estará, ele próprio, a lutar para se adaptar a uma nova condição?

Não se exigiria uma investigação no sentido de perceber se a partilha de lanche ocorreu mesmo pelos motivos indicados pelo aluno – a fome de um colega que nada comia desde manhã? Crianças e jovens com fome em Portugal não deveria fazer soar todos os alarmes?

E, por fim, onde está o Ministério da Educação neste caso concreto? Até ao momento em que escrevo estas linhas não se conhece qual o posicionamento face a esta medida disciplinar. É considerada justa e proporcional? Ou houve abuso de poder e faria sentido aproveitar a situação para fazer alguns esclarecimentos e recomendações de boas práticas para futuros casos?

Platão dizia que o propósito da escola é criar bons cidadãos, sugerindo que mentores gentis poderiam ajudar os alunos a tornarem-se bons cidadãos. A referência é antiga mas talvez fosse proveitoso que todos aqueles que trabalham em educação se auto-questionassem de quando em vez: «Afinal, para que serve a escola?». Era esta a pergunta que gostaria de fazer à directora da escola de Rio de Mouro, em Sintra, que suspendeu por um dia um aluno de 12 anos por ter partilhado o lanche com os colegas.

  • 1. Documentação produzida em vários países, incluindo Portugal, faz este diagnóstico aqui e aqui
  • 2. Por todo o mundo multiplicam-se, por exemplo, iniciativas e recursos pedagógicos a partir das vozes dos próprios jovens que sensibilizam para a pandemia e cuidados necessários sem os infantilizar, aqui.

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