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Os picos na mortalidade – reflexões que se impõem

Os dados não dão suporte à campanha mediática da generalidade dos meios de comunicação social, com a dedicação de mais de metade de programas informativos ao tema Covid-19.

CréditosSteffano Cavicchi / EPA

O Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgou no dia 2 de Outubro, uma informação àcomunicação social sob o título «A mortalidade em Portugal no contexto da pandemia Covid-19». Surpreendentemente ou não, a nota não teve grande destaque nos principais meios de comunicação social.

Neste documento, o INE dá conta do aumento de mortalidade, registado em Portugal, entre 2 de Março e 20 de Setembro do presente ano, por comparação, com o período homólogo, nos últimos cinco anos.

De acordo com o INE, «entre 2 de Março, data em que foram diagnosticados os primeiros casos com a doença Covid-19 em Portugal, e 20 de Setembro, registaram-se 64 105 óbitos em território nacional, mais 7144 óbitos do que a média, em período homólogo, dos últimos cinco anos».

O INE optou por realizar este estudo por comparação com os períodos homólogos dos últimos cinco anos, mas poderia ter estendido o termo de comparação. Mesmo que se compare os dados do presente ano com os dados dos últimos dez anos o resultado será o mesmo.

Portugal enfrenta, no ano de 2020, um pico de mortalidade. Esta informação poderia ser recebida com relativa normalidade considerando que se vivem tempos atípicos com a propagação de um vírus novo que carrega a responsabilidade do encerramento de grande parte das actividades económicas e sociais em muitos países do mundo, mas a informação do INE não nos diz apenas que vivemos dias de anormal número de mortalidade.

Diz-nos também que este aumento se deve apenas parcialmente às vítimas da Covid-19. Na verdade, o pico de mortalidade a que assistimos deve-se muito parcialmente à Covid-19. Dos 7144 óbitos, no período em análise, apenas 1920 se deveram ao novo vírus, cerca de 28% do total de mortos.

A informação do INE diz-nos também que houve um aumento de mortes fora do contexto hospitalar. «Do total de óbitos registados entre 2 de Março e 20 de Setembro de 2020, 38 060 ocorreram em estabelecimento hospitalar e 26 045 fora do contexto hospitalar, a que correspondem aumentos de 2758 óbitos e 5561 óbitos, respectivamente, relativamente à média de óbitos em 2015-2019 em período idêntico».

Os dados agora divulgados contêm outra informação relevante, é que o aumento da mortalidade verificada tem um impacto maior nas pessoas mais velhas. De acordo com o INE, comparativamente com os últimos cinco anos «morreram mais 6218 pessoas com 75 e mais anos, das quais mais 4865 com 85 e mais anos».

Considerando que mesmo nos grupos etários mais elevados o aumento não pode ser explicado pelo novo vírus, ou apenas pelos picos de calor verificados, temos de ponderar sobre a possibilidade da centralização do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na resposta à Covid-19 ter provocado mortes que seriam evitáveis.

Esta é uma dura realidade que, por enquanto, não parece merecer a atenção mediática. Não surpreende, já que uma parte da responsabilidade, talvez não assim tão pequena, cabe àqueles que decidem o que é mediático e o que não é.

Foram estes que criaram as condições para se considerar que, face ao novo vírus, seria normal, aceitável e necessário cancelar cuidados de saúde não urgentes como, por exemplo, digamos, o rastreio a diversos cancros...

Mas estes não são os únicos dados que merecem reflexão. Um projecto originalmente desenvolvido pelo Statens Serum Institut (SSI), centro de investigação sob a alçada do Ministério da Saúde da Dinamarca, entre 2008 e 2011, originou a rede Euromomo que desde 2016 integra representantes do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e do Comité Regional para a Europa da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A rede Euromomo desenvolveu um mecanismo uniformizado para a monitorização da mortalidade em vários países da Europa. Neste momento, a rede integra parceiros de 24 países, designadamente em representação das direcções de saúde públicas desses mesmo países.

Os dados produzidos pela Euromomo podem ser consultados aqui e mantêm uma regularidade semanal de actualização. Uma das informações que pode ser consultada diz respeito aos z.scores por país.

O z-score é uma unidade de medida formulada para permitir a comparação de padrões de mortalidade entre diferentes países e/ou diferentes períodos. De forma simplificada, permite-nos avaliar a «gravidade» dos picos de mortalidade, nos diversos países em questão.

O que é interessante é verificar através deste elemento que, países como França ou o Reino Unido, têm neste momento z-scores abaixo da linha de crescimento substancial, como se pode verificar abaixo.

Em França, desde a semana 18, que vai de 27 de Abril a 3 de Maio, que o z-score não ultrapassa a linha de crescimento substancial. No conjunto dos países que integram o Reino Unido não se verifica um créscimo significativo, consistentemente pelo menos desde a semana 22, entre 25 e 31 de Maio.

 

Em Espanha, a semana 39 revela um excesso de mortalidade alto com um z-score de 7.17. O problema é que este valor não é inédito. 

Na terceira semana de 2019, Espanha tinha um z-score de 8.65, na primeira semana de 2018, de 11.64, na segunda semana de 2017, de 13.20. Não há notícia de em nenhum destes anos o país ter definido confinamento obrigatório em cidades inteiras.

Quer isto dizer que o número de mortos este ano é negligenciável? Não! Nenhuma vida humana é negligenciável. Nenhum pico de mortalidade deve ficar sem análise e resposta! Mas os números colocam a responsabilidade de questionar se se justificam as restrições às liberdades e garantias dos cidadãos a que temos assistido. Não se justificam!

Os dados não dão suporte à campanha mediática da generalidade dos meios de comunicação social, com a dedicação de mais de metade de programas informativos ao tema Covid-19. Os dados não dão suporte ao sentimento de medo que grassa nas sociedades.

Os dados não dão suporte às declarações do primeiro-ministro António Costa, em Março, quando afirmou ao País que estávamos todos «numa luta pela nossa sobrevivência».

Façamos um exercício simples. Imaginemos que, nos últimos meses, os programas informativos da televisão portuguesa tinham aberto os noticiários e dedicado a maior parte dos mesmos a discutir o cancelamento dos rastreios oncológicos – mama, colo do útero e colorrectal, em todo o País, entre Março e Junho deste ano.

Imaginemos que tinham feito o mesmo e discutido o cancelamento, entre Março e Setembro, no Norte, dos rastreios ao cancro da mama.

Imaginemos, por um segundo, que todos os dias, o telejornal abria com as notícias sobre o cancelamento de mais de 4 milhões de consultas médicas, em todo o País, desde Março1, ou sobre todos os cidadãos que sofreram ataques cardíacos e não procuraram os serviços médicos.

Imaginemos que, neste contexto, os telejornais passavam consecutivamente a notícia sobre a recusa das universidades portuguesas em abrir mais vagas para Medicina, apesar de o Governo ter autorizado a abertura.

Imaginemos que a notícia de Setembro sobre a aprovação de um novo curso de Medicina na Universidade Católica, pela primeira vez no privado, tinha passado nas televisões com a mesma frequência que o exercício contabilístico sobre os novos infectados com Covid-19.

Talvez não tivéssemos medo. Talvez estivéssemos indignados.

É que não pode ser considerado jornalismo abrir telejornais, como no dia 4 de Outubro, com letras garrafais a anunciar 2005 mortos por Covid-19.

2005 mortos desde quando? Obviamente desde Março… 2005 mortos num universo de quanto? Num universo de 63 833 mortes totais desde 16 de Março2.

Não é jornalismo, é propaganda. Especificamente ao serviço de quem e do quê, apenas a história poderá responder. Resta dizer que em Portugal o maior z-score atingido em 2020 também não é inédito, na primeira semana de 2017 e na terceira semana de 2015 o valor foi largamente ultrapassado.

Não há memória de se restringirem direitos democráticos devido a questões de saúde pública nestas datas. Dá que pensar…

A consulta a esta informação fornece matéria para alguns questionamentos. No projecto Euromomo, Portugal está representado por investigadores, médicos e epidemiologistas do Departamento de Epidemiologia Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA).

É difícil imaginar que os responsáveis políticos portugueses desconheçam estes dados, será que fazem uma interpretação diferente? Há sequer espaço para uma interpretação diferente? E os responsáveis políticos franceses, ingleses ou espanhóis? Que justificação terão para regularmente fazerem declarações alarmistas alimentando o pânico e o medo que a comunicação social semeou e continuar a semear diariamente?

Em Portugal, face à realidade que os números mostram, impõe-se tomar medidas para o reforço do SNS que permitam rapidamente recuperar todos os cuidados de saúde não prestados nos últimos meses.

Não há dúvida que os profissionais de saúde estão esgotados, não há dúvida que existiu uma grande pressão sobre a capacidade de resposta do SNS, quanto mais não seja pelas consequências inevitáveis do pânico e das adaptações e readaptações das estruturas existentes com que o SNS foi confrontado num curto espaço de tempo. Mas arrisco afirmar que a grande batalha que temos não é a resposta ao COVID19. A grande batalha que todos os democratas e defensores de SNS público e de qualidade têm em mãos é o combate à gula destruidora do capital que aproveitando um ambiente de grande complexidade e desorientação dá passos largos no açambarcamento de um dos sectores que mais tem cobiçado ao longo da história nacional.

Este combate trava-se sem hesitações nas contratações de profissionais de saúde, com salários dignos e vínculos estáveis, no investimento a larga escala nos cuidados de saúde primários e na recusa firme da transformação dos cuidados de saúde num monstruoso centro de atendimento telefónico a partir do qual se pretende substituir o «face a face» por emails e telefonemas.

  • 1. Dados disponibilizados pelo Portal da Transparência do SNS
  • 2. Dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) disponíveis aqui

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